AMBIENTE

A última fronteira energética da Amazônia

Estratégia do governo de esgotar a capacidade de geração de energia por hidrelétricas até meados de 2030 atinge áreas de proteção e comunidades tradicionais
Por Flávio Ilha, de Itaituba (PA) / Publicado em 15 de dezembro de 2015

A última fronteira energética da Amazônia

Foto: Flávio Ilha

Foto: Flávio Ilha

A rodovia Transamazônica corta a cidade de Itaituba literalmente ao meio, mas apenas alguns quilômetros a oeste – em direção ao Parque Nacional da Amazônia – se trans­forma em uma estrada de terra onde carros de passeio têm enormes dificuldades para transitar. É por esse caminho, a cerca de 80 quilômetros da maior cida­de do oeste paraense, que se chega à comunidade de Raiol – uma vila com pouco mais de uma dezena de casas que ostenta praias de água verde e areias bran­cas. Do outro lado, a dez minutos de barco, São Luiz não é menos exuberante: é ali, no leito do majestoso rio Tapajós, que as corredeiras e pedregais que abri­gam uma das maiores biodiversidades da Amazônia serão engolidas pelo lago de mais uma hidrelétrica.

As duas pequenas vilas, praticamente isoladas no meio da selva, são a última fronteira energética da Amazônia passível de ser explorada comercial­mente. Com um déficit de abastecimento que só não é mais alarmante porque o país está em recessão, o oeste do Pará se transformou na solução de médio prazo para o governo. Por isso, a construção de usi­nas hidrelétricas em áreas de preservação ambiental – caso das unidades de São Luiz e Jatobá, na região do rio Tapajós (PA) – está longe de ser uma exceção. A Eletrobrás, que administra o sistema brasileiro de geração e distribuição, destaca que o Brasil preci­sa de energia “firme e com preço competitivo” para enfrentar os desafios do crescimento – mesmo que isso signifique atropelar áreas de proteção ou comu­nidades tradicionais.

“O Brasil não pode abrir mão de suas hidrelé­tricas, cujo maior potencial instalado está na região Norte. Mas é preciso conjugar o progresso com a preservação do meio ambiente”, reconhece o minis­tro de Minas e Energia, Eduardo Braga. A estraté­gia do governo é esgotar a capacidade de geração de energia por meio de grandes hidrelétricas – o que deve ocorrer até meados de 2030.

Atualmente, cerca de 70% da produção de energia do país vem da matriz hidrelétrica – da qual a região amazônica apresenta o maior potencial, de acordo com o Plano Decenal de Expansão de Ener­gia 2024 (PDE). Fontes renováveis consideradas menos impactantes, como vento e luz solar, repre­sentam cerca de 10%. Segundo o ministro, citando o plano decenal, o objetivo é expandir a geração a uma taxa de 3,8% ao ano – há três anos a taxa era de 4,6% ao ano. A meta é agregar 74 mil MW ao sistema.

A comunidade de Raiol: praias de água verde e areias brancas no traçado das usinas

Foto: Flávio Ilha

A comunidade de Raiol: praias de água verde e areias brancas no traçado das usinas

Foto: Flávio Ilha

“A concretização desse plano depende princi­palmente da obtenção de licenças ambientais, de modo que as usinas possam participar dos leilões de compra. Mas não é uma equação simples, pois os licenciamentos são demorados. E as medidas mi­tigatórias, geralmente dispendiosas”, adverte Braga. O próximo leilão de energia está marcado para 5 de fevereiro de 2016.

Os grandes empreendimentos do Tapajós, en­tretanto, ainda ficarão de fora devido aos proble­mas de licenciamento. Em setembro, o ministério suspendeu o leilão marcado para 15 de dezembro motivado “pela necessidade de adequação associada ao tema do componente indígena”. Comunidades mundurukus que vivem há séculos na região recla­mam que o governo está atrasando a demarcação de suas terras para viabilizar a construção da usina.

Mas o presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Maurício Tolmasquim, não ga­rante o leilão das usinas de São Luiz e Jatobá nem para 2016. “Estamos trabalhando para isso ocorrer com celeridade”, limitou-se a dizer.Tolmasquin ad­mite que o modelo de geração hídrica está com os dias contados, mas não arrisca um palpite definitivo sobre a fonte que irá substituí-la: geração térmica a partir de gás natural ou com base nuclear? “É uma tecnologia (a nuclear) para a qual não se pode fechar a porta. Pode ser necessária no futuro”, prevê.

Dos 21 projetos hidrelétricos listados pelo PDE para operarem até 2024, apenas quatro têm capacidade instalada superior a 1 mil MW – cujos impactos socio­ambientais são mais expressivos. Todos esses empreen­dimentos estão localizados no Pará. A usina de Teles Pires, que colocou a primeira turbina em operação em novembro, é a menor delas, mas já provocou danos “irreparáveis”, de acordo com o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama).

A concessionária da UHE, formada pelas empresas Neoenergia (50,1%), Eletrobras/Furnas (24,5%), Eletrobras/Eletrosul (24,5%) e Odebrecht (0,9%), recebeu Licença de Operação (LO) dia 19 de novembro de 2014 mesmo com o órgão federal alertando que a supressão vegetal (retirada da bio­massa na área a ser alagada) “não estava concluída”. Com isso, a represa foi cheia rapidamente e milha­res de troncos de árvores e galhadas permaneceram no local, a maior parte submersa.

De acordo com o biólogo e pesquisador do Insti­tuto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Phi­lip Fearnside, a “biomassa verde” vai apodrecer dentro da represa e emitir gás carbônico e metano por, pelo menos, dez anos. “Com a estratificação da água no lago, com muito material verde se decompondo, a morte de peixes será inevitável. Os peixes são sensí­veis à falta de oxigênio, que é o que vai ocorrer com a água desse represamento”, critica o pesquisador.

O Ministério de Minas e Energia começou a pres­sionar o Ibama para acelerar as concessões de licenças ambientais para usinas hidrelétricas na Bacia Amazô­nica no final de 2014. O temor do governo federal é que o sistema elétrico entre em colapso em breve, com a alta demanda no consumo e a capacidade de geração estagnada, sobretudo devido à baixa no volume de água nos principais reservatórios da região Sudeste do país.

Erros alteram a vida no rio, a floresta, a economia local e o aquecimento global
No caso de Teles Pires, o programa de desma­tamento e limpeza do reservatório é descrito em um relatório da Companhia Hidrelétrica Teles Pi­res de junho de 2014. O documento mostra que em junho do ano passado, apenas duas áreas haviam sido desmatadas – uma área de 1.040 hectares dos quase 11 mil que seria necessário limpar. “O Ibama sabia que a supressão vegetal não estava pronta, pois os técnicos do instituto faziam acompanhamen­to desse trabalho. Mesmo assim, emitiu a licença às vésperas de um feriado”, acrescenta Fearnside. O bi­ólogo considera o licenciamento de Teles Pires “vergonhoso”.

Usina Teles Pires: áreas alagadas sem desmatamento e desperdício de madeira

Foto: Flávio Ilha

Usina Teles Pires: áreas alagadas sem desmatamento e desperdício de madeira

Foto: Flávio Ilha

O Ibama só constatou que o plano de supressão não havia sido cumprido em fevereiro de 2015, quase três meses após autorizar o funcionamento da hidrelétrica. Se­gundo relatório assinado por técni­cos do órgão, “as atividades de lim­peza da bacia de acumulação foram realizadas de forma pouco criteriosa e até mesmo negligente”.

Antes da fiscalização do Ibama, os erros da usina já haviam sido diagnosticados pelo Instituto Centro de Vida, organização que monitora os im­pactos de Teles Pires nas comunidades locais (Pará e Mato Grosso). O instituto revelou que a usina não havia retirado nem metade da vegetação do local em outubro do ano passado, menos de um mês an­tes de receber a autorização para encher o reserva­tório. Dessa forma, pelas contas da entidade, 6,2 mil hectares podem ter sido alagados com vegetação – mais de mil hectares acima do que deveria ter sido retirado pela empresa.

Os erros cometidos pelo proje­to, incluído na fase Dois do Progra­ma de Aceleração do Crescimento (PAC) não afetarão só a vida no rio e o aquecimento global, mas tam­bém a floresta amazônica e a econo­mia da região. Isso porque a madeira que boia sobre o lago deveria ter sido explorada por serrarias certificadas e vendida legalmente, diminuindo a demanda pela derrubada de mais árvores. Com o desperdício, a ma­deira necessária na região, inclusive nas obras da usina, terá que sair de outro lugar.

Região de expansão da soja, o norte do Mato Grosso está entre os locais com mais desmatamento no país. O município onde fica a maior parte do lago de Teles Pires, Para­naíta (MT), está na chamada “lista negra” do Mi­nistério do Meio Ambiente das cidades que mais desmatam no país. Por isso, a população da cidade sofre restrições de acesso a algumas políticas públicas, como o crédito a produ­tores rurais.

Para Fearnside, pesquisador do Inpa, licenciamento da usina é "vergonhoso"

Foto: amazonia.org.br/Divulgação

Para Fearnside, pesquisador do Inpa, licenciamento da usina é “vergonhoso”

Foto: amazonia.org.br/Divulgação

Mesmo que seguido à risca, o Plano de Desmatamento da usina não teria sido suficiente para conter os impactos ao meio ambiente. O plano, elaborado pelo consórcio e aprovado pelo Ibama, estabeleceu que apenas 58% da vegeta­ção deveria ser retirada dos 10,7 mil hectares alagados.

“Não há rigor científico nesses 58%. O Ibama discutiu diferentes cenários com o empreendedor e estabeleceu um parâmetro ao que era mais econômico para a empresa”, diz Brent Millikan, diretor do programa para a Amazônia da International Rivers, ONG que acompanha o impacto de hidrelétricas em todo mundo. “Não há um processo aberto de debate com a comunidade científica, é um processo entre o Ibama e a empresa. E o Ibama não está, de maneira algu­ma, imune a pressões políticas e econômicas”, alerta.

A última fronteira energética da Amazônia

Arte: Bold Comunicação/ Fábio Alves

Arte: Bold Comunicação/ Fábio Alves

NOTA: Esta reportagem completa a cobertura, iniciada na edição de novembro,
sobre o impacto ambiental e social das hidrelétricas na Amazônia, um complexo industrial de grande porte que irá alagar uma área de 729 quilômetros e terá capacidade de geração de até 14 mil MW de energia.

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