OPINIÃO

Palavras por escrever

Por Valéria Quadros* / Publicado em 11 de maio de 2010

Vínculo, palavra que designa uma relação, um laço. Pensei num vínculo possível entre os filmes Preciosa(USA, 2009) e Pro dia nascer feliz (Brasil, 2006), respectivamente uma ficção e um documentário, um como o avesso do outro. Ambos nos convidam a refletir sobre questões da nossa contemporaneidade permeada pela violência, mas também oferecendo formas de transformá-la, o que talvez já se antecipe na sugestão poética de seus títulos.

O documentário de João Jardim percorre várias escolas pelo Brasil, tanto públicas como particulares, dando voz a jovens alunos e professores. Impacta e comove. Desamparo é a palavra que me ocorre ao escutar as narrativas. Embora interessado na singularidade daquelas pessoas, o documentário não vai se ocupar em detalhe da vida privada.

Em Preciosa é que entramos em contato com esse interior, de certa maneira velado no outro filme. A violência cotidiana e caseira explode de forma bastante diversa no âmbito público. Clareece Precious, a jovem do título, permanecia calada durante a aula, embora pudesse repentinamente fazer-se presente ao bater no colega, “por amor ao professor”, que precisaria, no seu entender, ser protegido. Sem conseguir alfabetizar-se, grávida novamente de seu próprio pai e constantemente agredida e humilhada por sua mãe, é desligada desta escola e colocada em uma escola alternativa, compondo uma pequena classe com algumas outras jovens mulheres. Vivendo no limite, dá mostras de pungente desamparo quando vai ao encontro deste novo grupo. No entanto será ali, no vínculo que vai estabelecer com sua professora, que terá início uma mudança importante em sua vida. Para começar, o difícil trabalho da alfabetização.

No documentário, temos acesso às salas de aula de diferentes escolas e a câmera passeia por rostos de jovens que parecem ensimesmados, com olhar perdido, outros com fisionomia perplexa, talvez sem conseguir estabelecer um contato, seja com o tema, seja com as pessoas ao seu redor. Dependendo do contexto, podem passar despercebidos por um professor assoberbado com as demandas dos demais. Ou seja, não se estabelece um vínculo. Talvez o apelo permaneça mudo, quem sabe desconhecido até mesmo para o próprio jovem. Em outros, o mal-estar se mostra pelo riso, pela agitação do corpo, expressando ansiedades inomináveis, sentidas como inquietações. Enquanto a agressão é explícita no filme americano, neste outro aparece apenas na narrativa dos professores e de alguns alunos. No entanto, a violência impregna boa parte do documentário.

De que violência se trata? Aquela do Estado ao abandonar escolas, professores e alunos? Há professores que expressam sua crítica e seu sentimento de abandono, bem como sua sensação de perda de dignidade ao serem ofendidos pelos alunos. Há sim a violência de jovens entre si até chegar ao extermínio da vida do outro, como aparece na voz em off de uma menina que matou a facadas uma colega na escola. Há a pressão que os jovens de escola privada sentem pelo seu desempenho: “Pressa de saber o que é que você vai ser, qual é a sua. O colégio exige porque a vida exige. Vá bem, faça o melhor de si”. No entanto, a violência pode ser uma das formas como o desamparo se presentifica, justamente como uma maneira de negar este sentimento. Padecemos de desamparo desde o início de nossa vida; nossa inermidade ao nascer e a consciência de nossa finitude são marcas indeléveis da condição humana.

Ambos os filmes apresentam uma gama de situações que nos convocam a pensar questões fundamentais, que vão desde vivências traumáticas de evidente maltrato por parte do adulto que deveria cuidar até aquelas que são próprias a qualquer adolescente. Freud diz que o desamparo inicial do ser humano é a fonte primordial de todos os motivos morais. Sinaliza a grande discrepância entre a completa dependência do bebê e o poder do adulto. Pois bem, esse outro semelhante, do qual depende a continuidade da vida, imprime sua marca na formação do psiquismo. Seu cuidado (aqui incluídos os momentos em que necessariamente frustrará a criança), bem como seu fracasso na forma de maltrato, vão determinar, a par de fatores que poderíamos chamar constitucionais, padrões de relacionamento que tendem a se perpetuar, embora passíveis de mudança dependendo dos “outros” com quem pudermos estabelecer novos vínculos.

A adolescência, para a psicanálise, é o momento de reordenação destas primeiras vivências infantis e pressupõe a elaboração de lutos simbólicos, seja do corpo infantil, seja dos onipotentes pais da infância, o que inclui as questões da identificação, da separação e do reconhecimento da alteridade.

Em Preciosa a protagonista precisará realizar o luto pela perda de seus pais ideais, reconhecendo a violência destes adultos e assumindo sua sexualidade, na forma de sua feminilidade e da maternidade. São comoventes as cenas finais do embate com a mãe, mediado por alguém que faz a função de corte, e da assunção de seus pequenos filhos.

No documentário destaco a jovem que relata a decepção com seus pais e sua crise daí decorrente, colocando-se questões sobre origem e fim, que ela constata irrespondíveis, mas que tiveram em sua professora de filosofia, “uma gênia”, a provável guarida. Faço uso da expressão criativa desta adolescente para identificar no filme outra possível “gênia”: uma professora que mantém e demonstra disponibilidade afetiva para com o seu trabalho e para o contato com os jovens, sem perder sua capacidade de crítica. Propicia o estabelecimento de um vínculo singular e esta nova relação parece ser decisiva na vida de uma aluna.

A jovem adolescente narra o estado melancólico em que se encontrava e como foi decisivo, para sua religação à vida, “algo que a professora disse” sobre o que ela escrevia. Essa professora, mostrada em algumas sequências, é bastante jovem e se destaca por uma postura atenta e calma, valorizando e integrando as contribuições dos alunos. Em sua aula eles interagem, interessados no tema abordado, que não por acaso é o amor e o sexo, a propósito do Romantismo na literatura brasileira. Na verdade esta é a única cena de sala de aula em que esta interação acontece. Noutro segmento, o grupo está na biblioteca produzindo um fanzine. A professora, como vimos antes, mostra uma atitude de reciprocidade sem perder o seu lugar e função. Foi através desse trabalho que a jovem viu valorizado o que escrevia. Não pensava que seus escritos pudessem comover outra pessoa, e “pra escrever eu tenho que estar triste, com raiva de alguma coisa. Triste eu consigo decodificar o que eu estou pensando”.

Também Clareece Precious, através do vínculo com sua empática e paciente professora, vai descobrindo a palavra escrita. Escreve um diário que parece representar a experiência de que sua vida tem agora uma continuidade. Colocando em palavras o que sentiam, estas jovens faziam sua narrativa endereçada a alguém que estava presente (mesmo como interlocutor interno) e que se dispunha a escutar e testemunhar a experiência. Naquele momento a escrita dava sentido a suas existências e ajudava a transformar um sofrimento indizível em um padecimento comum. A esperança como o avesso do desamparo.

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