GERAL

O mercado não se auto-regula

Há algumas certezas no mercado sobre a crise econômica mundial: 1) seus reflexos já chegaram ao Brasil e terão desdobramentos que se estenderão por todo o ano de 2009; 2) ela não é no país, como defendem a
Por Flávia Bemfica / Publicado em 18 de dezembro de 2008

Depois da queda de outubro, quando a crise chegou ao seu ápice nos Estados Unidos, com a quebradeira generalizada no setor financeiro e a intervenção do Estado via injeção de recursos na economia e aquisição do controle acionário de bancos não apenas naquele país como também em diversas potências européias, como Alemanha e Inglaterra, entre outros, este final de 2008 traz, no cenário internacional, a expectativa de que o democrata Barack Obama anuncie um pacote de medidas assim que assumir, em janeiro. Entre elas, as que incluem a negociação entre credores e devedores, abatendo dívidas, criando mecanismos de sobrevivência aos inadimplentes e renegociando juros principalmente no setor imobiliário.

BRASIL – No Brasil, onde os reflexos mais pontuais apareceram já nos números de outubro, os especialistas se dividem quanto às expectativas para 2009.

Eles sabem que será um ano difícil e que o país não vai crescer no ritmo que vinha apresentando nos últimos anos. Ao mesmo tempo, sabem também que, se a população ficar receosa, na expectativa de uma grande crise, não consome e, aí, tem início uma espécie de bola de neve: baixo consumo gera queda na venda de produtos e, por conseqüência, baixa na produção que, por sua vez, aumenta a capacidade ociosa das indústrias que, para cortar gastos, demitem. Pessoas sem emprego em geral não têm fonte de renda fixa e, por isso, não se constituem em ‘bons’ consumidores. Resumindo: a economia trava.

MODERAÇÃO – “Se eu pudesse dar um conselho à população neste final de ano diria: consuma, mas com moderação. Não compre o que você não precisa e não estenda demais o prazo para pagar”, resume o economista e professor de Finanças Públicas da Universidade de Brasília (UnB), Roberto Piscitelli. “Teremos momentos de turbulência, mas não entraremos em uma recessão. O crédito continuará ainda um tanto restritivo e, como pode haver efeitos sobre a renda e o emprego, o melhor é aguardar um pouco antes de comprar bens de alto valor e evitar assumir dívidas com prazos a perder de vista”, endossa o assessor econômico do Departamento de Estudos e Pesquisas Financeiras e integrante do Conselho de Administração da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), Miguel Ribeiro de Oliveira.

Para quem tem recursos disponíveis neste final de ano e não sabe qual o melhor investimento, os analistas de mercado aconselham a segurança da caderneta de poupança e dos fundos DI. Os fundos DI são um tipo de investimento tido como conservadores, pois contêm em suas carteiras títulos pósfixados do governo federal e tomam por base o CDI (taxa de juros interbancária) que, por sua vez, está atrelada à taxa básica de juros da economia brasileira (a Selic). Quando a Selic aumenta, o fundo acompanha o movimento, quando baixa, também. “Já para quem pensa em adquirir um bem de alto valor, como um imóvel, eu não aconselharia, neste momento, a compra na planta. Muitas construtoras se endividaram adquirindo terrenos e, para entregar os imóveis nos prazos, precisarão alcançar um ritmo de vendas difícil de cumprir”, avisa Débora Morsch, diretora da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais (Apimec/Sul). Ela ressalva que em momentos de crise costumam aparecer também excelentes oportunidades de negócios e investimentos, mas que, para ‘bater o martelo’, é necessário ter um período de acompanhamento do mercado e checar as condições postas.

Especialistas divergem

Entre especialistas, os desdobramentos e a duração da crise econômica no Brasil estão longe de ser um consenso. De acordo com o professor de Finanças Públicas da Universidade de Brasília (UnB), Roberto Piscitelli, o comportamento dos agentes financeiros e a questão do crédito são fundamentais. “Há um desespero do governo para que não haja bloqueio do crédito, mas ele vai ficar muito na dependência das instituições oficiais”, avisa. O professor lembra que alguns consumidores, como parte dos que haviam optado por fazer empréstimos consignados, já mostravam sinais de esgotamento antes da crise. Miguel Ribeiro de Oliveira, integrante do Conselho de Administração da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), adianta que, entre as pessoas físicas, as maiores prejudicadas serão as de baixa renda, que dependem de crédito para sobreviver e/ou adquirir bens, mesmo que de baixo valor.

DINHEIRO – Na tentativa de minimizar os danos, o governo tomou algumas medidas via bancos estatais, como o anúncio da liberação de R$ 10 bilhões para o crédito consignado na Caixa Econômica Federal (CEF) em 2009, um aumento de 25% em relação ao montante de 2008; a liberação de R$ 8 bilhões via CEF e Banco do Brasil (BB) para financiamento de imóveis a servidores públicos federais e o ingresso da CEF no financiamento de bens de consumo diretamente no comércio (inicialmente com uma linha de R$ 2 bilhões). O governo se debate para que o arrefecimento não chegue ao mercado de trabalho já que, na renda, o efeito foi quase imediato.

PESQUISA – Conforme os dados da Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE, apesar de em outubro a taxa de desocupação nas seis regiões metropolitanas pesquisadas ter ficado estável (7,5%) em relação ao mês anterior, o rendimento médio mensal dos trabalhadores caiu 1,3% na comparação com setembro. “Esta crise quebrou os parâmetros estruturais que eram usados para prever o futuro, por isso ficou mais difícil fazer projeções. Mas não acredito que ela chegue com força ao Brasil, a não ser que, além da restrição do crédito externa houver uma grande restrição interna. Só que, aqui, ao contrário dos Estados Unidos, o governo possui diversos mecanismos para ajudar na recuperação”, avalia o supervisor técnico do Dieese/RS, Ricardo Franzoi.

Pode faltar dinheiro

O professor Enrique Serra Padrós, do Departamento de História da Ufrgs, discorda. “Em algum momento não haverá dinheiro para financiar esta necessidade de endividamento que está aí. Entre historiadores, falamos da iminência desta crise há 15 anos e acreditamos que ela será longa. O grande receio é que, além de toda a perda econômica, ela acabe por ter entre suas conseqüências, em termos políticos, o fortalecimento de setores de extrema direita”, alerta.

Montadoras estão otimistas

No mercado, mesmo sendo os primeiros setores a sentir o impacto, como o automobilístico – apontado como aquele no qual o país estava realizando seu subprime – negam-se a falar em recessão. “Existe muita demanda a ser suprida no mercado e o que pode determinar os rumos do setor será o desenrolar da crise e os possíveis efeitos locais. No decorrer de 2009, existe a tendência de normalização do mercado e, como o setor automobilístico acumulou grande crescimento, ainda há margem para manter excelentes níveis de produção”, avalia o presidente da Associação Nacional das Empresas Financeiras de Montadoras (Anef), Luiz Montenegro.

DIFICULDADES – Apesar do discurso otimista, são públicas as dificuldades das montadoras, as concessões de férias coletivas e as mudanças no sistema de concessão de crédito para aquisição de veículos. “No mês de novembro, a cada dez pedidos de financiamento, só quatro estavam sendo aprovados”, assinala Débora Morsch, diretora da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais (Apimec/Sul).

Montenegro admite que o setor financeiro alterou os critérios para aprovação de créditos. Reduziu o número de prestações e elevou os percentuais de entrada. Ele defende que a recente liberação de linhas de financiamento do Banco do Brasil (BB) e do Nossa Caixa (que o BB adquiriu) para os bancos das montadoras, já começou a injetar R$ 8 bilhões para a retomada dos financiamentos. “Há promoções com taxas subsidiadas pelas montadoras e rede de concessionários que podem variar de 0,99% a 0%”, assegura.

“Não existe juro 0% e início de pagamento depois de alguns meses sem que as taxas estejam embutidas”, rebate o professor de Finanças Públicas da Universidade de Brasília (UnB), Roberto Piscitelli.

Segundo o professor, além do setor automobilístico, há outros que vão sentir a crise de forma mais ‘imediata’. Entre eles estão os de importação de produtos, o de eletroeletrônicos, brinquedos e os de artigos para construções e reforma.

Financiamento imobiliário no Brasil
é diferente dos EUA

Outras diferenças entre os dois países dizem respeito ao financiamento imobiliário, que nos Estados Unidos é apontado como uma espécie de centro da crise. Aqui, apesar da liberalização ocorrida nos últimos três anos, com aumento das facilidades por parte do tomador do financiamento, a concessão do crédito habitacional ainda é muito mais restritiva, tanto pela atuação do Banco Central (BC) como das próprias instituições.

“No Brasil quase ninguém financia 100% do imóvel. Além disso, a análise de crédito, para que a instituição financeira se certifique de que o tomador terá condições de pagar e de que comprometerá via de regra apenas 30% da renda bruta familiar mensal, é bem rigorosa”, destaca o gerente regional de Negócios da Habitação da Superintendência da Caixa Econômica Federal (CEF) em Porto Alegre, Pedro Lacerda. Ele recorda ainda que a avaliação do imóvel é feita sobre o valor real de mercado, sem a chamada securitização da dívida e, atualmente, com um sistema de amortização linear, o Sistema de Amortização Constante (SAC), que visa reduzir juros ao longo do contrato. Nos Estados Unidos, as avaliações não são feitas sobre o valor real, mas sim sobre o valor de mercado (que pode variar muito, para mais ou menos, em função da oferta e procura). Além disso, os clientes podiam refinanciar a dívida, tomando um segundo financiamento sobre o primeiro, e sem necessidade de destinar o valor para o pagamento das prestações.

SEMELHANÇAS – Segundo Lacerda, o mais perto que a CEF chega do mercado norte-americano é um produto denominado Aporte Caixa. Nele, quando possui o imóvel já quitado, o tomador pode financiar 50% de seu valor real. Apesar da tendência que existia até o segundo trimestre de flexibilizar cada vez mais o crédito no setor imobiliário, agora há um certo arrefecimento. “ Depois do que aconteceu, os refinanciamentos sem destinação específica, por exemplo, não se tornarão realidade tão cedo”, antecipa o gerente.

Estado protagonista ajuda a enfrentar a crise

Se por um lado as conseqüências da crise econômica são inevitáveis, algumas diferenças existentes na regulação dos mercados no Brasil e nos Estados Unidos podem, segundo especialistas, auxiliar os brasileiros em 2009. “Esta questão de que o mercado se auto-regula, ou seja, se quebrar, deixa quebrar, por exemplo, que era tida assim como uma regra, ficou constatado que no sistema financeiro não funciona, até porque tem o dinheiro de muita gente envolvido e, quando quebra, quebra tudo”, resume a diretora da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais (Apimec/Sul), Débora Morsch. Ela lembra que, com a crise, ficou demonstrado ainda que, nos Estados Unidos, ao contrário do que se acreditava, os bancos de investimentos não eram regulamentados pelo Banco Central norte-americano, o Federal Reserv (FED), o que lhes possibilitava um nível de alavancagem (uso de recursos emprestados para aplicação no mercado financeiro, em geral em operações de alto risco) acima do permitido pela legislação.

MECANISMOS – O supervisor técnico do Dieese/RS, Ricardo Franzoi, assinala que o Brasil possui mecanismos muito criticados na argumentação neoliberal, mas que deverão ajudar a minimizar os efeitos da crise. Entre eles estão a forte presença de bancos estatais no setor financeiro; uma parte significativa do crescimento dos últimos anos alavancada pelo mercado interno; a regulação da taxa básica de juros e a política de estabelecimento de salário mínimo e de reajustes salariais em datas-bases anuais.

“Os reajustes nas datas-bases, por exemplo, nos Estados Unidos não funcionam assim. Os trabalhadores possuem representações sindicais que negociam às vezes para dois ou três anos”, explica. Segundo Franzoi, o fato de no Brasil os salários em geral serem bastante baixos também pode funcionar como uma garantia à movimentação da economia. “Quando a pessoa ganha pouco, ela não destina os recursos ao entesouramento, mas sim ao consumo”.

Juros baixos e crédito farto
no centro do problema

Juros baixos e crédito farto são o centro da crise. Ao retomar as origens do colapso, os analistas costumam partir da fase de expansão do mercado imobiliário dos Estados Unidos ocorrida após a crise das empresas ‘pontocom’, em 2001, quando o Banco Central norteamericano, o Federal Reserve, reduziu taxas de juros para baratear empréstimos e financiamentos e encorajar o consumo. As instituições financeiras partiram para cima do cliente subprime (como o nome já diz, aquele que, devido a sua menor capacidade de pagamento de dívidas, apresenta maior risco de calote). Estes clientes passaram a ter acesso a financiamentos imobiliários com valores bem acima de sua capacidade.

BOLHA – Com juros baixos e crédito à vontade, os imóveis se valorizaram. Nos EUA, os mutuários tinham a opção de refinanciar hipotecas – aquelas que, em muitos casos, já estavam acima de sua capacidade real de pagamento. O dinheiro do empréstimo era destinado à aquisição de outros bens, movimentando a economia e mantendo o consumo aquecido. Para captar dinheiro e seguir emprestando, os bancos criaram títulos lastreados nas hipotecas. Devido ao risco da inadimplência do segmento ao qual estavam atrelados, eram títulos com altas taxas de retorno, ou seja, lucros mais altos e rápidos para investidores e instituições. Esses títulos eram comercializados a investidores que emitiram seus próprios títulos, e assim sucessivamente, em operações roladas diversas vezes, inclusive em outros países, mas sempre com títulos lastreados nos primeiros. Começava o que viria a se transformar na exportação da crise.

QUEDA – A partir de 2006, os preços dos imóveis começaram a cair e os juros frearam o crédito. O comprador subprime começou a ter dificuldades para quitar suas dívidas, gerando uma espécie de efeito dominó por falta de lastro em moeda. “O que houve lá foi que perderam a noção do perigo e, eufóricos, passaram a financiar imóveis de valores altíssimos para trabalhadores informais, por exemplo. Isso começou antes de 2001. Em 1999 os primeiros sinais ficaram evidentes ainda no ano passado”, enumera a diretora da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais (Apimec/Sul), Débora Morsch.

História: os reais paralelos com 1929

Para o professor Enrique Padrós, do Departamento de História da Ufrgs, não há como dissociar a crise atual daquelas enfrentadas pelo capitalismo ao longo do século 20, em especial a crise de 1929 e aquela do final dos anos 60 e início dos 70, quando o chamado capitalismo de bem-estar social se esgotou e a retórica neoliberal, que estava em pauta desde os anos 40, ganhou corpo. A de 29, destaca o professor, começou na verdade alguns anos antes, a partir de 1922. Na agricultura, a superprodução de gêneros ocorrida durante os anos da 1ª Guerra Mundial foi mantida mesmo após o término do conflito. Para não baixar os preços, os produtores optaram por fazer estoques ao invés de diminuir a produção. Passadas duas ou três safras, os agricultores, falidos, foram aos bancos para obter financiamentos que permitissem que continuassem produzindo. Deram as terras como garantia. A quebradeira ocorreu entre os anos de 1924 e 25, quando os bancos tomaram as terras dos inadimplentes. Não tinham para quem vender e os preços caíram, dando início ao colapso registrado quatro anos depois.

PARIDADE – Nos anos 60, com a recuperação econômica da Europa e do Japão, os Estados Unidos começaram a perder competitividade e anularam a paridade dólar/ouro, desvalorizando a moeda, como forma de se recuperarem, e passando ao sistema de moeda flutuante, lastreado, em última instância, nos títulos da dívida pública. Para baratear custos, os EUA deslocaram inicialmente capitais produtivos para outros países e, em um segundo momento, também os capitais financeiros, em busca de maiores rendimentos. São da década de 70 as políticas de desregulação dos mercados financeiros que deram início ao processo de globalização. Conforme Padrós, estes fatores, aliados ao desenvolvimento tecnológico e à difusão da internet, tornaram a exportação das crises inevitável.

“Há o ingresso de um exército de trabalhadores no mercado, que ganham salários muito baixos, e os capitais especulativos sobrevivem dentro de uma cultura que é a cultura do crédito, que começa a ser outorgado de forma irresponsável não apenas para corporações, mas também para as pessoas”.

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