CULTURA

A mulher negra na literatura de Conceição Evaristo

Escritora, poeta e ensaísta mineira preterida pela ABL, será homenageada da FlinkSampa 2018, a 6ª Festa do Conhecimento, Literatura e Cultura Negra
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 5 de outubro de 2018
Conceição: "negra em salão do livro causa furor. Não seria a mesma coisa se isto aqui fosse um festival de gastronomia em que baianas estivessem preparando acarajés”

Foto: Walter Craveiro/ Midia Ninja

Conceição: “negra em salão do livro causa furor. Não seria a mesma coisa se isto aqui fosse um festival de gastronomia em que baianas estivessem preparando acarajés”

Foto: Walter Craveiro/ Midia Ninja

Conceição Evaristo não para. Recentemente alçada a protagonista de uma campanha popular jamais realizada até agora para se colocar alguém em uma cadeira da Academia Brasileira de Letras (ABL), a escritora, poeta e ensaísta mineira será a grande homenageada da FlinkSampa 2018, a 6ª Festa do Conhecimento, Literatura e Cultura Negra que será realizada em São Paulo no mês de novembro. Trabalhando para concluir o romance Canção para ninar menino grande, a ser lançado no evento, Conceição afirma que pensa em tirar um “sabático” no próximo ano, pois sua “escrita está atrasada”. O romance Flores de Mulungu, encomendado pela editora Pallas para este ano, por exemplo, está praticamente inviabilizado.

No meio dessa correria, a autora assinou nos últimos dias o contrato para a publicação em árabe do seu livro Becos da Memória (Pallas), considerado um dos mais importantes romances memorialistas da literatura contemporânea brasileira e acompanha a tradução do seu livro de poesia  Poemas da Recordação e outros Movimentos (Malê) que será lançado em 2019 pela Editions des Femmes, mesma editora de Clarice Lispector na França.

A FlikSampa deste ano reunirá escritores brasileiros e de outros países que em meio a uma grande agenda irão refletir ironicamente sobre os dilemas e desafios da ABL, de Machado de Assis a Conceição, preterida em agosto por Cacá Diegues para a vaga aberta com o falecimento do cineasta Nelson Pereira dos Santos.

Para Tenório, a escritora mineira é um marco para a literatura brasileira

Foto: Arquivo Pessoal

Para Tenório, a escritora mineira é um marco para a literatura brasileira

Foto: Arquivo Pessoal

Para o escritor e professor de literatura e português Jeferson Tenório, Conceição Evaristo é “um marco para a literatura brasileira”. Autor de O beijo na parede (Sulina), romance premiado com o troféu Livro do Ano em 2014 pela Associação Gaúcha de Escritores, o professor avalia que a autora consegue com seu trabalho deslocar o olhar ao resgatar tipos de personagens pouco representados na literatura nacional através de seu conceito escrevivência. “Esses personagens, com especial destaque para a mulher negra, na escrita de Conceição se tornam protagonistas”, enfatiza.

NOS BRAÇOS DO POVO – Na análise de Tenório, “deslocar um olhar de subserviência para esse olhar estético que faz tão bem”, seria muito benéfico à ABL. Ao lembrar que muitos ainda têm em mente membros da ABL tomando chá no Petit Trianon, sede da academia no Rio de Janeiro, Tenório vai mais longe e afirma que além de grande escritora que “atravessou a sociedade, de doméstica virou doutora e escritora reconhecida internacionalmente”, Conceição Evaristo é uma pessoa de grande empatia e faria a população negra voltar seus olhos para a ABL. “Quem saiu perdendo foi a Academia, porque deixou de aprender com a Conceição”, destaca ao lembrar que, apesar de ter recebido apenas um voto dos “imortais” eleitores, a escritora já passou também para a condição de imortal pois, pela primeira vez uma candidatura à ABL chega carregada pelos braços do povo.

Conceição Evaristo compreende o efeito simbólico da campanha que foi feita em torno do seu nome. “Para mim foi muito importante e acredito que também para a Academia deve ter feito sentido”, diz Conceição. Para ela, o fato certamente desencadeou uma reflexão:  a ABL deve ser um espaço mais plural.

Apesar disso, de uma campanha singular que se iniciou nos movimentos sociais negros e foi se ampliando para intelectuais, artistas, leitores e pesquisadores, Conceição diz que ainda não “tem certeza de nada” sobre uma eventual nova candidatura à ABL. “As mesmas pessoas que me apoiaram têm uma expectativa grande, mas eu não tenho resposta ainda. Vamos ver”, desconversa.

O certo é que qualidade literária ela tem de sobra. Para Jéferson Assumção, escritor e gestor cultural, Conceição Evaristo faz uma literatura necessária, de alto impacto estético e profunda reflexão ética. Pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade de Brasília (UnB) e doutor em Humanidades e Ciências Sociais pela Universidad de León (ULE, Espanha), com passagem pelo Ministério da Cultura como coordenador-geral e diretor de Livro, Leitura e Literatura, Assumção considera a mineira uma das maiores escritoras brasileiras da atualidade. “Seus textos são vivos, altamente desenvolvidos do ponto de vista técnico, criativo e expressivo, tanto em suas narrativas curtas quanto longas, em especial o belíssimo Ponciá Vicêncio (Pallas, 2003)”, destaca, juntamente com o volume de contos Olhos Dágua (Pallas, 2015). “Para mim, uma verdadeira aula de construção de personagens, principalmente pobres e negros”, observa.

Mais do que a cor da sua pele, a princípio o efeito sensibilizador do clamor que não logrou êxito em agosto diante dos imortais avessos a campanhas desse tipo, dando mais preferência, segundo alguns críticos, a discrição e uma certa misancene que compreende o cortejo de eleitores em reuniões privadas e jantares, Conceição entende que o que faz sentido é que ela cumpre os requisitos da ABL, ser brasileira e ter pelo menos um livro publicado. “Eu sou brasileira, tenho seis livros, tenho um Jabuti (o mais tradicional prêmio literário do Brasil. Criado em 1959), romances publicados no exterior. Acredito que a ABL deve priorizar isto”, reflete.

“Não nasci rodeada de livros, mas rodeada de palavras. Havia toda uma herança das culturas africanas de contação de histórias"

Foto: Egi Santana/ Divulgação

“Não nasci rodeada de livros, mas rodeada de palavras. Havia toda uma herança das culturas africanas de contação de histórias”

Foto: Egi Santana/ Divulgação

A CAMPANHA – “Tá faltando preto na Casa de Machado de Assis”, disse em abril passado a jornalista Flávia Oliveira ao declarar à coluna de Anselmo Gois, no jornal O Globo, que votaria em Nei Lopes ou Martinho da Vila, “sem falar” em de Conceição. Foi o que faltava para, de certa forma, incendiar as redes sociais. Enquanto uma petição chegou a reunir mais de 25 mil assinaturas na Internet, em um país não muito afeito às letras, a hashtag #ConceiçãoEvaristoNaABL acabou fazendo com que a escritora finalmente formalizasse a sua candidatura em junho. No entanto, os pedidos pela presença de uma negra na casa, fundados por um “mulato”, não surgiram efeito. Conceição Evaristo acabou recebendo apenas um voto entre os 35 acadêmicos eleitores e o cineasta Cacá Diegues acabou assumindo a cadeira número 7 da instituição, desocupada desde abril com a morte do também cineasta Nelson Pereira dos Santos.

Se por um lado há quem defenda que a eleição de um cineasta para a vaga deixada por um cineasta, em especial alguém com o currículo de Diegues, segue uma certa lógica, por outro não falta os que se incomodam pelo fato de a cadeira, cujo patrono é Castro Alves, conhecido por seus escritos fundamentais sobre a condição dos negros escravizados no Brasil não ter sido ocupada por um negro.

A ABL da elite intelectual fecha suas portas para os negros

Na ABL, aliás, em um universo pouco inferior a mil acadêmicos, somente algumas dezenas de negros, incluindo-se aí os “mulatos”, sentaram em uma de suas cadeiras ao longo da história. O fundador, Machado de Assis, foi um deles, apesar da carta de Joaquim Nabuco endereçada a José Veríssimo, após a morte de Machado registrar a inconformidade: “Mulato, ele foi de fato, um grego da melhor época. Eu não teria chamado Machado de Assis de mulato e penso que lhe doeria mais do que essa síntese. (…) O Machado para mim era um branco e creio que por tal se tornava; quando houvesse sangue estranho isso nada alterava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só via nele o grego”.

Hoje, somente um negro tem assento na ABL, Domício Proença, professor e pesquisador em língua portuguesa e literatura brasileira, doutor em letras e literatura brasileira como Conceição Evaristo. E não é por falta de qualidade literária.

No início do século 20, um dos principais escritores do pré-modernismo brasileiro, Lima Barreto (1881-1922) tentou três vezes entrar na ABL, mas não conseguiu. Monteiro Lobato chegou a registrar em carta que ele só não entrava porque era “preto”. Para o autor de O Sítio do Pica Pau Amarelo, se fosse branco, o autor de O Triste fim de Policarpo Quaresma seria convidado e não precisaria, sequer, passar pela humilhação de pedir votos.

Já em 1897, quando a ABL foi fundada, Cruz e Sousa (1861-1898) até que teve seu nome cogitado para ser um dos fundadores. Com o apelido de Dante Negro ou Cisne Negro, o poeta catarinense, um dos precursores do simbolismo no Brasil, negro como Lima Barreto, também ficou de lado.

Para o ex-ministro da Igualdade Racial, Eloi Ferreira, “a invisibilidade da comunidade negra promove a sua inviabilidade. Conceição Evaristo, por mais brilhante que seja, é invisível aos olhos da elite intelectual branca”, registrou.

Conceição, da infância na favela para a universidade

Nascida e criada na favela do Pendura Saia, zona sul de BH, em sua infância lia gibis e se encantava com as histórias encenadas pela mãe, que era doméstica nas casas de Otto Lara Resende e Alaíde Lisboa

Foto: Joyce Fonseca/ Divulgação

Criada na favela do Pendura Saia, zona sul de BH, em sua infância lia gibis e se encantava com as histórias encenadas pela mãe, que era doméstica nas casas de Otto Lara Resende e Alaíde Lisboa

Foto: Joyce Fonseca/ Divulgação

Mesmo não sendo considerada favorita para a vaga, o voto dado a Conceição indignou muitos. Nascida e criada na favela do Pendura Saia, zona sul de Belo Horizonte, em sua infância lia vorazmente gibis e se encantava com as histórias encenadas por sua mãe, dona Joana, que ao trabalhar como doméstica nas casas dos escritores Otto Lara Resende (1922-1992) e Alaíde Lisboa (1904-2006), jamais imaginaria que a filha viria a se tornar o sucesso de crítica da literatura que é hoje.

Militante do movimento negro, Conceição começou cedo a sua luta para chegar ao destaque. Após suar para obter o curso de normalista, ainda em Minas Gerais, fazendo malabarismos para equilibrar sua formação com as ocupações de babá, vendedora de livros, faxineira e professora particular, a esforçada filha de dona Joana foi ao Rio de Janeiro para buscar sua graduação em letras na segunda metade dos anos 1970.

A fome por conhecimento e o amor às letras não pararam. Logo em seguida vieram o mestrado em Literatura Brasileira pela PUCRJ e o doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Nessa época, o malabarismo foi outro. Passou a lecionar na rede pública do Rio de Janeiro.

Abordando um tema árido, discriminação racial, de gênero e de classe, a obra de Conceição Evaristo também apresenta um tom de religiosidade, que ela prefere chamar de ancestralidade. “Não nasci rodeada de livros, mas rodeada de palavras. Havia toda uma herança das culturas africanas de contação de histórias. Minha mãe fazia bonecas de pano ou de capim para mim e minhas irmãs e ia inventando tramas. Ela recolhia livros e revistas e mostrava para nós, mesmo sem saber ler. Víamos as figuras e inventávamos novas histórias. Meu interesse pela literatura nasce daí”, diz.

Uma das sensações no Salão do Livro de Paris em 2015, quando o Brasil foi homenageado, Conceição chegou a dizer na ocasião que “negra em salão do livro causa furor”. “Não seria a mesma coisa se isto aqui fosse um festival de gastronomia em que baianas estivessem preparando acarajés”, comparou, talvez sem saber que o exemplo que deu pudesse ser transportado para as senhoras que preparam o chá da tarde dos imortais que se reúnem na sede da ABL no Rio de Janeiro.

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