JUSTIÇA

Indígenas acusam liderança por mortes e perseguição na Reserva Serrinha

Duas pessoas foram mortas em uma emboscada e uma está desaparecida. Cacique é acusado de expulsar famílias para arrendar terras para cooperativas
Da Redação / Publicado em 18 de outubro de 2021

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Duas pessoas foram mortas em uma emboscada no interior de Ronda Alta

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“As cooperativas atuam na ilegalidade. Ganham três sacas de soja por hectare”. A declaração da advogada Fernanda Kaingang em um vídeo publicado nas redes sociais no dia 13 de outubro remete a uma prática disseminada nas terras indígenas no Rio Grande do Sul: o arrendamento ilegal de terras das reservas por lideranças para o agronegócio.

Na Reserva Indígena Serrinha, localizada no norte do estado, duas pessoas foram assassinadas em uma emboscada no último sábado, 16. A reserva está sob forte aparato policial desde o final de semana. Dois pelotões de Choque da Brigada Militar de Passo Fundo e policiais da capital foram deslocados para a área da reserva em Ronda Alta e Engenho Velho – a 370 quilômetros de Porto Alegre.

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Vãngri Kaingang apelou em video nas redes sociais por proteção: “estão matando gente aqui”

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Em outra gravação, a Vãngri Kaingang afirma que ao menos cinco indígenas foram torturados e mortos na cadeia indígena por fazerem oposição ao arrendamento de terras. Segundo as denúncias, famílias foram expulsas da reserva e suas terras arrendadas para cooperativas da região para a produção de soja. As famílias também são impedidas de vender artesanato na região. O arrendamento ilegal de terras indígenas é investigado pelo Ministério Público Federal.

No centro das denúncias está o cacique Marciano Inacio Claudino.

Na reserva de 12 mil hectares situada principalmente em Ronda Alta, mas que se estende por Constantina, Três Palmeiras e Engenho Velho, vivem cerca de 1,7 mil indígenas. Os conflitos se concentram nos pouco mais de 7 mil hectares da reserva que ficam no município de Engenho Velho. Em março de 2017, o cacique Antônio Mig Claudino, pai de Marciano, foi assassinado a tiros em uma emboscada. Oito pessoas foram indiciadas pelo crime, mas a disputa envolvendo a partilha dos recursos oriundos do aluguel de terras cultiváveis da aldeia para terceiros só se acirraram.

Emboscada

Vãngri relata que famílias que se opõem a essa prática foram forçadas a deixar a aldeia. No sábado, elas estavam reunidas na localidade de Recanto do Inácio, quando Claudino e outros homens armados, muitos deles não indígenas, chegaram em automóveis atirando. Duas pessoas foram mortas e uma está desaparecida. “Caminhonetes cheia de outros índios para matar os indígenas que não queriam sair, que queriam lutar pelas suas casas”, aponta. O cacique se defende e acusa indígenas da aldeia te tentar mata-lo. Claudino alega que estava em sua caminhonete Hylux na companhia de três homens quando foi alvejado. Ele mostra o veículo com marcas de tiros. Ninguém do grupo do cacique ficou ferido.

Cárcere privado, tortura e milícias

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“Nossa terra indígena tem sido governada por milícias armadas, que se autodeclararam e se mantêm pela força das armas”, denuncia a advogada Fernanda Kaingang

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A advogada Fernanda Kaingang denuncia em vídeo publicado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) que a polícia se recusou a entrar na terra e que indígenas foram mantidas em cárcere privado dentro do ginásio de esportes do Alto Recreio.

“A Justiça Federal sabia, os órgãos de Direitos Humanos sabiam, as organizações pró-indígenas sabiam. E o genocídio continua para que soja seja plantada, para que as terras indígenas continuem privatizadas para o agronegócio”, aponta.

Fernanda explica que a maioria das famílias teve suas terras confiscadas.

“A nossa terra indígena tem sido governada por milícias armadas, lideranças que não foram eleitas segundo o uso, costume e tradição. Se autodeclararam e se mantêm pela força das armas, às custas do arrendamento e não presta contas. Nossa comunidade tem 59% de famílias que não têm terras, que não podem vender artesanato na pandemia, que não podem sair, trabalhar”, desabafa.

Ela reiterou que o Conselho de Anciãos da Terra Indígena Serrinha tem denunciado fraudes, irregularidades e corrupção na gestão das terras. “A liderança responde processo por abuso de autoridade nas eleições municipais, por má gestão dos recursos oriundos do arrendamento. As prestações de contas não são feitas de acordo com as regras contábeis. Tem denunciado desde 2020. Nada foi feito pela Funai, pelo Ministério Público Federal”.

De acordo com a advogada, famílias que denunciaram foram ameaçadas.

“O Dorvalino Fortes morreu, os filhos dele foram expulsos, as casas foram desfeitas. As pessoas foram agredidas, presas, incluindo crianças, as casas estão sendo invadidas. A Polícia Federal foi avisada, a Polícia Civil sabe, a Brigada Militar sabe e nada está sendo feito. Terras indígenas não são terras sem lei. Não é um conflito interno por liderança. As cooperativas atuam na ilegalidade, ganham três sacas de soja por hectare”.

Na gravação, Fernanda pede medidas judiciais contra o cacique. “As pessoas que denunciam estão correndo risco de vida porque a Justiça Federal não deu medidas restritivas contra uma liderança que usa armas, que deixou pessoas morrerem na cadeia”.

Violência fomentada pelo agronegócio

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O cacique Marciano Claudino se defende e alega que foi vítima de atiradores

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A Apib e a Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul) acusaram o governo federal e a Funai de omissão em relação a práticas criminosas de arrendamento cometidas nas terras Kaingang. “Um processo que coopta e corrompe lideranças colocando indígenas contra indígenas em uma política de violência incentivada pelo atual governo, fomentada pelo agronegócio e que gera mortes”. As entidades ressaltam que as famílias estão sendo expulsas dos territórios e apontam a violência causada pelo agronegócio que arrenda parte da terra indígena de Serrinha para o plantio de soja.

“Alertamos sobre a necessidade das instituições de controle e fiscalização do Estado agirem imediatamente para impedir o avanço da violência nas TIs do Rio Grande do Sul. Basta de abandono do Estado, conivência com o roubo de terras e basta de mortes”.

Em um comunicado, a Organização Indígena Instituto Kaingang (INKA) repudiou “todo e qualquer ato de violência física, cárcere privado, intimidações, tortura, morte e toda a forma de opressão contra velhos, crianças, mulheres e homens indígenas do povo Kaingang”. A entidade lembra que está presente e atua pacificamente com educação e cultura indígena na região há quase 20 anos.

“O INKA não compactua com nenhuma forma de mal e vem buscando durante sua caminhada a revitalização, o fortalecimento e a valorização da cultura Kaingang, onde nessa base encontra-se o respeito aos nossos velhos, onde reside a sabedoria do povo Kaingang”, sublinha.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi-Regional Sul) qualificou os arrendamentos de terras como “práticas criminosas”, que desencadearam nos últimos meses uma série de violências em áreas Kaingang do estado, com registros de conflitos internos em função dessa prática em Nonoai, Serrinha, Ventara, Carreteiro e Guarita. “Ou os órgãos de controle e fiscalização da lei agem ou se tornarão cúmplices da exclusão, da fome, do abandono e das mortes nas terras indígenas”, alerta a entidade.

O Cimi Sul repudia veementemente todas práticas de violência internas e externas. Mas esse dia, 16 de outubro de 2021, ficará marcado como um dos mais sombrios e cruéis da história recente dos povos originários. Há notícias de que quatro pessoas foram assassinadas, como resultado de um conflito interno, dentro da Terra Indígena Serrinha, município de Ronda Alta, no norte do Rio Grande do Sul. Muitas outras acabaram sendo espancadas, aprisionadas e tudo para saciar a saga do lucro e da ganância sobre os bens indígenas.

Em nota, o Cimi denuncia “essa prática de esbulho e as violências contra a vida dela decorrentes” e “a omissão e negligência, premeditada ou não, dos órgãos públicos que deveriam atuar no sentido de proteger os bens da União e manter em segurança as comunidades”. De acordo com o coordenador do Cimi Sul, Roberto Liebgott, diversas frentes foram articuladas pelas entidades com o Ministério Público Federal, Justiça Federal, Funai e Conselho Estadual de Direitos Humanos no sentido de aprofundar as investigações sobre as mortes de indígenas, apurar as denúncias de arrendamento de terras e assegurar proteção às famílias.

A Universidade Federal de Pelotas (UFPel) comunicou em nota que “está particularmente consternada com a situação a qual indígenas, incluindo estudantes da Universidade, estão sendo submetidas na Aldeia de Serrinha, no município de Ronda Alta. Há relatos de perseguição, tortura e assassinatos motivados por arrendamento ilegal de terras indígenas”. No comunicado, a instituição manifesta “profunda indignação” e se une ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Regional Sul, “ao exigir que os órgãos federais competentes tomem as providências urgentes e necessárias para impedir que a escalada da violência na região resulte em mais perseguição e mortes”.

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