AMBIENTE

Invasão de terras indígenas mais do que dobrou no Brasil

Relatório registra um aumento de 134,9% nas ocorrências em 2019 com relação ao ano anterior. Foram invadidas 151 terras indígenas, de 143 povos em 23 estados. Em 107 casos houve danos ambientais.
Por César Fraga / Publicado em 2 de outubro de 2020
Em agosto de 2019, fazendeiros que ocupam parte da Terra Indígena Valparaíso, reivindicada há 29 anos pelo povo Apurinã, queimaram 600 dos cerca de 27 mil hectares do território localizado no município de Boca do Acre, no sul do Amazonas. Dentre outras severas perdas, a queimada destruiu um castanhal utilizado pelos indígenas como fonte de subsistência

Foto: Denisa Sterbova/Cimi/Divulgação

Em agosto de 2019, fazendeiros que ocupam parte da Terra Indígena Valparaíso, reivindicada há 29 anos pelo povo Apurinã, queimaram 600 dos cerca de 27 mil hectares do território localizado no município de Boca do Acre, no sul do Amazonas. Dentre outras severas perdas, a queimada destruiu um castanhal utilizado pelos indígenas como fonte de subsistência

Foto: Denisa Sterbova/Cimi/Divulgação

Conforme o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2019, publicado e divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no último dia 29 de setembro, os dados do Brasil indígena retratados no primeiro ano do Governo Jair Bolsonaro revelam uma realidade considerada pelos autores do levantamento como “extremamente perversa e preocupante”.

Os dados confirmam que houve intensificação das expropriações de terras indígenas, forjadas na invasão, na grilagem e no loteamento. Modelo que se consolidou de forma rápida e agressiva em todo o território nacional.

Multiplicação de casos

São 256 os casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio registrados em 2019. O que abrange pelo menos 151 terras indígenas, de 143 povos, em 23 estados. Isso representa mais que o dobro dos 109 casos registrados em 2018 e equivale a um aumento de 134,9% no período. Em 107 dessas ocorrências também resultaram danos ao meio ambiente.

Uma análise mais detalhada das fichas descritivas de cada um desses 256 casos revela que na maioria das situações de invasão/exploração/dano houve também o registro de mais de um tipo de dano/conflito, totalizando 544 ocorrências.

Desse modo, é possível verificar um desdobramento dos 256 casos consolidados de acordo com as seguintes motivações:

208 para invasão;
89 para exploração ilegal de madeira/desmatamento;
39 para garimpo e exploração mineral;
37 para fazendas agropecuárias (gado, soja e milho);
31 para incêndios;
31 para pesca predatória;
30 para grilagem/loteamento ilegal;
25 para caça predatória;
25 para empreendimentos de infraestrutura (rodovia, ferrovia, energia elétrica);
14 para exploração ilegal de recursos (areia, mármore, piçarra, palmito);
7 para contaminação da água e/ou de alimentos por agrotóxicos;
5 para empreendimentos turísticos;
3 para rota para tráfico de drogas;

*Cabe ainda ressaltar que estes 256 casos incluíram 107 ocorrências de danos ao meio ambiente (77) e danos ao patrimônio (30), denunciados pelos povos indígenas em suas terras.

Incentivados pelo presidente

O presidente Bolsonaro defende abertamente que os bens comuns dos territórios indígenas, patrimônio da União, sejam disponibilizados para a exploração econômica por setores vinculados ao agronegócio e às mineradoras

Foto: Vinicius Mendonça/Ibama/Divulgação

O presidente Bolsonaro defende abertamente que os bens comuns dos territórios indígenas, patrimônio da União, sejam disponibilizados para a exploração econômica por setores vinculados ao agronegócio e às mineradoras

Foto: Vinicius Mendonça/Ibama/Divulgação

Em alguns episódios descritos no Relatório, os próprios invasores mencionavam o nome do presidente da República,  “evidenciando que suas ações criminosas são incentivadas por aquele que deveria cumprir sua obrigação constitucional de proteger os territórios indígenas, patrimônio da União”.

Outras cinco categorias também registraram alta em 2019 no número de casos em comparação com 2018. Em “conflitos territoriais” subiu de 11 para 35 casos; “ameaça de morte”, de 8 para 33 casos; “ameaças várias”, 14 para 34 casos; lesões corporais dolosas”, de 5 para 13; e “mortes por desassistência”, de 11 para 31 casos.

Alerta do Cimi

Em seu site, o Cimi defende que a “explosão” de incêndios criminosos que devastaram a Amazônia e o Cerrado em 2019, com ampla repercussão internacional, deve ser inserida nessa perspectiva mais ampla de “esbulho dos territórios indígenas”.

As queimadas, conforme o fica demonstrado no levantamento da entidade, seriam parte central de um esquema criminoso de grilagem, em que a “devastação” de extensas áreas de mata é feita para possibilitar a implantação de empreendimentos agropecuários, por exemplo. Os invasores desmatam, vendem as madeiras, tocam fogo na mata, iniciam as pastagens, cercam a área e, finalmente, com a área “desmatada”, colocam gado e, posteriormente, plantam soja ou milho.

Violência contra o Patrimônio

Invasão de terras indígenas mais do que dobrou no Brasil de Bolsonaro (2)

Foto: Denisa Sterbova/Cimi/Divulgação

Foto: Denisa Sterbova/Cimi/Divulgação

Em relação aos três tipos de “Violência contra o Patrimônio”, que formam o primeiro capítulo do Relatório, foram registrados os seguintes dados: omissão e morosidade na regularização de terras (829 casos); conflitos relativos a direitos territoriais (35 casos); e invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio (256 casos registrados); totalizando o registro de 1.120 casos de violências contra o patrimônio dos povos indígenas em 2019.

Das 1.298 terras indígenas no Brasil, 829 (63%) apresentam alguma pendência do Estado para a finalização do seu processo demarcatório e o registro como território tradicional indígena na Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Destas 829, um total de 536 terras (64%) não teve ainda nenhuma providência adotada pelo Estado.

Promessa cumprida

Além de ter cumprido sua promessa de não demarcar um centímetro de terra indígena, o governo Bolsonaro, por meio do Ministério da Justiça, devolveu 27 processos de demarcação à Fundação Nacional do Índio (Funai), no primeiro semestre de 2019, para que fossem revistos.

Violência Contra a Pessoa

No entendimento do Cimi, as violências praticadas contra os indígenas e suas comunidades estão associadas à disputa pela terra. Em relação ao segundo capítulo do Relatório intitulado Violência contra a Pessoa, foram registrados os seguintes dados em 2019: abuso de poder (13); ameaça de morte (33); ameaças várias (34); assassinatos (113); homicídio culposo (20); lesões corporais dolosas (13); racismo e discriminação étnico cultural (16); tentativa de assassinato (24); e violência sexual (10); totalizando o registro de 276 casos de violência praticadas contra a pessoa indígena em 2019. Este total de registros é maior que o dobro do total registrado em 2018, que foi de 110.

O total de 113 registros de indígenas assassinados em 2019, de acordo com dados oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), é um pouco menor do que o total sistematizado em 2018, que foi de 135. Os dois estados que tiveram o maior número de assassinatos registrados foram Mato Grosso do Sul (40) e Roraima (26). Os dados fornecidos pela Sesai sobre “óbitos resultados de agressões” não permitem análises mais aprofundadas, porque não apresentam informações sobre a faixa etária e o povo das vítimas, e nem as circunstâncias destes assassinatos. Eles ainda estão sujeitos à revisão, o que significa que a quantidade de casos pode ser maior.

Omissão do poder público

O Brasil, em 2019, foi o cenário de uma das maiores tragédias ambientais do mundo, em que incêndios criminosos destruíram vastas áreas de territórios tradicionais dos povos originários

Foto: Denisa Sterbova/Cimi/Divulgação

O Brasil, em 2019, foi o cenário de uma das maiores tragédias ambientais do mundo, em que incêndios criminosos destruíram vastas áreas de territórios tradicionais dos povos originários

Foto: Denisa Sterbova/Cimi/Divulgação

Houve um aumento de registros em todas as categorias do terceiro capítulo do estudo, sendo que o total registrado de casos de “violência por omissão do poder público” foi de 267 casos.

Com base na Lei de Acesso à Informação, o Cimi obteve da Sesai dados parciais de suicídio e mortalidade na infância indígena. Foram registrados 133 suicídios em todo o país em 2019; 32 a mais que os casos registrados em 2018. Os estados do Amazonas (59) e Mato Grosso do Sul (34) foram os que registraram as maiores quantidades de ocorrências.

Também houve aumento nos registros de “mortalidade na infância” (crianças de 0 a 5 anos), que saltaram de 591, em 2018, para 825 em 2019. Há registros de 248 casos no Amazonas, 133 em Roraima e 100 no Mato Grosso.

Dados de assassinato, de acordo com as informações da Sesai sobre os registros relativos a suicídio e mortalidade na infância são parciais e estão sujeitos a atualizações. Ou seja, estes dados podem vir a ser ainda mais graves.

Há ainda dados do número de casos nas outras categorias : desassistência geral (65); desassistência na área de educação escolar indígena (66); desassistência na área de saúde (85); disseminação de bebida alcóolica e outras drogas (20); e morte por desassistência à saúde (31).

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