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Carnaval: da cultura marginal à festa privada

ENTREVISTA | LUIZ ANTÔNIO SIMAS
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 14 de abril de 2022

Foto: Arquivo Pessoal

“O Carnaval está longe de ser uma unanimidade”

Foto: Arquivo Pessoal

O historiador, professor, escritor, compositor e babalaô no culto de Ifá, Luiz Antônio Simas, é uma referência quando o assunto é Carnaval e manifestações da cultura popular brasileira. De 23 livros e “algumas canções brasileiras”, como ele mesmo diz, são dois Jabutis conquistados. Simas, desde 2013, integra o júri do Estandarte de Ouro, o mais antigo e importante prêmio do Carnaval do Rio de Janeiro, também apelidado de Oscar do Samba ou Oscar do Carnaval. É sob essa vasta experiência que ele fala ao Extra Classe sobre o tema. Expondo sua análise dos desfiles programados fora de época – em abril – por causa da pandemia, ele alterna momentos de espantos indignados com o que chama de grande risco, a “mercantilização absoluta” do maior espetáculo da Terra, a um olhar que denuncia o preconceito com uma festa que se originou entre as camadas mais marginalizadas de nossa sociedade

EC – Você apresentou um tema escrito na lousa para seus alunos que dizia “Pensadores do futuro: O papel do Carnaval e da economia criativa, das festas no combate à pobreza”. Vamos começar por aí. Qual é o papel das festas populares no combate à pobreza?
Luiz Antônio Simas – Eu vejo um duplo papel. Eu me baseio muito em uma frase que gosto de citar do Beto Sem Braço, que foi um compositor da Império Serrano, que chegou a ser da Unidos de Vila Isabel e gravado pelo Zeca Pagodinho. Ele gostava de dizer que o que espanta a miséria é festa. Quando eu penso nessa frase, eu vejo que, primeiro, espanta uma miséria – mesmo – existencial. A festa é uma instância de construção de sociabilidade; a festa é a construção de uma ideia de coletividade em um mundo que está cada vez mais individualista. De certa forma, a festa restaura essa dimensão da coletividade como uma instância de construção de um modo de vida. Isso é fundamental. Além disso, se tem também uma economia criativa que circula em torno da festa. Aí, é crucial.

EC – Por exemplo?
Simas – Eu trabalho mais com o Carnaval. Quando a gente pensa o Carnaval, tem toda uma cadeia produtiva da maior relevância que está ligada a essa festa. Você imagina que – vou pegar escola de samba, poderia pegar Carnaval de rua – uma escola de samba com três mil componentes. Se você botar, por exemplo, dez escolas de samba, você está falando aí de 30 mil fantasias. Imagina isso em relação ao trabalho de costureiras, ao trabalho de bordadeiras. Bom, se pensando no desfile da escola de samba, o trabalho do escultor, do ferreiro. Então, tem toda uma cadeia produtiva que circula em torno da dimensão da festa. Eu vejo a festa por essa dimensão dupla que falei de espantar miséria. Uma dimensão existencial, que é vinculada à reconstrução do sentido coletivo da vida, mas, também, em um país complicado, um país injusto, um país onde o mercado formal de trabalho, muitas vezes, é fechado para uma parte muito significativa da população, a festa acaba sendo também uma instância de combate à pobreza extrema. Festa é uma maneira de você se virar, é uma maneira de você fazer o seu corre. Essa dupla dimensão da festa me parece imprescindível para a gente entender um pouquinho a relevância do Carnaval para o Brasil.

EC – Os brasileiros têm noção da economia gerada pelo Carnaval?
Simas – Eu tenho certeza de que não está muito claro. O conjunto da sociedade tem uma visão ainda muito pequena, muito tacanha, em relação à relevância do Carnaval. Uma visão que, em larga medida, é fruto do preconceito. Há uma percepção de que o Carnaval é uma festa de gente desocupada; há uma percepção de que o Carnaval é uma festa alienada; há uma impressão generalizada de que o Carnaval desarticula a cidade. Então, o mito de que o brasileiro gosta de Carnaval precisa ser rediscutido. Porque o brasileiro gosta de Carnaval, mas o brasileiro também odeia o Carnaval. O Brasil é um país tensionado. A gente tem que entender essa dimensão. Eu desconfio muito dos discursos que buscam retratar o Brasil a partir de uma certa ideia afetuosa, que também existe, é claro, mas que apaga uma outra dimensão que convive com essa afetuosa que é a dimensão da tensão, da violência, da disputa, da exclusão social. Isso é muito sério. Eu não tenho a menor dúvida de que parte significativa da sociedade não vê essa força que o Carnaval possui, da força que a festa possui. E tem uma parte que vê, mas, por isso mesmo, teme; por isso mesmo, fica receosa. O Carnaval está longe de ser uma unanimidade; existe uma parcela da sociedade brasileira que é higienista, que é extremamente preconceituosa. Eu não estou falando daqueles que não gostam do Carnaval porque é legítimo não gostar de Carnaval. O que eu falo é da falta de reconhecimento dessa dimensão fundamental que o Carnaval tem.

EC – Falando em Carnaval, neste mês de abril teremos desfiles de escolas de samba no Rio de Janeiro e em São Paulo. Não sei se foi por acaso, mas os cariocas me parecem ter sido mais cuidadosos, promovendo a festa depois da Páscoa, no dia 20. Já os paulistas, um dia antes, no Sábado de Aleluia, outra manifestação popular, mas dentro de um período que, na teoria, seria de reflexão para os cristãos. Como você vê isso?
Simas – Olha! É interessante isso. Porque, na verdade, se você pensa no Carnaval, ele é filho da Quaresma. Mas, de certa maneira, é um filho que afronta. Se você vai lá para a origem do Carnaval, a Igreja tinha criado a Quaresma em um período, inclusive, que não se tinha como escapar disso, em uma época que o Santo Ofício da Inquisição queimava hereges. O Papado determina os 46 dias de jejum, de mortificação e tal. O Carnaval surge como uma festa popular de despedida da carne, o Carne Levare, exatamente porque as pessoas teriam que se entregar à Quaresma. O Carnaval é uma festa em que o profano e o sagrado estão encruzilhados o tempo inteiro. Eu diria que a gente não consegue dimensionar até onde vai o profano e até onde vai o sagrado. A gente está profanando o sagrado e sacralizando o profano o tempo inteiro. Acho, inclusive, que esse Carnaval realizado depois da Semana Santa, em um desfile muito emblemático – pelo menos no Rio de Janeiro, que vai ter desfile no dia de São Jorge (23 de abril), que é um santo extremamente popular na cidade –, muito significativo para esse tensionamento entre o sagrado e o profano.

EC – Vamos aprofundar isso?
Simas – Eu acho que, na verdade, é uma festa de profanação e sacralização o tempo inteiro. O Mircea Eliade, que foi um pensador romeno importante sobre os mitos, lembrava que a própria palavra ‘sagrado’ tem a mesma origem da palavra sacrifício. Você sacrifica o corpo para entrar na dimensão do sagrado. Se pensar bem, o Carnaval também é uma festa de sacrifício dos corpos. Se você está no meio da rua (risos) em um bloco com 500 mil pessoas ou se você veste uma fantasia de 20 quilos em uma escola de samba, há uma dimensão sacrificial aí, não é? Realmente, isso é muito interessante porque nós vamos ter essa curiosa experiência de profanação do sagrado e sacralização do profano, já que a festa está acontecendo. Está tendo ensaios técnicos, os ensaios de rua. Pelo menos, o Rio de Janeiro está vivenciando um Carnaval estendido até o dia 23 de abril.

EC – Outra coisa que você tem criticado é o que chama de “privatização do Carnaval”, com a realização de eventos fechados, ao mesmo tempo em que as comemorações públicas, como os blocos, estavam proibidas e as escolas de samba tiveram seus desfiles adiados por conta da pandemia. Fale um pouco mais disso.
Simas – Em momento algum eu defendi a relação dos desfiles e blocos desconsiderando a pandemia. Eu acho, sim, que a gente tem que ter como prioridade o combate à pandemia; isso é muito evidente. Agora, o que me espantou é que sobrou para o Carnaval popular. Se você justifica de uma forma vinculada à questão sanitária, à ciência, à suspensão de qualquer atividade que gere aglomeração, tudo bem. Eu vou achar legítimo. Mas o que aconteceu – e foi muito flagrante no Rio de Janeiro  – é que as festas privadas – e não eram festas privadas com pouca gente, algumas, inclusive, com uma quantidade muito grande de gente – aconteceram normalmente sem o menor problema, sem a menor repressão e sem qualquer tipo de preocupação sanitária que, de certa maneira, tentasse coibi-las. Na verdade, o que aconteceu foi o seguinte: só não teve o Carnaval popular. Então, o argumento da ciência é um argumento que perde consistência diante desse fato.

EC – Qual é o ponto de atenção aí?
Simas – Aí a gente tem que lembrar de um risco que a gente corre, nós que amamos o Carnaval. O de uma mercantilização absoluta que, no fim da conta, mensure a festa apenas pelo retorno que ela pode dar do ponto de vista da economia. O que acontece?  Uma festa popular, uma festa de rua, uma festa vigorosa, vai perdendo o caráter de festa pública para ganhar status de festa privada, onde o que interessa é o negócio, onde o que interessa é a grana. Isso é muito preocupante. Me parece que nós tivemos neste ano um fato extremamente preocupante que denotou, mais uma vez, o preconceito contra a festa popular. Só a festa popular foi cancelada, enquanto os grandes eventos privados que geraram aglomeração aconteceram normalmente.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

“O Carnaval é uma festa em que o profano e o sagrado estão encruzilhados o tempo inteiro. Eu diria que a gente não consegue dimensionar até onde vai o profano e até onde vai o sagrado. A gente está profanando o sagrado e sacralizando o profano o tempo inteiro”.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

EC – E os blocos como de São Paulo que ganharam recente força e não sairão por falta de acordo com a prefeitura e patrocínio?
Simas – O que me preocupa mais em relação a isso é mensurar como até esse Carnaval de rua, esse Carnaval de blocos, está sendo dimensionado prioritariamente pela questão financeira. Eu conheço muitos blocos que não desfilaram, mas que, entretanto, tocaram em festas privadas. Eu não estou aqui dizendo que isso está certo ou está errado. Cada um encontra sua maneira de ganhar dinheiro. As pessoas têm que trabalhar; a gente está vivendo um momento terrível, um momento muito grave na história do Brasil, com repercussões sérias na economia. Mas o que me espanta é isso. Até essa questão que você colocou levanta, de novo, o elemento fundamental que norteia o que eu estou sentindo: o esvaziamento da festa popular, em nome de eventos privados que geram uma circulação de capital considerável. Isso é lamentável. É uma questão que tem que ser debatida, tem que ser discutida. Os próprios blocos e as pessoas do Carnaval precisam discutir isso com seriedade e rigor.

EC – Você defende as escolas de samba como uma forte manifestação das comunidades. Mas, nos anos 1980, as escolas começaram a ter como patronos mecenas, grandes banqueiros do jogo do bicho. A Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa) só surgiu após um acordo promovido por Castor de Andrade. Como você analisa esse movimento? Eles continuam presentes ou alguém tomou esse lugar?
Simas – As escolas de samba, desde que foram criadas na década de 1930, negociam com todo mundo. Então, se elas negociam com banqueiros do jogo do bicho, ao mesmo tempo negociam com o poder instituído. Entender as escolas de samba e as suas complexidades não é simples. A gente tem a tendência rasa de cair no julgamento moral. O que a gente tem que entender é que, no caso do Rio de Janeiro, estamos falando de instituições criadas por comunidades afro-cariocas, em um país marcado por um contexto no pós-abolição extremamente excludente, onde as pessoas não tiveram acesso à escola, à universidade, ao mercado formal de trabalho e foram construindo a sua vida e as suas relações de sociabilidade a partir de uma série de negociações que são muito amplas. Essa questão do jogo do bicho é uma questão que envolve território, e a primeira coisa que a gente deveria perguntar e as pessoas ignoram é por que que o jogo do bicho foi proibido.

EC – Por quê?
Simas – Se você for estudar a história do jogo do bicho, ele começa a ser reprimido desde a virada da década de 1890 para a década de 1900, porque ele era uma loteria do pobre. O Rio de Janeiro vivia, na circunstância daquele momento, o fato de que toda a ludicidade dos pobres estava sendo proibida. O que aconteceu? Em um certo momento, o jogo do bicho vai se abrir para uma criminalidade que é muito mais ampla do que ele. Vai estar envolvido em uma série de atividades pesadas, com banqueiros do bicho se estruturando como verdadeiras máfias. Isso vai acontecer.

EC – Vamos voltar à questão do território?
Simas – Então, o que eu costumo dizer é que a gente, quando pensa escola de samba, tem que entender o que está sendo construído em um território. A gente tem que entender a dimensão que é a coletividade presente em uma ala de baianas, a coletividade presente em uma bateria e essas relações com os poderes de território que vão se estabelecendo de maneiras complexas. O jogo do bicho continua tendo relações com algumas escolas de samba? Menos do que teve, mas continua tendo. Mas não é só o bicho. Você vai encontrar milícia, vai encontrar artista, vai encontrar baiana. Por quê? Porque escola de samba é sintoma da sociedade. Me parece muito higienista a visão, em uma sociedade tão complexa, que a gente exija das comunidades de escolas de samba que elas estejam imunes a tudo que circunda o processo de formação dos seus territórios. É assim mesmo! A gente tem que encarar isso dessa maneira. Para mim, é muito fácil falar que uma escola de samba tem que ser assim, que não deve fazer isso. As escolas de samba, historicamente, estão inseridas em um contexto marcado por racismo, exclusão, violência, e o que mais me impressiona é como elas conseguem construir ainda, com todas essas contradições, noção coletiva de pertencimento, sociabilidade e beleza.

EC – Fazem o que é considerada a maior festa popular do mundo.
Simas – Isso é que eu acho fundamental. É complexo. Eu vejo muita gente que fala de escola de samba sem vivenciar o que é uma escola de samba. Tem que ir para as entranhas, entender o que está acontecendo ali. Uma frase que eu costumo dizer é a seguinte: uma escola de samba não existe porque desfila; ela desfila porque existe. Uma escola de samba é uma experiência comunitária que está o ano inteiro acontecendo. O Carnaval passa, o desfile passa e um mês depois uma quadra de escola de samba está ativa, já está se pensando um novo enredo, já está acontecendo uma porção de coisas, está tendo feijoada, está tendo roda de samba. Entender essa dimensão complexa é que é fundamental. Ela dialoga com tudo porque ela é um sintoma poderoso da sociedade em que a gente vive.

EC – Os desfiles transferidos para depois do seu momento tradicional amenizam a situação econômica e devem gerar renda para os envolvidos. Mas, no final das contas, tem o mesmo gostinho?
Simas – Eu acho que vai ter por causa das circunstâncias da pandemia. Eu, a princípio, achava que não teria, que ficaria uma coisa meio estranha. Mas, quando começaram os ensaios técnicos na Marquês de Sapucaí, quando eu vi a Vila Isabel saindo na rua, voltando a ensaiar na rua, eu percebi que as pessoas estão com tanta vontade, com tanta sede, com tanta saudade, que acho que a gente vai ter – por incrível que pareça – um grande desfile. É óbvio que acho que é estranho e aguardo ansiosamente que, em 2023, a gente tenha um desfile no Carnaval mesmo. Mas essa ansiedade é tão grande, tem tanto desejo de Carnaval acumulado aí que eu acho que, no fim das contas, a gente vai acabar embarcando nessa e todo mundo vai se emocionar.

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