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Pedagogia das emergências: por uma educação descolonizada e antirracista

A professora da pós-graduação em educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Nilma Lino Gomes fala sobre a contribuição das lutas do Movimento Negro para descolonizar a educação e os educadores
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 13 de março de 2023
Pedagogia das emergências: por uma educação descolonizada e antirracista

Foto: Cláudio Fachel/ Divulgação

“A invenção da ideologia de gênero tem um viés religioso articulado com a má política e com os interesses do mercado. Esses grupos demonizam tudo o que diz respeito ao movimento negro e à luta por direitos”

Foto: Cláudio Fachel/ Divulgação

Professora da Pós-graduação em Educação, Conhecimento e Inclusão Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Nilma Lino Gomes explora nesta entrevista o conceito da pedagogia das emergências, que trata da relação entre o protagonismo do Movimento Negro e uma educação emancipadora, democrática e antirracista. Aparentemente árido para não iniciados, o tema e seus conceitos vêm ganhando espaço entre educadores e pesquisadores. A tarefa é simples: é preciso repensar a escola, descolonizar os currículos e o conhecimento. “São inquietações ligadas às lutas por direito e contra as desigualdades e as discriminações, as quais são imprescindíveis para a construção da política e da teoria educacional, bem como de uma escola democrática e antirracista”, conceitua. Ex-ministra das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos no governo Dilma Rousseff, Nilma organizou, em 2022, o livro Saberes das Lutas do Movimento Negro Educador (Vozes, 272 p.). Nesta entrevista para o Extra Classe, ela fala, ainda, da importância das ações afirmativas, do racismo estrutural. “A permanência do racismo em nossa sociedade, ao longo dos séculos, tem sido mantida pela sua ambiguidade, ou seja, a sua capacidade de se metamorfosear, de afirmar-se por meio da sua própria negação”, alerta.

A professora da pós-graduação em educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Nilma Lino Gomes fala sobre a contribuição das lutas do Movimento Negro para descolonizar a educação e os educadores

Foto: Fernando Razão/ ABr

“O mito da democracia racial tão combatido pelo movimento negro e intelectuais negros e não negros é uma forma de manter essa ambiguidade ativa em nosso imaginário e nas práticas sociais”

Foto: Fernando Razão/ ABr

Extra Classe – A senhora afirma que os Movimentos Negro e de Mulheres Negras têm a capacidade de subverter a teoria educacional e repensar a escola, por meio da “pedagogia das ausências e das emergências”. Do que se trata?
Nilma Lino Gomes – Inspirada na formulação teórica por uma sociologia das ausências e das emergências, do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, que foi meu supervisor de pós-doutorado na Universidade de Coimbra, em 2006, a pedagogia das ausências consiste em um posicionamento de vigilância epistemológica no que se refere ao campo da produção do conhecimento educacional. Deve ser caracterizada pela problematização dos processos lacunares presentes no pensamento educacional e nas humanidades. A pedagogia das emergências é aquela que reconhece e torna crível os saberes produzidos, articulados e sistematizados pelos movimentos sociais e, em especial, pelo movimento negro. E esse reconhecimento implica em transformar e emancipar a prática e o pensamento educacional.

EC – Qual é o objetivo?
Nilma – No caso específico do Movimento Negro, a pedagogia das emergências tem como objetivo fazer emergir o protagonismo do Movimento Negro na relação com a educação, a comunidade educacional, a pesquisa e os movimentos sociais. Tem como tarefa repensar a escola, descolonizar os currículos. Ela poderá nos levar ao necessário movimento de descolonização do conhecimento. Trata-se da possibilidade epistemológica e política de abrir espaço para novas racionalidades, saberes, vivências, reflexões e inquietações educacionais, sobretudo na escola. Inquietações que estão ligadas às lutas por direito e contra as desigualdades e as discriminações, as quais são imprescindíveis para a construção da política e da teoria educacional, bem como de uma escola democrática e antirracista.

EC – A Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da cultura e da história afro-brasileira, trouxe avanços, mas ainda não foi, de fato, implementada. Como a senhora avalia?
Nilma – Essa lei, que é uma alteração da LDB, tem sido implementada, porém, de forma irregular. Dizer que ela não pegou é desprezar a luta de tantas educadoras e educadores, pesquisadoras e pesquisadores que têm realizado práticas pedagógicas e pesquisas importantes e lutam pelo enraizamento dessa legislação, dos seus desdobramentos legais e dos seus princípios na educação básica e no ensino superior. Graças a esses profissionais, temos problematizado a relação entre desigualdades, diversidade, igualdade e equidade racial na educação, realizado práticas pedagógicas e pesquisas, desconfortado poderes racistas instaurados nas instituições educativas e desafiado a política educacional, as escolas e as universidades diante da sua responsabilidade pela efetivação da educação democrática e antirracista de que o Brasil tanto necessita. Uma educação que poderá descolonizar os currículos e ajudar a formar subjetividades insubmissas diante de toda e qualquer forma de racismo e discriminação. Há uma série de experiências, projetos, publicações, pesquisas, disciplinas, orientações curriculares em curso inspiradas nessa legislação no Brasil. Porém, o fato de ser uma implementação de forma irregular nas diferentes regiões, escolas e redes de ensino revela que estamos diante de uma questão estrutural: o racismo presente na sociedade e, por conseguinte, nas suas instituições.

EC – Como esse debate é interditado?
Nilma – A escola é uma instituição social, não nos esqueçamos disso. E se hoje há uma concordância sobre a dimensão estrutural e institucional do racismo, é importante compreender que a recusa de se implementar essa legislação, que é a nossa LDB, não pode ser vista somente como uma ação das pessoas, uma decisão subjetiva, fruto do preconceito. Não. Ela é uma ação intencional, fruto do racismo imbricado em nosso imaginário e práticas sociais, na estrutura das nossas instituições e organizações. A permanência do racismo em nossa sociedade, ao longo dos séculos, tem sido mantida pela sua ambiguidade, ou seja, a sua capacidade de se metamorfosear, de afirmar-se por meio da sua própria negação. O mito da democracia racial, tão combatido pelo movimento negro e intelectuais negros e não negros, é uma forma de manter essa ambiguidade ativa em nosso imaginário e nas práticas sociais.

EC – Como os educadores devem enfrentar esse racismo ambíguo?
Nilma – Combater o racismo não é um dever apenas das pessoas negras, mas uma tarefa de todos os educadores e educadoras, independentemente do seu pertencimento étnico-racial. Infelizmente, não se pode dizer que existem muitas experiências significativas de implementação da alteração da LDB pela Lei 10.639/03 envolvendo os cursos de formação inicial de professoras e professores como um todo. Muitas vezes, essa ação é realizada de maneira solitária por educadores e pesquisadores negros e negras. A formação continuada, principalmente a formação em serviço nas escolas, é a principal responsável pelas práticas pedagógicas de trabalho com as relações étnico-raciais e as questões africanas. Experiências desenvolvidas por docentes e a articulação com o movimento negro e os diversos conhecimentos produzidos pela população negra encontram mais espaço nas ações de formação em serviço dos docentes da educação básica e nos cursos de capacitação, aperfeiçoamento e especialização do que nas licenciaturas e na pós-graduação.

EC – Ou seja, trata-se de uma legislação que reafirma o papel da educação escolar no enfrentamento ao racismo.
Nilma – Ao negar a implementação efetiva da Lei 10.639/03, entendida como LDB, seja por que motivo for, educadores, gestores das escolas, das secretarias, os implementadores das políticas educacionais, os pesquisadores, os juristas, etc., reafirmam a existência do racismo e ofuscam a responsabilidade da educação escolar de combatê-lo. Logo, não contribuem para o aprimoramento da democracia e para a garantia da educação como um direito. Em decorrência do racismo, assistimos, ao longo desses 20 anos, à prática pedagógica e de pesquisa com a educação das relações étnico-raciais e ensino de história e cultura afro-brasileira e africana ser realizada prioritariamente por um ou mais grupos de docentes e pesquisadores negros. Essa é uma situação que tem mudado, porém, muito lentamente. Faz-se, ainda, necessário que o antirracismo seja melhor compreendido como uma ação que deve ser instituída de forma coletiva no campo da educação e na sociedade brasileira.

EC – Qual o papel do ensino superior?
Nilma – O ensino superior possui um alto grau de especialização e as disputas em torno do currículo e do conhecimento são muito duras, a individualização do trabalho acadêmico muitas vezes distancia pesquisadores do trabalho coletivo e político. A exigência de produtividade científica, o racismo epistêmico, a primazia da ciência ocidental e não hegemonia dos saberes que indagam a prioridade da ciência moderna como única e legítima forma de conhecimento acabam desqualificando os saberes construídos pelos coletivos sociais diversos nas suas lutas por emancipação. Tudo isso coloca entraves à descolonização dos currículos e à construção do antirracismo na educação. No caso da questão racial, afirmo que uma forma de descolonização dos currículos das licenciaturas, entendidas como parte do processo de formação inicial, deveria ser o cumprimento das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana que instituem a Resolução CNE/CP 01/2004 e o Parecer CNE/CP 03/2004, os quais regulamentam a alteração da LDB pela Lei 10.630/03.

A professora da pós-graduação em educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Nilma Lino Gomes fala sobre a contribuição das lutas do Movimento Negro para descolonizar a educação e os educadores

Foto: Foca Lisboa/ Divulgação

“No caso específico do Movimento Negro, a pedagogia das emergências tem como objetivo fazer emergir o protagonismo do Movimento Negro na relação com a educação, a comunidade educacional, a pesquisa e os movimentos sociais. Tem como tarefa repensar a escola, descolonizar os currículos”

Foto: Foca Lisboa/ Divulgação

EC – Na prática, como essas diretrizes incidem sobre a proposta de descolonização dos currículos? O que está em disputa?
Nilma – Esses documentos legais dizem respeito à formação docente inicial e continuada de professoras e professores e necessidade de uma urgente revisão curricular e reinvenção da escola e da universidade. Porém, nem sempre esse debate é do conhecimento dos docentes do ensino superior e, em especial, das licenciaturas. Quando isso acontece, a implementação do que está previsto na alteração da LDB pela Lei 10.639/03 enfrenta uma disputa entre conhecimentos. Entra em jogo a tensão entre os conhecimentos considerados clássicos do campo da educação, os quais acabam por privilegiar as metodologias de ensino, a relação ensino/aprendizagem, a alfabetização e a matematização de forma desarticulada com as questões sociais, de gênero, raça, diversidade sexual e direitos humanos. Questões essas que atravessam cada vez mais a vida dos sujeitos da educação em todas as etapas, modalidades e níveis da educação. Um olhar descuidado, desatento e preconceituoso sobre essas questões provoca sérios entraves na relação pedagógica, na aprendizagem, na avaliação e nos processos de socialização do conhecimento. Tudo isso nos ajuda a compreender melhor por que estamos diante de uma legislação educacional cujo objetivo é a não discriminação, a democratização e a emancipação dos sujeitos da educação e que tem sido realizada de forma irregular.

EC – Em geral, há um consenso de que as políticas afirmativas são decisivas para o debate sobre o racismo na sociedade, mas também impõem novas posturas às instituições de ensino superior.
Nilma – As políticas de ações afirmativas tocam, de maneira nuclear, na cultura política e nas relações de poder das sociedades nas quais são implementadas. Seja para confirmá-las ou para refutá-las, a sociedade brasileira passou a dedicar parte do seu tempo a perceber que há uma radicalidade no conceito e na prática efetiva dessas políticas. Por exemplo, a alteração da LDB pela Lei 10.639/03, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas da educação básica; a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003, a qual foi extinta pelos governos Temer e Bolsonaro e recriada em 2023 pelo atual governo Lula; o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/12); a Lei de Cotas Sociorraciais nas Instituições Públicas Federais (Lei 12.711/12), a Lei de Cotas nos Concursos Públicos Federais (Lei 12.990/14). A Lei de Cotas possibilitou o acesso ao ensino superior aos sujeitos sociais concretos. Os estudantes de escola pública, de baixa renda, indígenas, negros e pessoas com deficiência levaram para as Instituições Públicas de Ensino Superior outros saberes, outras formas de construir o conhecimento acadêmico e outras trajetórias de vida, bem diferentes do tipo ideal de estudante universitário hegemônico e idealizado em nosso país.

EC – O que isso representa?
Nilma – Essa entrada de “novos sujeitos”, por meio das cotas-temas como diversidade, desigualdade racial, racismo epistêmico, branquitude, ancestralidade, africanidades, diáspora africana, genocídio da juventude negra, feminicídio negro, entre outros, passou a figurar mais no contexto acadêmico, nas produções teóricas, nos TCCs, em pesquisas de IC, projetos de extensão, dissertações, teses, mesmo que alguns deles ainda encontrem dificuldade de serem considerados academicamente “legítimos”. Novas categorias científicas, novos conceitos estão em jogo, tensionando, problematizando e enriquecendo o conhecimento científico. A assistência estudantil passou a ser tensionada e está obrigada a ser repensada, inclusive do ponto de vista orçamentário. A universidade se deparou com a pressão para desenvolver ações de permanência acadêmica com condições dignas de estrutura física, biblioteca, renovação curricular, atendimento psicossocial efetivo, mais bolsas de pesquisa e extensão que garantam o direito dos diversos coletivos de estudantes, sujeitos das políticas de ações afirmativas e de inclusão social, de completarem os seus estudos com dignidade. As cotas, como uma das modalidades mais radicais de ações afirmativas, têm possibilitado aos estudantes de escola pública, negros, indígenas e pessoas com deficiência o direito de estar lado a lado com os estudantes brancos e de classe média. E mais: várias pesquisas mostram que o desempenho acadêmico dos cotistas é igual ou maior do que dos não cotistas, nas mais diversas áreas.

EC – Como a Lei de Cotas incide sobre a desigualdade e a exclusão?
Nilma – Esse processo tem contribuído para a desconstrução das ideologias classistas, machistas, racistas e capacitistas, no ensino superior. No caso dos negros e negras, as cotas sociorraciais revelam que a sua baixa presença na graduação e na pós-graduação brasileira é fruto de um processo histórico de desigualdade social, racial e escolar e de exclusão do direito à educação para a população negra. Há uma construção perversa de negação de oportunidades no contexto do capitalismo e do racismo, que é intencionalmente camuflada e apregoada como uma questão de mérito. As cotas podem ser entendidas como uma nova forma de garantia de direitos. Nisso, reside o seu potencial emancipatório. Como dizem os estudantes cotistas nas suas organizações políticas: as cotas abrem portas.

EC – Como a senhora avalia as hostilidades e a negação da educação, da ciência e da civilização que marcaram o último governo?
Nilma – A situação de retrocesso da democracia que vivemos nos últimos quatro anos foi um terreno fértil para a reprodução do racismo, e isso teve efeitos negativos na vida da população negra e não negra de modo geral, na escola básica, na gestão das escolas e das Secretarias de Educação, nos Conselhos de Educação e no ensino superior. Vimos perfis muito conservadores e reacionários ocuparem vários espaços de poder e decisão em nossa sociedade, fundamentalistas religiosos que quiseram impor à educação o seu falso cristianismo. A invenção da ideologia de gênero é um exemplo. Trata-se de um viés religioso extremamente articulado com a má política e com os interesses do mercado. Esses grupos ainda não desistiram. Eles demonizam tudo o que diz respeito ao movimento negro e aos demais movimentos sociais que lutam pelos direitos da mulher, dos indígenas, da juventude, das pessoas LGBTQIA+, em prol da liberdade, do direito à diferença e da democracia. Tudo isso reforça a presença de pensamentos e ações de conservadores e reacionários sobre a questão racial e africana nas mais diferentes instituições sociais. Isso é seriíssimo e espero que o atual Ministério da Educação e o governo federal como um todo sejam categóricos na afirmação de que o racismo é crime e não pode ser cometido por ninguém, principalmente pelos profissionais responsáveis pela educação escolar das crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos. des

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