MOVIMENTO

Tempo de dividir

Paulo César Teixeira / Publicado em 25 de setembro de 2001

O pôr-do-sol é um dos cartões-postais mais belos de Porto Alegre. O céu alaranjado do final da tarde é o espetáculo natural de maior impacto aos olhos dos habitantes da capital dos gaúchos. Mas o vasto chão que se descortina na outra margem do Guaíba poderá, em breve, não mais pertencer ao Rio Grande do Sul. Está na Mesa da Câmara Federal, com pedido de urgência para entrar em votação, a proposta de um plebiscito para autorizar a divisão do Estado, com a criação de uma nova unidade da federação plantada na metade sul do território atual. Municípios vizinhos, avistados pelos porto-alegrenses na outra margem do rio, a cada entardecer, como Guaíba e Eldorado do Sul, já estarão do outro lado da divisa interestadual, caso a proposta de cisão seja aprovada no Congresso.

Rio Grande do Pampa, Paraíso do Pampa, Piratini, Farroupilha ou apenas Metade Sul? O nome e a capital também seriam definidos no plebiscito. Com 108 municípios (hoje, o RS tem 389) e 2,5 milhões de habitantes (25% da população atual do RS), o novo Estado ocuparia 51% do território gaúcho. A fronteira seguiria o trajeto sinuoso do rio Jacuí em direção a oeste e, na altura da região carbonífera, se confundiria com a pista da BR-290, esticando-se até São Borja, no extremo oeste. “Não há argumentos contra a emancipação, pois não há precedente histórico de Estado ou município recém-criado que não tenha dado certo”, afirma o principal líder do movimento separatista, Irajá Rodrigues, ex-prefeito de Pelotas. “Nasceria como o 10o Estado no ranking do desenvolvimento nacional. Em pouco tempo, a previsão é de que estaria disputando o 4o lugar”, acrescenta, otimista.

Os gaúchos só não são originais ao levantar o tema. No momento, o Congresso examina 11 propostas semelhantes, picotando principalmente os estados de maior dimensão territorial, como Pará e Amazonas. Os projetos estão encalhados na Mesa por pressão política dos governadores – a amputação de seus territórios seria, no mínimo, uma desmoralização. Olívio Dutra enviou, em 21 de junho passado, carta ao presidente da Câmara Federal, Aécio Neves (PSDB-MG), destacando a “inoportunidade da mais recente iniciativa secessionista”. “Como alguém que prega a democracia pode ser contra o plebiscito?”, critica o prefeito de Uruguaiana, Caio Riela (PTB), que apresentou a proposta na Câmara em 1997, quando era deputado federal.

Coube ao suplente Edir Oliveira (PTB) substituí-lo e arrebanhar 400 assinaturas de colegas para recolocar a proposta de decreto-legislativo instituindo o plebiscito – que havia sido arquivada – na pauta do Congresso. Curiosamente, Oliveira é contra a formação do novo Estado. “Só defendo o direito de todos se manifestarem”, explica o deputado, que mora em Gravataí. As lideranças separatistas gritam contra a redação do decreto-legislativo. Não se sabe se por cochilo ou falta de sintonia, o texto determina uma consulta popular no território atual do Rio Grande do Sul, e não apenas na metade sul. Isso muda radicalmente o resultado. Os defensores do novo Estado foram pegos no contrapé. “Em todo o processo similar, até hoje, só votou o eleitor que propõe a emancipação”, argumenta Rodrigues. Paradoxo: separatistas poderão entrar na Justiça contra o plebiscito pelo qual tanto lutaram, alegando que é inconstitucional. Durma-se com um barulho desses.

O mato seco que alimenta o fogo da secessão é o empobrecimento brutal da metade sul. Os números ajudam a compreender a amargura e o desalento de seus habitantes. A renda per capita é de R$ 4,8 mil, contra R$ 7 mil na parte de cima. Calcula-se que, para acabar com a pobreza, seja necessário investir R$ 8,53 por habitante no sul, enquanto no resto do Estado a quantia é de R$ 3,46. De acordo com a Fundação Getúlio Vargas, entre os municípios gaúchos com mais de 100 mil habitantes, Bagé é o de maior percentual de indigentes. 29,7% da população vive em situação de pobreza absoluta, contra apenas 6% em Caxias do Sul, por exemplo. Os bageenses que escapam da miséria não conseguem pagar as dívidas: o número de pendurados no SPC subiu 37% entre julho do ano passado e julho de 2001. “Isto aqui está horrível, tchê! Os empresários não sabem o que fazer. Só não fui embora porque não há interessados em comprar minhas propriedades”, diz Luís Fernando Dalé, dono de loja de material de construção e presidente do Sindilojas de Bagé.

Such diz que em 2000 o governo estadual aplicou, per capita, até 30% mais na metade sul do que nas outras regiões

A mágica dos números esclarece o descompasso de desenvolvimento entre as regiões e ajuda também a difundir a crença de que, emancipada, a metade sul resolveria seus problemas com vara de condão. Os separatistas calculam o dinheiro que sai da região em impostos estaduais e, automaticamente, o transferem ao caixa imaginário do futuro Estado. “Anualmente, o governo estadual nos tira R$ 1,7 bilhão e só reaplica 6,8% do orçamento. Ficaríamos com R$ 1,7 bilhão para nós e, no primeiro exercício financeiro, disporíamos de R$ 600 milhões para investimentos”, afirma o ex-prefeito de Pelotas. A matemática aqui não é uma ciência exata e causa polêmica. “É uma leitura tendenciosa. Não leva em conta que 80% do orçamento é voltado para pagamento de pessoal e custo de manutenção da máquina estatal, concentrada em Porto Alegre”, rebate o coordenador do gabinete da Metade Sul, do governo estadual, Luiz Henrique Such – um veterinário de Pelotas, que dá aula na UFPel. “No Plano de Investimentos de 2000, a aplicação per capita na metade sul superou em 30% o investimento per capita das outras regiões.”

Alonso, da FEE: pecuária em declínio na região desde meados dos anos 60

Um estudo do economista Darcy Francisco dos Santos, a pedido do deputado Bernardo de Souza (PSB), estima que os municípios da região sul perderiam, em média, 17% de retorno do ICMS com a redução do tributo arrecadado. Em alguns casos, como Herval e Santana da Boa Vista, a perda chegaria a 42%. O especialista afirma que o novo Estado ficaria com 18,3% da receita do RS, o que corresponderia a quase R$ 1,3 bilhão, em 1999. Com isso, a receita corrente líquida alcançaria R$ 1 bilhão, o que é bem inferior a 30% dos gastos de pessoal do RS. Se os dados são corretos, não é difícil perceber a dimensão das dificuldades de caixa que, necessariamente, o novo Estado enfrentaria. “Reconheço que a proposta de separação tem legitimidade devido ao apoio popular, que está crescendo. Mas é um equívoco omitir as despesas inevitáveis com a construção de prédios como os da sede do governo, da Assembléia Legislativa e do Poder Judiciário”, diz João Gilberto Lucas Coelho, titular da pasta extraordinária da Metade Sul durante sete meses no governo de Antônio Britto.

As lideranças separatistas atribuem os dados à má vontade de antigos e atuais governantes. “Nunca fizeram nada por nós. Não têm tempo para nos ouvir”, critica o prefeito de Barra do Quaraí, Eli Manoel Rosa (PTB), que nasceu em Venâncio Aires. Os entusiastas da emancipação estão certos de que o novo Estado nasceria leve como pluma – não teria dívidas! Até os inativos da Previdência estadual continuariam recebendo do governo do Rio Grande do Sul, já que apenas os aposentados após a vigência do novo mapa passariam a integrar um Instituto ainda a ser criado. Imaginam que as despesas com pessoal não ultrapassariam 34% das receitas. É tanta a certeza em sobra de caixa que planejam atrair indústrias com a concessão de incentivos fiscais.

A única mudança importante ocorrida na economia da metade sul foi a introdução da cultura do arroz há 60 anos, o que é considerado insuficiente

Mas, afinal, do que viveria o novo Estado? “É uma fábula o que dá para fazer. 83% do carvão mineral do Brasil está embaixo de nossos pés. Temos o segundo maior porto marítimo do país (Rio Grande) e o maior porto seco da América Latina (Uruguaiana)”, afirma Irajá Rodrigues. E tem mais: a maior lagoa doce do mundo (dos Patos) está na metade sul, o que ajudaria a implantar um turismo capaz de rivalizar com Gramado. Com a emancipação, a metade sul sonha recuperar a economia florescente que experimentou quando era o centro econômico, político e cultural do Estado. Tanto que, no século XIX, eram os gaúchos do norte que queriam se separar. Em 1877, iniciou-se um movimento na Câmara de Vereadores de Cruz Alta para a criação da “Província da Serra”, contra o poder dos “barões” da parte meridional. Como se sabe, não foi adiante.

Por que a região sul empobreceu? “Ficamos com o estigma de terra insurrecta após a ousadia de fazer uma revolução contra o Império”, diz Rodrigues. A partir da Guerra dos Farrapos (1835-1845), as elites econômicas da metade sul não pararam de trombar com as autoridades provinciais e do poder central. A Revolução de 1893 é um marco na virada da hegemonia política no Estado. Liderado por Gaspar Silveira Martins, o sul se levantou contra a Constituição escrita pelo presidente do Estado, Júlio de Castilhos, que lhe dava poderes totais para governar sem ouvir ninguém. Vitorioso nos campos de batalha, o castilhismo impôs como represália que a região vivesse à míngua. “O governo estadual reduziu gradativamente os investimentos num processo que se agravou com o passar do tempo e transformou o sul numa região produtora de miseráveis, que se espalharam para dentro dos centros urbanos da metade norte”, afirma o historiador Décio Freitas.

A tese da perseguição política responsabiliza também Getúlio Vargas, que liquidou o Banco Pelotense, em 1931. “Era o terceiro maior banco do país. O patrimônio da instituição incluía áreas nobres, onde está hoje o aeroporto Antônio Carlos Jobim (ex-Galeão) e a orla da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro”, orgulha-se Rodrigues. Contam que apenas uma fazenda do Pelotense deu origem a cinco municípios em Minas Gerais e outra fez nascer duas cidades no Espírito Santo. O banco estava quebrado de tanto emprestar aos pecuaristas, cada vez mais atolados em dívidas. Getúlio ainda é considerado culpado por decretar grande parte da metade sul área de segurança nacional, o que inibiu investidores externos.

Outra corrente descarta a teoria persecutória. “A secessão é uma teoria que reduz a crise a um problema fiscal, quando a causa é estrutural e tem a ver com a falta de diversificação dos produtos da região”, afirma o presidente da Fundação Estadual de Economia e Estatística, José Antônio Alonso. Para ele, não aplicar os ganhos da pecuária em outros ramos da economia foi fatal. “Se o Texas tivesse ficado apenas com o boi, não estaria produzindo hoje computador. Mas os americanos tiveram a sorte de achar petróleo, o que mudou o perfil da economia.” A única mudança importante na metade sul foi a introdução da cultura do arroz, há 60 anos, o que é considerado insuficiente. “A partir da metade da década de 60, a carne bovina enfrentou a competição aguda de frangos e suínos. Os pecuaristas do sul ficaram ainda mais acuados quando ganharam a concorrência das pastagens do Centro-Oeste brasileiro”, lembra o presidente da FEE.

Todos os municípios do RS com mais de 60% da área ocupada por propriedades acima de 500 hectares estão na metade sul

Separada ou ainda aninhada em território gaúcho, a metade sul precisa encontrar saídas. “Não há solução de curto prazo. Mas a região tem água abundante e sol suficiente para produzir um choque de diversificação agrícola que a salvará num prazo mais longo”, afirma Alonso. Sugere seguir o exemplo das viticulturas na própria região de Livramento. A implantação de outras culturas e de sistemas mais cooperativos implica rever o tamanho das propriedades – no mapa gaúcho, todos os municípios com mais de 60% da área ocupada por propriedades acima de 500 hectares estão na metade de baixo.

O historiador Décio Freitas – citado como referência teórica pelos separatistas – brinca que foi “adotado” pelos separatistas após dar palestra na Câmara Municipal de Bagé. Mas se diz “independente e crítico” e admite ser “improvável” que vote a favor da cisão num plebiscito. “É possível que, ao levantar a bandeira separatista, queiram apenas usá-la como poder de barganha”, especula Freitas. Ao pensar numa saída para a região, lembra uma conversa com Getúlio Vargas em 1946, na fazenda Santo Reis, em São Borja. “Perguntei a ele por que não fizera a reforma agrária. Respondeu que ela viria por si mesma com a industrialização. Só que, para a metade sul, não houve industrialização, nem reforma agrária.”

A METADE SUL EM NÚMEROS
Área – 154.204 km 2 (54% do RS)
População – 2.503.758 milhões de habitantes (25% do RS)
Municípios – 108 (497 no RS)
PIB – R$ 12.250.631.851,00 (18% do RS)
Renda per capita – R$ 4.892,89 (RS: R$ 7.001,10)

Representação Política
Secretários estaduais – 1
Assembléia Legislativa – 8 deputados (de um total de 55)
Deputados na Câmara Federal – 4 (bancada de 31)
Representante no Senado – 1 (total de 3)

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