GERAL

Patrimônio dilapidado

O governo do estado colocou à venda um lote de 215 imóveis transferidos do IPE Saúde por força de uma lei proposta pelo próprio Executivo
Por Flavio Ilha / Publicado em 8 de outubro de 2019
Sede do IPE Saúde e IPE Prev, na Borges de Medeiros, em Porto Alegre, que não foi alienada

Foto: Igor Sperotto

Sede do IPE Saúde e IPE Prev, na Borges de Medeiros, em Porto Alegre, que não foi alienada

Foto: Igor Sperotto

Já imaginou comprar uma sala comercial, em pleno Centro de Porto Alegre, pelo preço de um carro usado? Ou um edifício inteiro, de 12 andares e mais de 50 apartamentos, também no Centro, pelo preço de uma casa? Esse torra-torra imobiliário existe. E tem como foco o patrimônio de mais de um milhão de segurados gaúchos vinculados ao Instituto de Previdência do Estado.

Mesmo alvo de uma ação civil pública por parte da Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público de Porto Alegre e sob a acusação de estar “enriquecendo ilicitamente”, o governo do estado continua tentando vender os imóveis do IPE Saúde, transferidos para o Executivo em 2017 por força de uma controversa lei proposta pelo próprio governo.

E com um agravante: em muitos casos, as avaliações imobiliárias são anteriores a 2010 e estão, portanto, defasadas em relação ao valor real dos imóveis – permitindo distorções como as citadas anteriormente. Há casos também em que os bens sequer existem, caso de um conjunto de cinco lojas na zona norte de Porto Alegre, onde hoje há apenas imóveis residenciais.

A reportagem do Extra Classe analisou a planilha dos imóveis do IPE Saúde transferidos para o Executivo em 2017 e constatou que mais de dois terços dos bens foram avaliados com valores anteriores a 2010. Em outras palavras, o patrimônio dos segurados – na operação de transferência aprovada pela Assembleia Legislativa ainda no governo de José Ivo Sartori (MDB) – está subvalorizado.

No total, os 215 imóveis foram avaliados em R$ 185.672.594,38. No entanto, o deputado Jéferson Fernandes (PT), presidente da Comissão de Segurança e Serviços Públicos da Assembleia, tem convicção de que o valor é muito maior. Algo em torno de meio bilhão de reais. Para o parlamentar, há em curso um “balcão de negócios” contra o Instituto.

Fernandes (D), presidente da Comissão de Segurança e Serviços Públicos, em audiência pública sobre a transferência de patrimônio do IPE para o estado

Foto: Celso Bender/ Agência ALRS

Fernandes (D), presidente da Comissão de Segurança e Serviços Públicos, em audiência pública sobre a transferência de patrimônio do IPE para o estado

Foto: Celso Bender/ Agência ALRS

“É um processo cheio de irregularidades. Além das subavaliações, a maioria delas anterior a 2010, o Conselho Deliberativo do IPE Saúde não aprovou a operação, como deveria ter feito por força da Lei 12.395, de 2005. E, mesmo com pedido de suspensão feito pelo Ministério Público, o atual governo continua torrando os bens dos segurados”, diz Fernandes.

Os imóveis foram adquiridos ao longo das últimas décadas com os valores das contribuições dos segurados do plano de saúde ou através de doações em pagamento, durante o período em que o IPE financiava imóveis para os seus filiados. Cristiano Castro Forlin, auditor do Tribunal de Contas do Estado (TCE), alerta que é “bastante provável” que os imóveis do IPE Saúde estejam subavaliados, conforme dados de relatório referente às contas de 2018.

As 215 unidades – as exceções são o edifício-sede do Instituto e o teatro localizado no mesmo complexo administrativo – passaram ao controle do estado em 2017, com a lei que separou o Instituto em duas autarquias – o IPE Prev, para administrar as aposentadorias dos servidores públicos gaúchos, e o IPE Saúde, para administrar o sistema de atendimento médico e internações, o qual abrange mais de 1 milhão de pessoas.

Entre os argumentos do Executivo para a transferência, estavam apontamentos do TCE sobre o descontrole na administração dos ativos, a constatação de imóveis desocupados e em mau estado de conservação, ocupações e concessão não formalizada. Aprovado em março do ano passado, o projeto se transformou na Lei 15.144/2018.

O MP, entretanto, vê dois problemas principais nesse processo. Primeiro, os imóveis serviam de lastro ao Fundo de Assistência à Saúde (FAS), cujos recursos eram destinados exclusivamente às políticas de saúde do IPE. Dessa forma, os recursos da alienação de imóveis só poderiam ser usados em benefício dos servidores filiados ao plano de saúde.

Para compensar o “confisco” do patrimônio que lastreava as políticas de saúde do IPE, a lei de 2017 previu apenas que “o Estado do Rio Grande do Sul deverá cobrir eventuais insuficiências financeiras do FAS, até o limite do valor dos imóveis transferidos”. O MP questiona a capacidade do estado em fazer esses aportes, uma vez que sequer consegue pagar em dia o salário dos servidores.

Por isso, a Promotoria de Defesa do Patrimônio Público quer a suspensão da venda dos imóveis e a devolução dos bens ao IPE Saúde. Ou, como alternativa, quer que o estado pague uma indenização ao IPE Saúde por ter lhe tomado o patrimônio.

Na ação civil pública movida pelo MP no final de julho, a promotoria acusa o estado de lesão aos interesses do IPE Saúde e considera que houve “evidente enriquecimento ilícito pelo estado”, além de apontar que a medida afeta a autonomia administrativo-financeira da autarquia.

“Trata-se de uma operação que não existe nem no Direito Público e nem no Direito Civil, porque todas as situações de transferência de propriedade requerem uma indenização, qualquer que seja, sob pena de ficar caracterizado enriquecimento sem causa. O Estado, da forma como foi feita a lei, praticou desapropriação indireta”, explica a promotora de Justiça Míriam Balestro Floriano, autora da ação.

Divisão do IPE à revelia do Conselho Deliberativo

Imóvel localizado na esquina da avenida João Pessoa com a rua Avaí, no Centro Histórico, foi avaliado em mais de R$ 500 mil

Foto: Igor Sperotto

Imóvel localizado na esquina da avenida João Pessoa com a rua Avaí, no Centro Histórico, foi avaliado em mais de R$ 500 mil

Foto: Igor Sperotto

De acordo com a direção do Instituto, os imóveis foram adquiridos ao longo dos 86 anos de existência do IPE para geração de renda. Além desses bens, o IPE também é agente financeiro ativo de imóveis oriundos de carteira habitacional, criada na década de 1970. Conforme a listagem concedida pela autarquia, 107 desses imóveis estão desocupados. Outros 39 estão ocupados, alguns em fase de regularização. O IPE usa, para fins administrativos, para depósito, estacionamento ou agências, 51 desses bens. Outros cinco estão cedidos e três passam por processo de retomada.

O ex-presidente do Conselho Deliberativo do IPE Luís Fernando Alves da Silva diz que o projeto que dividiu a autarquia em IPE Saúde e IPE Prev foi feito à revelia do próprio Conselho Deliberativo do Instituto. Silva lembrou que, em 2015, foi apresentado ao governo um anteprojeto propondo medidas de equilíbrio econômico e financeiro para o IPE. “Mas o projeto ‘dormiu’ na Casa Civil por dois anos. Depois, sem ouvir qualquer entidade, o governo protocolou na Assembleia o chamado projeto
de qualificação e especialização, que é uma privatização disfarçada. Os temores de que a assistência à saúde dos servidores possa ser privatizada são reais”, afirma.

Em abril, o governo de Eduardo Leite (PSDB) colocou à venda um lote de 32 imóveis do IPE Saúde, com avaliação de R$ 6,2 milhões. A maioria das concorrências resultou “deserta”, ou seja, não apareceram interessados. Quatro deles foram vendidos, totalizando R$ 1,6 milhão.

Em outubro do ano passado, ainda no governo Sartori, nove imóveis do IPE Saúde foram alienados em uma permuta entre uma incorporadora e o governo do estado para a construção do presídio de Sapucaia do Sul, o qual deverá ser entregue em outubro. Os bens, todos em Caxias do Sul, foram permutados por R$ 3.759.300 – mesmo valor da planilha que o MP contesta e que quer anular. A permuta foi homologada oficialmente em abril.

Também foram alienados ao BRDE quatro lotes localizados na quadra 158 da avenida Borges de Medeiros, em Porto Alegre, cada um deles avaliado em R$ 5,5 milhões. Da receita, 50% deverão ser destinados à reforma do prédio-sede do IPE Saúde e IPE Prev.

A ação civil pública que tenta barrar a dilapidação do patrimônio do IPE Saúde está parada desde julho no Tribunal de Justiça  (TJ)do estado. Distribuída na origem para a 11ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, a ação foi realocada para o TJ, porque o titular da seccional se declarou incompetente para julgar a questão. Não há prazo para a avaliação da Justiça sobre o caso.

A secretária estadual de Planejamento, Orçamento e Gestão (Seplag), Leany Lemos, justificou que o Rio Grande do Sul possui mais de oito mil imóveis mapeados e que deverão ser objeto de futuras permutas ou alienações. A secretária destacou o fato de o estado dispor de uma legislação que, após as alterações aprovadas ainda em 2016, estabeleceu as regras para troca do patrimônio que não vem sendo utilizado por outras prioridades do serviço público.

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