Perseguição política e econômica na era da pós-verdade
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Se no século passado as ditaduras operavam pelos mecanismos tradicionais de suspensão provisória dos direitos e das leis para todos os cidadãos, a pretexto de enfrentar situações extraordinárias de perigo, na atualidade as democracias ocidentais estão contaminadas por um sistema de justiça que age com tirania e de forma seletiva. O inimigo do Estado de exceção já não é mais o comunista, mas os excluídos e seus representantes políticos. “Na América Latina, especialmente no Brasil, as medidas de exceção são praticadas pelo sistema de justiça, que esvazia de sentido os direitos fundamentais e garantias individuais de um grupo específico de indivíduos rotulados como bandidos, traficantes ou corruptos. E a forma mais cruel dessas medidas são os processos penais”, explica o advogado criminal e professor de Direito Penal e Processual Penal na Escola Paulista de Direito (EPD) e Mestre em Direito Penal pela PUC-SP, Fernando Hideo Lacerda, que aborda nesta entrevista o processo penal de exceção, tema de sua tese de doutorando em Direito Processual Penal pela PUC-SP. “Em nossos tempos, a farda foi substituída pela toga, o fuzil deu lugar ao martelo e a mordaça virou fake news no discurso midiático oficial”, compara.
Extra Classe – O que é processo penal de exceção e como funcionam os mecanismos autoritários criados pelo sistema de justiça?
Fernando Hideo Lacerda – Para compreendermos o funcionamento dos mecanismos autoritários na contemporaneidade, a primeira coisa que precisa ser esclarecida é que as formas de tirania se acompanham do desenvolvimento social, se adaptam às novas estruturas discursivas e se aperfeiçoam com o passar do tempo. O autoritarismo aprendeu a se camuflar sob o rótulo democrático. Ninguém precisa de censura na era da pós-verdade. A tirania judicial é a forma da ditadura no século 21.
Extra Classe – Como ela atua?
Lacerda – Uma ditadura que não opera pelos mecanismos tradicionais do século passado, pois não temos um Estado de exceção onde a lei é suspensa para todos os cidadãos, justificada pelo discurso da provisoriedade e a pretexto de se enfrentar uma situação extraordinária de perigo.
Extra Classe – Se sob as ditaduras fardadas o inimigo era o comunista, contra quem a tirania judicial se volta no século 21?
Lacerda – Como nos ensina o professor Pedro Serrano, o que temos atualmente são medidas de exceção específicas para um determinado grupo de indivíduos, justificada pelo discurso da seletividade e a pretexto de se eliminar um inimigo. Tais medidas de exceção estão disseminadas contemporaneamente pelas ditas democracias ocidentais. Nos Estados Unidos e na Europa, revelam-se como atos emanados do Poder Legislativo que conferem ampla discricionariedade ao Poder Executivo, justificadas pelo combate ao terrorista. Na América Latina, especialmente no Brasil, as medidas de exceção são praticadas pelo sistema de justiça, que esvazia de sentido os direitos fundamentais e garantias individuais de um grupo específico de indivíduos rotulados como bandidos, traficantes ou corruptos. E a forma mais cruel dessas medidas de exceção são os processos penais de exceção.
EC – Por quê?
Lacerda – O processo penal de exceção camufla o conteúdo autoritário numa maquiagem institucional. É um antiprocesso. É a forma jurídica da perseguição política e econômica na era da pós-verdade. É a violação dos direitos e garantias fundamentais de uma parcela da população (e de seus representantes simbólicos) com verniz hipócrita de licitude. É fruto da manipulação do sistema de justiça criminal (Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário e mídia) para atender aos interesses do mercado contra seus verdadeiros inimigos: o pobre, marginalizado, oprimido e seus representantes políticos.
EC – Quais instâncias do judiciário atuam dessa forma?
Lacerda – É importante deixar claro que não se trata da conduta isolada de uma instância judicial ou de um grupo específico. O que existe é um discurso autoritário dominante na sociedade e recorrente nos meios de comunicação, utilizado para legitimar processos autoritários contrários à Constituição. Descarta-se o texto das normas constitucionais para se ouvir a “voz das ruas”, que na verdade é a voz de quem controla os meios de comunicação na sociedade brasileira. O autoritarismo penal não é um fenômeno recente. Há décadas, temos lutado contra as injustiças praticadas em face dos grupos marginalizados e excluídos. Há décadas temos lutado contra o encarceramento em massa da juventude pobre e negra. Há décadas temos lutado pelo fortalecimento das Defensorias Públicas. Também é preciso que se faça uma crítica aos governos do PT, que mantiveram a política de encarceramento em massa da pobreza. Mas o que houve na década de 2010 foi a ampliação do arbítrio. Ao invés de estendermos os direitos e garantias aos excluídos, ganhou força o discurso segundo o qual deveríamos estender a violência bruta aos “corruptos”. O discurso é pela universalização do autoritarismo penal em nome da segurança pública e da moralidade. Ocorre que o direito penal é sempre seletivo e isso fica claro ao vermos quem são os políticos e empresários condenados nessa década no Brasil.
EC – Que interesses atende essa conduta do sistema de justiça criminal?
Lacerda – Se pararmos, então, para analisar o perfil dos condenados nessa década no Brasil, ficará evidente quais os interesses que orientam essa atuação do sistema de justiça criminal. De um lado, quais foram sempre os alvos tradicionais? Os pobres e excluídos que não interessam aos interesses neoliberais, condenados por crimes patrimoniais e tráfico de drogas. Isso é reflexo direto da enorme desigualdade social, que só pode se sustentar às custas de uma intensa violência estatal repressiva. De outra parte, quais são os novos alvos? Políticos de esquerda e os setores nacionais da construção civil e do petróleo. As perguntas que devem ser feitas para descobrir quem são os reais beneficiários desse processo são: a quem interessa o encarceramento em massa da juventude pobre e negra? Quem ganhou dinheiro com a mudança nas prioridades implementadas pelo governo golpista de Michel Temer? Quem ganhou dinheiro com a ruína das maiores empreiteiras brasileiras e com a exploração do petróleo nacional? Veremos que todos esses interesses convergem para a mesma resposta.
EC – Qual?
Lacerda – A verdade é que o processo penal se transformou em um campo de guerra que busca eliminar os inimigos da racionalidade neoliberal: sejam os pobres inúteis ou os políticos inconvenientes.
EC – Isso explica o atual estado de insegurança jurídica no país?
Lacerda – Como apontei no início, a exceção possui esse caráter de suspensão precária do direito justificada pelo combate a uma situação de perigo. O século 20 assistiu ao surgimento de diversos governos de exceção, num contexto de lideranças carismáticas que se legitimavam pela aclamação popular. Tanto os governos fascistas como as ditaduras militares justificavam-se pelo combate declarado a um perigo social (seja a ameaça comunista ou ideias antissemitas) que justificaria a suspensão do ordenamento jurídico. O Poder Executivo agia como soberano e não estaria limitado pelas leis até que a situação extraordinária fosse superada. O que a realidade nos mostra é que essa situação extraordinária de perigo era mantida artificialmente, ao menos na esfera discursiva, com o propósito de legitimar a continuidade do autoritarismo. Já no século 21, o que vemos no Brasil é uma justiça de exceção.
EC – O que essa justiça de exceção tem em comum com as ditaduras?
Lacerda – Há elementos semelhantes: suspensão dos direitos, combate declarado ao inimigo e lideranças carismáticas. Ocorre que a suspensão dos direitos não é mais limitada no tempo enquanto intervenção provisória, mas passa a ser limitada a um grupo específico de indivíduos na forma de intervenção seletiva. São os bandidos ou corruptos, a quem os direitos e garantias podem ser “relativizados” em nome da moralidade e da segurança pública. Então, a engrenagem autoritária opera de modo diverso. Ao invés de se suspender o direito de todos no contexto de um Estado de exceção, temos medidas de exceção pontuais que anulam especificamente os direitos e garantias dos inimigos. É óbvio que isso traz uma absoluta insegurança jurídica, na medida em que os agentes do sistema de justiça abandonam os limites legais e passam a agir conforme sua consciência, deixando de responder ao conteúdo da Constituição para buscar legitimidade no discurso autoritário da “voz das ruas”.
EC – Qual a diferença entre os processos persecutórios contemporâneos e a caça aos comunistas do passado?
Lacerda – Ninguém precisa de censura na era da pós-verdade. O autoritarismo se reinventou para se adequar à linguagem das sociedades ocidentais contemporâneas. O discurso democrático e os movimentos de defesa dos direitos humanos inviabilizam um autoritarismo explícito, com tanques nas ruas e soldados perseguindo inimigos. Isso é reservado para situações pontuais e acaba sendo mais um teatro, um elemento de marketing eleitoral, do que algo concreto, é o que ocorre na tal intervenção militar no Rio de Janeiro.
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EC – O senhor vê semelhanças entre os golpes de 1964 e 2016?
Lacerda – A diferença do exercício autoritário do poder é a forma. Na década de 1960, o segmento aclamado pela sociedade era as Forças Armadas. Numa ditadura militar, o direito de todos é suspenso e o poder se concentra nas mãos de lideranças do Poder Executivo. Hoje, não vejo espaço para um golpe dessa natureza. Um autoritarismo que se disfarce no discurso democrático é muito mais eficiente e difícil de ser combatido. Uma tirania que assuma a forma institucional de defesa dos direitos humanos, na previsão distópica de Aldous Huxley, que em Admirável Mundo Novo escreveu: “A ditadura perfeita terá as aparências de uma democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros sequer sonharão com a fuga. Um sistema de escravatura onde graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão”. No fundo, qual a diferença entre as nossas prisões e os campos de concentração? Qual a diferença entre o pensamento fascista e o discurso “bandido bom é bandido morto”, tão em moda atualmente? Como analisar o pensamento de uma sociedade que celebra prisões e homenageia a execução de uma pessoa? Muda-se a roupagem, mas o discurso autoritário vive entre nós. Em nossos tempos, a farda foi substituída pela toga, o fuzil deu lugar ao martelo e a mordaça virou fake news no discurso midiático oficial.
EC – Como entender as diferenças – ou pontos de convergência? – entre processo penal de exceção e os conceitos de lawfare, ativismo judicial e populismo penal?
Lacerda – Penso que são conceitos complementares. Existe uma crise de legitimidade da política e do modelo da democracia representativa. As funções legislativa e executiva perderam espaço para o Poder Judiciário. Na última vez que o Brasil ganhou uma Copa do Mundo (2002), tínhamos na ponta da língua os nomes dos onze titulares da seleção. Hoje, quem conhecemos são os onze ministros do STF. Isso mostra o protagonismo assumido pelo sistema de justiça, que se tornou a arena onde são tomadas as decisões socialmente relevantes. Esse ativismo judicial transcende os limites do texto da Constituição e das leis em geral, passando a criar um novo direito a partir da consciência, das crenças, dos preconceitos, de tudo aquilo que é inerente à subjetividade dos aplicadores. Diante desse abandono da lei, onde se busca legitimidade para essas decisões? Na “voz das ruas”, numa sociedade extremamente desigual, individualista, contaminada pelo discurso fascista e bombardeada com uma ideologia do ódio cotidianamente pela grande mídia. É desse modo que o ativismo judicial caminha para um populismo penal. A justiça criminal se torna um espetáculo destinada a vender a ilusão de que a segurança pública será alcançada com mais eficiência do direito penal. A equação anunciada é: mais segurança, menos liberdade; mais prisões, menos direitos fundamentais; mais eficiência, menos garantias; mais poder penal, menos direitos humanos. Esse é o cenário onde atua o processo penal de exceção. Os inimigos são perseguidos com aparência de legalidade, os direitos são violados com legitimidade na “voz das ruas”.
EC – Quem são os alvos?
Lacerda – Como tenho insistido, há dois grupos que são alvos desse processo penal de exceção: os excluídos e seus representantes políticos. Os excluídos são os pobres e marginalizados, em geral a juventude negra de baixa renda e baixa escolaridade. Nunca superamos a cultura escravocrata. Contra esse grupo, a violência sempre foi a regra. Somos a terceira maior população carcerária do mundo e o fato de mais de 70% das pessoas encarceradas responderem por crimes contra o patrimônio (furto, roubo e receptação) ou tráfico de drogas retrata fielmente a pura e simples criminalização da pobreza que marcou toda a história da nossa República. Na década de 2010, contudo, a mesma violência direcionada aos excluídos foi estendida a alguns políticos que poderiam ameaçar os interesses da racionalidade neoliberal: a essa perseguição de alvos políticos específicos pode-se chamar lawfare. Particularmente, prefiro a construção teórica do processo penal de exceção, porque o fenômeno do lawfare – enquanto guerra jurídica deflagrada contra alvos políticos específicos – só pode ser compreendido, no atual contexto brasileiro, como símbolo de uma perseguição maior contra a pobreza, contra a utopia de uma sociedade menos desigual, contra a esperança de um governo popular, contra a inclusão social, contra o fim dos privilégios, contra qualquer medida que afete os interesses do poder econômico.
EC – Por que o processo contra o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva é ilegal?
Lacerda – Do primeiro ao último ato, o processo que resultou na condenação de Lula é repleto de ilegalidades. Desde as interceptações ilegais da então presidente Dilma Rousseff seguida dos vazamentos em rede nacional para pressionar a votação do impeachment, passando pela condução coercitiva (contrariando textualmente o que dispõe o Código de Processo Penal, não passa de um sequestro), pelo indeferimento da produção de provas que interessavam à defesa, pela sentença desvirtuada, pelo julgamento da apelação em tempo recorde, chegando ao acórdão que adotou uma tese que sequer foi sustentada pela acusação.
EC – Por que a condenação pelo TRF4 foi ilegal?
Lacerda – O ex-presidente Lula jamais poderia ter sido condenado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região por articular um esquema de corrupção com a finalidade de financiamento de partidos políticos, agindo “nos bastidores” mediante a indicação de cargos-chave na estrutura de uma organização criminosa, por basicamente sete razões: (1) essa não foi a acusação, (2) nunca houve pedido do Ministério Público Federal relacionado a esses fatos, nem durante o processo nem no recurso de apelação, (3) como essa conduta nunca foi tratada no curso do processo, Lula nunca pode se defender de tais imputações, (4) não existe nenhuma prova sequer relacionada a esses fatos no processo, (5) todas as indicações políticas são condutas oficiais do presidente da república, não há como classificá-las como ação “de bastidores”, (6) em nenhum momento a acusação denunciou Lula por integrar e, muito menos, chefiar uma organização criminosa e (7) não é possível condenar alguém por ser o “garantidor” de uma organização criminosa sem que sequer se tenha apontado quem são os membros e os crimes praticados por essa organização.
EC – Por que o sistema de justiça persegue Lula?
Lacerda – Essa perseguição é o símbolo do autoritarismo contemporâneo. As engrenagens de um sistema de justiça (polícias, ministério público e judiciário), desvirtuado por uma suposta legitimação conferida pelo poder midiático e corrompido pelos interesses econômicos soberanos, reproduzem o que o professor Pedro Serrano definiu como medidas de exceção que esvaziam de sentido a Constituição Federal. O combate à esperança de um novo governo popular é o desfecho do golpe. A figura do inimigo personifica em Lula o símbolo maior da (ainda que remota) ascensão social, econômica e cultural do povo.