JUSTIÇA

PL 490, que ameaça sobrevivência dos povos indígenas será votado na Câmara

Regime de urgência à proposta que estabelece o marco temporal de demarcações foi aprovado por 324 a 131 votos. Matéria voltará a ser julgada no STF em junho
Por Gilson Camargo / Publicado em 30 de maio de 2023

Foto: Tiago Miotto/Cimi

PL 490, que estabelece o marco temporal, ameaça sobrevivência e direito originário dos povos indígenas à terra

Foto: Tiago Miotto/Cimi

A Câmara dos Deputados pode votar nesta semana, entre outras pautas como a estrutura de governo, o PL 490/07, que estabelece o marco temporal de demarcação de terras indígenas.

A pauta oficial do Plenário ainda não foi divulgada, mas o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já anunciou que a análise do marco temporal deve ocorrer nesta terça-feira, 30.

Por 324 votos a favor e 131 contra, a Câmara aprovou o regime de urgência para o projeto do marco temporal, que determina que só serão demarcadas as terras indígenas tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

O relator da proposta, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), defendeu a aprovação do texto. Uma nova versão ainda será negociada com os líderes partidários.

A urgência foi aprovada sob protesto das bancadas do PSol, da Rede, do PT, do PCdoB e do PV. A deputada Célia Xakriabá (PSol-MG) afirmou que a Câmara não deveria analisar a questão antes da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema.

“O PL 490/07 quer transformar em lei a tese do marco temporal, que está prestes a ser julgada no STF. E ainda há 14 projetos de lei de retrocesso apensados a ele, abrindo os territórios dos povos indígenas de isolamento voluntário”, criticou Célia.

LEIA TAMBÉM: Boiada da bancada do agro atropela direitos dos indígenas

Julgamento no STF

Foto: Reprodução

Marco temporal está em julgamento no STF desde 2017

Foto: Reprodução

NESTA REPORTAGEM
O julgamento do STF sobre o marco temporal está marcado para o dia 7 de junho. Os ministros vão decidir se a promulgação da Constituição Federal deve ser adotada como parâmetro para definir a ocupação tradicional da terra por indígenas. O relator da ação, ministro Edson Fachin, votou contra a tese do marco temporal.

O Recurso Extraordinário 1017365, que discute a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena e desde quando deve prevalecer essa ocupação, o chamado marco temporal, está em julgamento desde 2017.

Quando da suspensão da última sessão em setembro de 2022, o placar da votação estava empatado, com um voto contrário de Fachin e um favorável, de Nunes Marques.

No ano passado, o então relator do caso, ministro Edson Fachin, reafirmou seu voto contra o marco temporal. Para ele, a data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988, não pode ser considerada como marco temporal para o direito dos povos indígenas à posse do território.

A matéria em julgamento no STF é uma ação de reintegração de posse requerida pela Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Fatma), atual Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), de uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC), declarada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como de tradicional ocupação indígena. O território é ocupado pelo povo Xokleng.

No recurso, a Funai contesta decisão do Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4), que entendeu não ter sido demonstrado que as terras seriam tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e confirmou a sentença em que fora determinada a reintegração de posse ao órgão ambiental.

O que é o marco temporal PL 490

Marco temporal é uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição.

A tese surgiu em 2009, em parecer da Advocacia-Geral da União sobre a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, quando esse critério foi usado.

Em 2003, foi criada a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, mas uma parte dela, ocupada pelos indígenas Xokleng e disputada por agricultores, está sendo requerida pelo governo de Santa Catarina no Supremo Tribunal Federal (STF).

O argumento é que essa área, de aproximadamente 80 mil m², não estava ocupada em 5 de outubro de 1988.

Os Xokleng, por sua vez, argumentam que a terra estava desocupada na ocasião porque eles haviam sido expulsos de lá.

A decisão sobre o caso de Santa Catarina firmará o entendimento do STF para a validade ou não do marco temporal em todo o País, afetando mais de 80 casos semelhantes e mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas que estão pendentes.

PL 490 e o lobby dos ruralistas

Em 2021, o ministro do STF Nunes Marques, indicado pelo ex-presidente Bolsonaro, votou a favor do marco temporal, no caso de Santa Catarina, afirmando que, sem esse prazo, haveria “expansão ilimitada” para áreas “já incorporadas ao mercado imobiliário” no país.

O ministro avaliou ainda que, sem o marco temporal, a “soberania e independência nacional” estariam em risco.

Ele destacou que é preciso considerar o marco temporal em nome da segurança jurídica nacional. “Uma teoria que defenda os limites das terras a um processo permanente de recuperação de posse em razão de um esbulho ancestral naturalmente abre espaço para conflitos de toda a ordem, sem que haja horizonte de pacificação”, disse. Esbulho é a perda de uma terra invadida.

Segundo Marques, a posse tradicional não deve ser confundida com posse imemorial.

Marques citou que a Constituição deu prazo de cinco anos para que a União efetuasse a demarcação das terras. Para ele, essa norma demonstra a intenção de estabelecer um marco temporal preciso para definir as áreas indígenas.

O ministro também entende que a ampliação da terra indígena de Santa Catarina requerida pela Funai é indevida, por se sobrepor a uma área de proteção ambiental.

Direito originário à terraPL490

Foto: Carlos Moura/SCO/STF

Fachin, que foi relator da matéria no STF, votou contrá o marco temporal

Foto: Carlos Moura/SCO/STF

Representantes dos povos indígenas afirmam que o marco temporal ameaça a sobrevivência de muitas comunidades indígenas e de florestas.

Afirmam também que trará o caos jurídico ao país e muitos conflitos em áreas já pacificadas, por provocar a revisão de reservas já demarcadas.

O ministro Edson Fachin é o relator do caso e foi o primeiro a votar. Ele foi contrário ao marco temporal.

Para ele, a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que os indígenas tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal e da configuração de “renitente esbulho”.

O ministro também afirmou que a Constituição reconhece que o direito dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional é um direito originário, ou seja, anterior à própria formação do Estado.

Fachin salientou que o procedimento demarcatório realizado pelo Estado não cria as terras indígenas – ele apenas as reconhece, já que a demarcação é um ato meramente declaratório.

Em nota, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) denunciou que os deputados identificados com o PL 490 defendem a restrição dos direitos das comunidades indígenas com a aplicação do marco temporal, o que negaria todo o histórico de violência, esbulho e exploração das terras, corpos e cultura dos primeiros povos deste país, em benefício dos próprios violadores, sob um falso argumento de defesa das comunidades e paz no campo.

“É neste contexto de retomada do julgamento que trazemos o caso dos povos Apanjêkrá-Canela e Memortmré-Canela, no município de Fernando Falcão, que estão tendo as suas terras tradicionais ocupadas por empresas da soja, que a cada dia enriquecem mais, em virtude da paralisação do processo de demarcação por força da suspensão da portaria declaratória da Terra Indígena Porquinhos, em 2014, que também aguarda julgamento no STF”, aponta a entidade.

De acordo com o Cimi Regional Maranhão, somente no ano de 2022 foram registrados mais de 122 mil hectares de fazendas sobrepostas aos territórios tradicionais reivindicados pelos Canelas, sendo 69 mil hectares sobre a Terra Indígena Porquinhos e 53 mil hectares sobre a Terra Indígena Memortumré Canela após a publicação da Instrução Normativa 09/2020, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), do governo Bolsonaro.

Parecer antidemarcação

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) solicitou à Advocacia-Geral da União (AGU) que revogue o Parecer 001/2017 – “Parecer antidemarcação” – e reverta a posição sustentada pelo órgão no julgamento, ainda sob o governo Bolsonaro.

O Parecer, que chegou a ser suspenso pelo STF, é outro instrumento que busca inviabilizar a demarcação de terras indígenas ao determinar, de forma inconstitucional, que toda a administração pública federal adote uma série de restrições à demarcação de terras indígenas. Entre elas, estão as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol e a própria tese do marco temporal.

Leia também:

Boiada da bancada do agro atropela direitos dos indígenas

Comentários