GERAL

Previdência de militares deverá manter privilégios

Com déficit previdenciário de R$ 44,3 bilhões em 2019, as forças armadas escutam Bolsonaro propor “sacrifícios” à tropa, cientes de que isso ficará só no discurso
Por Flavia Bemfica / Publicado em 12 de março de 2019
As declarações feitas por Bolsonaro na quinta-feira, 7, durante a celebração dos 211 anos do Corpo de Fuzileiros Navais, no Rio, são apontadas como uma tentativa de requentar formas de apoio e não como qualquer sinalização de mudanças significativas na aposentadoria de militares

Foto: Marcos Corrêa/PR

As declarações feitas por Bolsonaro na quinta-feira, 7, durante a celebração dos 211 anos do Corpo de Fuzileiros Navais, no Rio, são apontadas como uma tentativa de requentar formas de apoio e não como qualquer sinalização de mudanças significativas na aposentadoria de militares

Foto: Marcos Corrêa/PR


Solicitado por parlamentares da base governista como condição para fazer andarem as negociações para aprovação da reforma da Previdência, o projeto de lei que trata das mudanças nas aposentadorias dos militares terá potencial para deixar o governo em uma situação difícil. Porque uma reforma de fato no que a União despende com os militares e seus pensionistas é incompatível com a composição do governo, com as bandeiras defendidas pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) historicamente e com a manutenção de apoios considerados fundamentais para que ele se mantenha com um mínimo de estabilidade no cargo.Por isso, as declarações feitas por Bolsonaro na quinta-feira, 7, durante a celebração dos 211 anos do Corpo de Fuzileiros Navais, no Rio de Janeiro, e após a polêmica na qual ele se envolveu no Carnaval, postando um vídeo pornográfico no twitter e insistindo no assunto, são apontadas como uma tentativa de requentar formas de apoio e não como qualquer sinalização de mudanças significativas na aposentadoria de militares.

Na solenidade, o presidente pediu sacrifício das Forças Armadas, mas emendou a garantia da continuidade de um tratamento específico e destacou a composição do ministério. “O que eu quero dos senhores é sacrifício também. Entraremos, sim, numa nova Previdência, que atingirá os militares. Mas não esqueceremos as especificidades de cada Força. Temos um Ministério formado de pessoas técnicas, pessoas comprometidas com o futuro do Brasil, que nos ajudam a conduzir essa grande nação.” Na sequência, completou que seu governo reconhecerá “o soldado brasileiro, tão esquecido nos últimos tempos.”

O fato é que, na prática, as mudanças adiantadas até o momento: mudar a regra geral que prevê em 30 anos o tempo que os militares devem permanecer na ativa, aumentando o prazo para 35 anos; e subir a alíquota única de 7,5% para 10,5%, nos chamados “encargos da União com militares e seus pensionistas” atingem de forma suave um emaranhado de legislações e exceções que possuem relação direta com as aposentadorias precoces e o déficit do sistema. Estas duas possibilidades ventiladas até agora podem ajudar a diminuir o déficit, mas passam longe de alterações no conceito de privilégios.

Militares dominam o primeiro escalão

Ao mesmo tempo em que a oposição e setores organizados tendem a destacar o tratamento diferenciado nas regras para os militares, e o impacto da diferença sobre todos os que contribuem para a previdência; o governo tem neles um de seus principais pontos de apoio. Mais do que isso, militares da reserva de alta patente dominam o primeiro escalão. E não há quem acredite que, com esta composição, Jair Bolsonaro, ex-capitão do Exército, vá de fato retirar o que a caserna, de forma majoritária, considera ‘direitos’ decorrentes do exercício de funções singulares.

A situação do próprio presidente já é usada como exemplo do imbróglio. Na metade de janeiro, integrantes do governo passaram a ventilar que Bolsonaro seria o garoto-propaganda do projeto da reforma geral da previdência (sem os militares), a PEC 6/2019, enviada à Câmara dos Deputados em 20 de fevereiro. A pretensão acabou prejudicada após o presidente, sem consultar a equipe econômica, e sem que houvesse ainda maiores mobilizações sobre o ponto, ter admitido que a idade mínima para mulheres poderia baixar dos 62 anos previstos na PEC para 60 anos. Não fosse o próprio Bolsonaro a atropelar a campanha publicitária em gestação (agora, por enquanto, a estratégia é que ele evite o tema), ela acabaria alvo de artilharia pesada da oposição.

Porque, prestes a completar 64 anos neste mês de março, o hoje chefe do Executivo passou para a reserva remunerada, como capitão do Exército, aos 33 anos de idade, em 1988, após apenas 15 na ativa.  Desde 1989, quando começou a exercer o primeiro mandato eletivo, acumula o recebimento da aposentadoria com os subsídios primeiro de vereador e depois de deputado federal. Desde o mês passado, está apto a encaminhar também sua aposentadoria como congressista, com teto de R$ 33, 7 mil. Ambas as aposentadorias (das Forças Armadas e da Câmara) podem ser acumuladas aos subsídios que ele recebe como presidente da República.

A exceção que permitiu a Bolsonaro a aposentadoria precoce está prevista no Parágrafo único do artigo 52 da Lei 6.880, de 1980, o Estatuto do Servidor Militar. O parágrafo prevê que, se em atividade, com cinco anos ou mais de serviço, o militar, caso dispute eleições e vença “será, no ato da diplomação, transferido para a reserva remunerada, percebendo a remuneração a que fizer jus em função do seu tempo de serviço.” É a  mesma regra aplicada recentemente ao tenente coronel Luciano Zucco, 44 anos, eleito deputado estadual mais votado para a Assembleia Legislativa gaúcha nas eleições de 2018, e que, em dezembro, também passou para a reserva remunerada.

Há outras formas de os militares pleitearem aposentadorias precocemente, como ocorreu com o atual ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes. Tenente-coronel da Aeronáutica, ele passou para a reserva remunerada em 2006, quando tinha 43 anos. No seu caso, a justificativa está prevista na lista de possibilidades elencada nos artigos 97 a 102 do Estatuto do Servidor Militar, que trata das quotas compulsórias e de uma série de outras situações envolvendo principalmente a questão da hierarquia. Em suma, na situação mais conhecida, quando não há vagas suficientes a todos os que cumprem as exigências necessárias para pleitear a ascensão a patentes superiores, é possível solicitar a inclusão na cota de transferência para a reserva remunerada. O artigo 100 estabelece que as quotas compulsórias só serão aplicadas quando houver, no posto imediatamente abaixo, oficiais que satisfaçam às condições de acesso. O 101 prevê que oficiais da ativa podem requerer sua inclusão na quota compulsória desde que contem mais de 20 anos de tempo de efetivo serviço.

O Estatuto regra também que ao passar para a inatividade o militar terá direito a tantas quotas de soldo quantos forem os anos de serviço, computáveis para a inatividade, até o máximo de 30 anos. Que, para efeito de contagem das quotas, a fração de tempo igual ou superior a 180 dias será considerada um ano. E que a proibição de acumular proventos de inatividade não se aplica aos militares da reserva remunerada e aos reformados quanto ao exercício de mandato eletivo, função de magistério ou cargo em comissão, ou quanto ao contrato para prestação de serviços técnicos ou especializados. Posteriormente, a Medida Provisória 2215-10, de 2001, regulamentada pelo Decreto 4.307/2002, também estabeleceu vantagens para situações ocorridas até o final do ano 2000.

TCU projeta déficit previdenciário de R$ 44,3 bilhões  para 2019 

Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre o sistema previdenciário brasileiro divulgado na metade de 2017 apontou que, no ano anterior, 61% dos militares ingressaram na inatividade com menos de 50 anos. E, não mais que 2%, com 60 anos ou idade superior. Para mostrar que o percentual não era isolado, o TCU apurou os índices ano a ano desde 2007. Ainda conforme o relatório, as Forças Armadas somavam 369.690 militares na ativa em 2016 (sendo 290.668 contribuintes), ante 154.144 inativos e mais 188.924 pensionistas.

No Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2019, o governo informou déficit projetado com o pagamento de militares inativos e seus pensionistas de R$ 42,6 bilhões para 2018 e R$ 43,3 bilhões para 2019. Nos RPPS (servidores civis), a conta projetada é de R$ 45,4 bilhões e R$ 44,3 bilhões, respectivamente. Em valores, os déficits se aproximam. Mas há duas diferenças importantes: em um regime o rombo aumenta, enquanto que, no outro, ele baixa. E isso acontece apesar de os dados sobre o número de inativos, referentes a 2016, mostrarem que há quase o dobro de inativos e pensionistas entre servidores civis na comparação com os militares. São 683.560 no primeiro grupo, ante 378.870 no segundo.

Imagem: Reprodução/TCU

Imagem: Reprodução/TCU

Uma categoria especial de servidores da Pátria

Há uma discussão de fundo que permeia todo o debate sobre as mudanças nas aposentadorias dos militares. É o fato de que eles constituiriam uma categoria especial de servidores da Pátria, acompanhada do entendimento de que os valores recebidos na reserva remunerada e na reforma não seriam uma aposentadoria, mas sim uma ‘prestação pecuniária de obrigação da União’, decorrente das peculiaridades da carreira militar. Que incluiriam, por exemplo, risco de vida e disponibilidade permanente, sujeição a disciplina e hierarquia rigorosas, dedicação exclusiva e exigência de vigor físico. Soma-se a estes pontos, ainda, a previsão de que os que estão na reserva poderão ser convocados a prestar serviço na ativa, em casos específicos.

O entendimento de que a remuneração dos militares na inatividade integra um regime de proteção social de natureza não contributiva, decorrente das singularidades da carreira, e não um benefício de natureza previdenciária, é enraizado entre os integrantes das Forças Armadas, endossado pelo Ministério da Defesa e garantido na legislação que trata das ‘obrigações da União com os militares e seus pensionistas’. O regramento legal estabelece, por exemplo, que a contribuição previdenciária dos militares financia exclusivamente as pensões, sem previsão de contribuição que sustente os custos com a inatividade. Na prática, isso significa que a União arca com o financiamento tanto dos que passam para a reserva remunerada como dos que são reformados.

Pelas regras gerais, o tempo de contribuição mínimo é de 30 anos, não há idade mínima para a aposentadoria, os militares vão para a reserva remunerada ou são reformados com soldo integral, sem submissão ao teto do Regime Geral, e os proventos recebidos têm paridade com os da ativa. O percentual descontado dos proventos de ativos e inativos é de 7,5% do soldo integral. E não há contribuição patronal.

As pensões para os cônjuges são vitalícias. Em 2001 houve uma pequena mudança, que impôs limite de idade ao direito à pensão das filhas de militares, estabelecendo uma contribuição de mais 1,5% para que filhas nascidas a qualquer tempo mantivessem o direito à pensão independentemente de idade, quando não há viúva ou companheira. Todos foram incluídos automaticamente como contribuintes da alíquota adicional, sendo que os que discordaram puderam solicitar a exclusão dentro de um período determinado. O benefício não vale para os que ingressaram após a mudança.

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