OPINIÃO

Ocidente versus Oriente

Voltaire Schilling / Publicado em 4 de agosto de 2005

Desde que Napoleão realizou sua famosa campanha do Egito, nos finais do século XVIII, o Oriente Médio transformou-se num palco das rivalidades dos impérios europeus. O alvo do general francês não era controlar as populações muçulmanas ou mesmo extrair algum proveito das riquezas locais, mais sim infringir um dano estratégico à Grã-Bretanha, então arquiinimiga da França Republicana (o famoso corso pensou, ao ocupar o delta do Nilo, isolá-la das suas possessões na Índia). Os povos locais, egípcios, palestinos ou sírios, não contavam, muito menos os interesses deles. O Islã de então encontrava-se estagnado, afundado no atraso das suas areias sagradas.

No passado, todavia, não fora assim. A espada do Profeta, a expansão do islamismo, intensa desde o século VII, provocara pânico na Europa, ao ponto do historiador Fernand Braudel assegurar que todos lá viraram cristãos por medo da presença abrumadora da força dos que seguiam Maomé. Ser um muçulmano significava para os europeus avassalar-se a um chefe mouro, dar seus bens e sua alma a uma fé estranha, ser vassalo da gente bárbara e ascética do deserto. Daí entender-se a popularidade das Cruzadas, desencadeadas pelo Papado e pelos cavaleiros cristãos, a partir do século XI, para recuperar os lugares santos em Jerusalém que, segundo os cristãos, estariam sendo profanados pela presença dos infiéis.

Quanto tempo demandou para que o sentimento da ameaça dos mouros declinasse? Séculos supõem-se. O deslocamento do eixo comercial das cidades mercantis da Europa para o Atlântico (é simbólico que tenha sido um navegante genovês quem tenha descoberto o Novo Mundo e que um outro tenha desbravado a América do Norte) ajudou que deixassem o Oriente Médio no esquecimento.

A decadência do Oriente Médio

Desde tempos muito remotos, os povos e as cidades daquela região haviam assumido o papel de intermediários entre o Oriente e o Ocidente, fazendo do mar Mediterrâneo um lago intercomunicante entre os dois hemisférios comerciais: o Europeu e o Oriental. Ora, com a exploração e conquista do oceano Atlântico, a partir dos finais do século XV, e dos outros mares que a seguiram, o Oriente Médio perdera sua função de intermediação entre o Ocidente e o Oriente. Os grandes filósofos dos tempos medievais, um Avicena, um Al Farrabi, um Averróis, não tiveram sucessores no campo árabe. A notável ciência que desenvolveram, as artes médicas que tanto os celebrizaram, entraram em decadência ou simplesmente murcharam.

Abriu-se então, com a lenta decadência que por lá se instalou, o caminho para a tirania cultural e religiosa dos imãs, dos sacerdotes islâmicos que mantiveram o Oriente Médio aferrado às leituras ortodoxas do Corão. O que, evidentemente, significou o fim das respeitáveis conquistas racionalistas alcançadas anteriormente, nos tempos do apogeu dos califados de Damasco, de Bagdá e de Córdoba, e inviabilizou a possível adesão ao Iluminismo.

No século XIX, com a aceleração da expansão colonialista, a África do Norte e o antigo Levante viram-se palco dos interesses estratégicos das potências européias. Napoleão fizera escola. A Argélia sucumbiu aos franceses em 1830, a Líbia aos italianos e, no começo da década de 1880, foi a vez dos britânicos se assenhorearem do Egito, e, em seguida, do Sudão. Em pouco tempo toda a África e o Oriente Médio foram devorados como se fossem pedaços de um bolo.

O restante da região (a Palestina, o Líbano-Síria e a Mesopotâmia), que até então fora parte do Império Otomano, foi partilhado pelos anglo-franceses depois da Primeira Guerra Mundial (desdobramento do acordo Sikes-Picot, de 1916).

As lideranças muçulmanas se dividiram. Os religiosos mais teimosos inclinaram-se em rejeitar tudo aquilo que viesse do Ocidente, inclusive as inovações tecnológicas como o telégrafo e o telefone, abjurando-os como instrumentos satânicos. Uma minoria da elite mais esclarecida, ao contrário, acreditou que somente aprofundando a ocidentalização, adotando os meios administrativos, educacionais e tecnológicos dos colonialistas, haveria uma possibilidade de adquirir algum dia a autonomia econômica e a liberdade política do povo do Islã.

A situação do pós-Segunda Guerra Mundial

Até 1945, britânicos e franceses mantinham-se no controle de milhares de quilômetros quadrados de território islâmico, área que se estendia das margens do oceano Atlântico, ao ocidente, até o mar Arábico no oriente. Região esta que se valorizara de um modo extraordinário devido às constantes descobertas de novos lençóis petrolíferos (os subsolos da Arábia Saudita, do Kuwait, dos Emirados Árabes, do Iraque e do Irã comportam 60% das reservas petrolíferas do mundo).

Quando os colonialistas foram forçados a recuar, ambos trataram ou de resistir (Guerra da Argélia, 1956-1960) ou de formar monarquias dóceis ao colaboracionismo (dinastia Hachemita, que controlou a Jordânia e o Iraque, entre 1920-1960, e a do rei Faruk, no Egito). Situação que levou ao levante Nasserista no Cairo, de 1952, e a uma série de golpes militares nacionalistas (como o do general Karim Kassem no Iraque, em 1958).

O recuo do colonialismo, todavia, não trouxe a esperada paz para a região. Bem ao contrário. A fundação do Estado de Israel, cuja existência fora aprovada pela ONU em 1947, provocou um novo ciclo de reações hostis em todo o Oriente Médio. A isto juntou-se o fato do quadrilátero árabe tornar-se fronte da Guerra Fria após os dramáticos acontecimentos provocados pela nacionalização do Canal de Suez determinada por Nasser.

A URSS, então, tratou de aliar-se ao nacionalismo árabe emergente, enquanto os Estados Unidos, desde o anúncio da Doutrina Eisenhower, de 1957, que repeliu a intromissão soviética no Oriente Médio, posicionou-se a favor do Estado de Israel e da Monarquia Saudita. Desta maneira, os históricos desertos e as antiqüíssimas cidades da Mesopotâmia, da Síria e do Egito, viraram palco do enfrentamento entre Moscou e Washington.

A importância do Oriente Médio como área estratégica só aumentou desde então devido à crescente dependência ocidental para com o petróleo árabe e iraniano. É isso que faz com que qualquer tumulto que por lá ocorra mereça a atenção da mídia internacional. Gradativamente aquela infeliz região tomou o lugar que antes era assumido pelos Bálcãs na Europa. Um território gerador de problemas e de guerras sem fim. No entendimento dos povos do Levante, trata-se de uma Nova Cruzada desen-cadeada pelo Ocidente contra os seguidores do Profeta, só que a motivação agora não é religiosa, mas sim o controle das jazidas do ouro negro que estão debaixo das areias daquela parte do Oriente Médio.

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