SAÚDE

Saúde e democracia precisam andar juntas

Para Lucia Souto, sanitarista e presidente do Cebes, setores da mídia e da política que sempre bateram no Sistema Único, hoje admitem que saúde pública é estratégica; 80% dos brasileiros dependem do SUS
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 11 de maio de 2020

Saúde e democracia precisam andar juntas

Fotos: Foto: Marcelo Menna Barreto (esq.) eFoto: Daniel Spirin Reynaldo/Conselho Estadual de Saúde RJ (dir)

Fotos: Foto: Marcelo Menna Barreto (esq.) eFoto: Daniel Spirin Reynaldo/Conselho Estadual de Saúde RJ (dir)

A médica sanitarista Lucia Souto é presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) que – ao lado de instituições como a Fundação Instituto Osvaldo Cruz (Fiocruz) e Universidade de Campinas (Unicamp) – foi um dos berços do Sistema Único de Saúde do Brasil, o SUS. Pesquisadora da Fiocruz, ela própria participou da 8ª Conferência Nacional de Saúde, que influiu decisivamente no capítulo da Seguridade Social da Constituição de 1988 e garantiu aos cidadãos brasileiros o “direito universal à saúde”. Nessa entrevista ao Extra Classe, Lucia fala da importância do SUS – agora, devido à Covid-19, reconhecido até por quem há pouco o criticava e sobre políticas de governo como a Emenda Constitucional 95 (PEC 95), que sufoca o financiamento do sistema. Lucia afirma que o país está no auge de uma disputa civilizatória tão grande que impõe desafios, entre eles, o possível afastamento do presidente da República que vem, “com suas atitudes, cometendo crimes sucessivos contra a saúde pública, provocando caos e confundindo a população brasileira”

Extra Classe – A Covid-19 evidenciou a importância de um sistema público de saúde universal. Os Estados Unidos são um exemplo negativo por não possuírem um e protagonizarem um alto índice de mortalidade na pandemia. A senhora acredita que o SUS se fortaleceu?
Lucia Souto − Acredito que sim, pois o fato do Brasil dispor de um sistema universal de saúde, fruto de muita luta da população brasileira, é sem dúvida um diferencial a nosso favor. É bom lembrar que cerca de 80% da população brasileira não tem plano ou seguro saúde, só isso já demonstra a magnitude do SUS para nosso país. Nesse momento crítico em que vivemos é que podemos sentir na pele o peso do desmonte do SUS pelo seu desfinancianento agravado ainda mais com a Emenda Constitucional 95, do teto dos gastos.

EC – Onde dá para perceber nitidamente esse fortalecimento?
Lucia – É digno de nota que até órgãos da mídia, que sempre bateram no SUS, fizeram editoriais dizendo que saúde é algo estratégico para o país. Sem dúvida, fica muito visível, nesse momento, o reconhecimento da importância da saúde pública. Estamos vendo esse reconhecimento em manifestações de apoio da população – são aplausos, gestos de apoio e solidariedade, que mostram que o SUS está ganhando admiração, corações e mentes de toda população.

EC – O que mais dá para dizer sobre esse fortalecimento que a senhora percebe?
Lucia − Acredito que ficou notória a inteligência coletiva desse sistema (SUS), a competência de profissionais formados ao longo de anos de trabalho – o que não se improvisa do dia pra noite. Uma multidão de pesquisadores da área pública da pesquisa de ponta passa a ter nome e sobrenome e emocionam pela dedicação e responsabilidade. A importância de instituições como a Fundação Oswaldo Cruz, que este ano celebra 120 anos, se agiganta.

EC – Henrique Mandetta, em seu discurso de despedida pós-demissão do cargo de ministro da Saúde por Bolsonaro, fez uma forte defesa e elogios ao SUS. Só que, para muitos, ele entrou para o governo com uma missão anti-SUS. Como a senhora percebe essa dicotomia?
Lucia – De fato, essa é uma constatação que demonstra que, mesmo tendo apoiado o projeto neoliberal de cortes de gastos públicos que ampliaram o desfinanciamento e desmonte do SUS, o ex-inistro Mandetta, na hora da crise sanitária da Covid-19, teve que, no sufoco, reconhecer o papel crucial da existência de um sistema universal de saúde. Em todas as entrevistas coletivas realizadas, ele e sua equipe vestiam coletes do SUS, imagem que mostra esse paradoxo.

EC – Ou seja, na hora do aperto, Mandetta passou a dar a real importância?
Lucia − É bom lembrar que o ex-ministro apoiou a emenda do teto dos gastos que congelou por 20 anos recursos públicos, particularmente da saúde e da educação, com impactos devastadores sobre o desmonte do SUS. Em 2020, R$ 20 bilhões deixaram de ser aportados à saúde em consequência da EC 95. Para o combate à Covid-19, até 14 de abril, entraram apenas R$ 13 bilhões de recursos novos. Um montante irrisório diante da proposta do Conselho Nacional de Saúde de R$ 42,5 bilhões emergenciais para o SUS. Enfim, na hora da crise sanitária, o SUS volta cosmeticamente à cena.

EC − Como a senhora viu a chegada do novo ministro da Saúde, Nelson Teich?
Lucia − Com a nomeação do novo ministro, representante do setor privado, sem nenhuma experiência pública, prevalece o sentimento de incerteza e alarme. O governo radicaliza a tensão entre estratégias do isolamento social, preconizadas pela OMS, e a verticalização. Cria assim um cenário preocupante diante da ascensão da curva dos casos da Covid-19, colapso da atenção à saúde e de leitos de cuidados intensivos em várias regiões do país. O custo social já é catastrófico como o cenário de Manaus, onde o isolamento social não foi adotado e os mortos são amontoados nas funerárias em colapso. Cenário que já se anuncia em outras cidades brasileiras.

EC – O que fazer nesse cenário?
Lucia − Para além da defesa do SUS, temos hoje um desafio político estratégico que é o afastamento do presidente da República que vem, com suas atitudes, cometendo crimes sucessivos contra a saúde pública, provocando caos e confundindo a população brasileira ao insistir na tecla da economia não pode parar.  Estimula o fim do isolamento social, não coloca recursos necessários no SUS, não contrata profissionais de saúde, não induz a fabricação de insumos como equipamentos de proteção individual e respiradores. No lugar da proteção da vida de nosso povo, pratica uma política genocida. Na dimensão econômica e social não operacionaliza medidas como renda básica, cujo valor inicial proposto pelo governo era de R$ 200, ampliada por pressão das oposições para R$ 600, podendo chegar a R$ 1.200. Essa lentidão retira da maioria da população condições de praticar o isolamento social. Os governos dos estados já estimam perdas em mais de R$ 40 bilhões de arrecadação e precisam de recursos retidos pelo governo federal.

EC – Voltando ao SUS, o sistema de Saúde público brasileiro é um dos maiores sistemas do mundo. Mas, o investimento insuficiente do Estado − como a senhora já antecipou − tem inviabilizado o atendimento aos mais de 150 milhões de brasileiros que dependem de assistência pública. O discurso é o de sempre: “Não cabe no orçamento”. O que dizer mais sobre isto?
Lucia – Esse “não cabe no orçamento” é uma das mentiras difundidas pelos defensores do dito Estado mínimo. Mínimo, diga-se de passagem, para a esmagadora maioria da população e máximo para menos de 1% de bilionários. O Brasil ocupa o segundo lugar entre os países mais desiguais do planeta, uma desigualdade ancestral oriunda de sua matriz escravocrata. Todo o momento que o país experimentou projetos de ínfima distribuição de renda foi alvo de golpes contra a soberania popular por uma elite escravocrata. Um pacto antipopular formado desde o início do século 20 quando do nascimento do capitalismo moderno entre nós.

EC – Mas isso não seria um flagrante desrespeito à Constituição?
Lucia – Sim. As conquistas sociais da Constituição de 1988 e o espírito dela foram desde a promulgação da Constituição Cidadã confrontadas pelas elites dos endinheirados, cujo projeto ultraneoliberal sempre considerou a Constituição insustentável com o argumento de que os direitos sociais não cabiam no orçamento. Na verdade, a incompatibilidade do projeto ultraneoliberal com a democracia é inerente. Os reiterados golpes contra a democracia têm adquirido novas formas como o atualizado pelo conceito de guerra indireta, guerra híbrida sempre com o objetivo central: a usurpação da soberania popular, esvaziamento da esfera pública e apropriação do orçamento público por menos de 1% de bilionários. Um projeto predatório que vem conduzindo a humanidade a crises de grandes proporções: crise ambiental, econômica, social e política com aumento abissal das desigualdades sociais e crescente concentração de riqueza.

Foto: Marcelo Menna Barreto

Foto: Marcelo Menna Barreto

Vários países, muitos com governos com agenda ultraneoliberal, 
hoje afirmam a defesa de sistemas públicos de saúde

EC – O coronavírus, sendo um vírus, portanto alheio a conceitos econômicos e ideologias políticas, coloca em xeque o neoliberalismo econômico?
Lucia − O momento que atravessamos, uma crise sem precedentes com pelo menos três dimensões – sanitária, econômico/social e política – da Covid-19, expõe radicalmente a falência desse projeto. A hipocrisia neoliberal está desnudada. Vários países, muitos com governos com agenda ultraneoliberal, hoje afirmam a defesa de sistemas públicos de saúde e aplicam robustas medidas de proteção social. Na verdade, o que não cabe no orçamento é expropriação da riqueza produzida por toda a sociedade por menos de 1% de bilionários. O enfrentamento da desigualdade abissal é hoje uma agenda obrigatória. Vários estudos mostram que políticas de direitos universais de cidadania como saúde são estratégicas para redução das desigualdades. Na verdade, nesse momento de emergência, há uma disputa de projetos entre a civilização ou barbárie. Nesse processo da Covid-19 cresce a consciência de que não há saídas individuais e que a palavra-chave é solidariedade, a construção de políticas robustas  de bem-estar social.

EC – Por que setores da imprensa batem no SUS?
Lucia – Com o sucateamento, as necessidades de saúde da população não são atendidas, criando o terreno fértil para o ataque ao sistema público e elogios à privatização da saúde. Além do desfinanciamento provocado pela EC 95, a atuação do lobby da saúde está presente em projetos como a precarização do trabalho dos profissionais de saúde, contrarreformas trabalhista e da previdência, o desmonte de programas como Mais Médicos, a desestruturação da atenção básica e das redes de atenção, da política nacional de saúde da população negra, da saúde indígena, populações quilombolas,  enfim, o sucateamento do sistema como um todo.

EC – Em resumo, qual o resultado disso?
Lucia − Torna-se invisível a presença do SUS na vida diária de nossa população. Desde a vigilância em saúde sobre alimentos, a vacinação e os procedimentos de alta complexidade como transplantes. O tratamento de doenças como câncer, Aids, tuberculose, diabetes e hipertensão. Enfim, o SUS, que está no nosso dia a dia, sem dúvida é um bem público estratégico da sociedade brasileira.

EC – A senhora falou do lobby da saúde. Vamos falar um pouco mais sobre ele?
Lucia − O Congresso aprovou a EC 95, do teto dos gastos, que, ao desfinanciar o SUS, ampliou o movimento de privatização e o tratamento da saúde como mercadoria, e o mercado de planos de saúde é, historicamente, subsidiado pelo Estado (Nota da Redação: por distintos instrumentos de renúncia fiscal). Em 2015, por exemplo, os subsídios chegaram a R$ 12,5 bilhões. Recursos retirados do SUS, que representavam um terço do orçamento do Ministério da Saúde. Esses subsídios ficaram fora de qualquer ajuste fiscal, pois os gastos indiretos, como desonerações, não entram no ajuste fiscal.

EC – O gargalo está nos procedimentos mais complexos, como exames, internações e cirurgias ou também no atendimento básico?
Lucia – O desfinanciamento do SUS atingiu o sistema como um todo, da atenção básica à alta complexidade. O projeto do SUS com seus princípios de universalidade, integralidade, equidade, participação comunitária pressupõe uma rede de atenção que integre e articule todos os níveis de atenção e complexidade. O desmantelamento do sistema tem sido transversal. A atenção básica – que atua com base na comunidade, família e território – teria uma capilaridade decisiva para uma vigilância em saúde com participação popular decisiva para prevenção, promoção e cuidados, especialmente valiosa em momentos de epidemias como o que enfrentamos no momento. Os níveis de maior complexidade também foram drasticamente afetados pelo desfinanciamento, leitos públicos de alta complexidade foram desativados. Esse quadro é agravado diante de uma pandemia como a Covid-19, com casos clínicos graves que demandam cuidados intensivos.  A incapacidade de um planejamento prévio para dar conta de uma situação já prevista torna esse desfinanciamento crítico.

EC – Qual a saída?
Lucia − A saída para esse desmonte do SUS em todos os níveis de complexidade necessita de investimentos emergenciais de, pelo menos, R$ 42,5 bilhões para implementar as redes de atenção, os territórios integrados de atenção à saúde com recursos dimensionados de acordo com as necessidades de saúde da população.

EC – Mas, como?
Lucia – Colocar como eixo central a defesa de vidas de nossa população. Respeito à Constituição que consagra a saúde como direito de cidadania e não mercadoria e negócio. Retomar o espírito de 1988 para, no período pós-pandemia, consolidarmos um estado de bem-estar social. Financiamento, retomada da cooperação entre entes federados e cooperação internacional. Fortalecimento e respeito à determinação constitucional da participação popular e do controle social. Um dos lemas históricos do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira e Saúde é democracia. Mais do que nunca nesse momento de grave ameaça à democracia reafirmamos esse lema: Saúde é democracia.

EC – Para a senhora, quais os desafios do SUS pós-pandemia?
Lucia – Os desafios dizem respeito ao seu financiamento, sua afirmação como bem público da sociedade brasileira e eixo de um projeto de bem-estar social de políticas universais de direitos sociais. Compreender a importância estratégica do setor Saúde não apenas para garantir uma população saudável, como também como peça indispensável da engrenagem do desenvolvimento nacional soberano e sustentável. O estímulo ao complexo econômico industrial da saúde, por exemplo, pode gerar milhões de empregos e promover a soberania e segurança sanitária. Na pós-pandemia acredito que estaremos vivendo muitas mudanças. Teremos como agenda obrigatória projetos de desenvolvimento solidários com a constatação de que não há saídas individuais, mas coletivas e solidárias, desenvolvimento de políticas de redução das desigualdades abissais, fortalecimento dos  sistemas universais de saúde, instituição de políticas de bem-estar social e adoção de políticas de renda básica universal. Coopereção internacional com a saúde pública como um dos  eixos estratégicos de desenvolvimento.

EC – Somos dependentes de países estrangeiros para insumos de saúde. Como o Brasil pode ter segurança e soberania sanitária?
Lucia – Quando se fala em soberania e segurança sanitária, vamos pensar em alguns fatos que chamaram a atenção no desenrolar da pandemia da Covid-19: em 15 de março de 2020, o jornal alemão Welt am Sonntag publicou que o presidente Trump ofereceu US$ 1 bilhão para uma empresa alemã por uma potencial vacina contra o vírus, querendo garantir sua exclusividade aos Estados Unidos. Outro dia saiu uma matéria no Valor Econômico dizendo que as medidas adotadas pela Índia afetariam a fabricação de medicamentos no Brasil. Todos ficaram sabendo que os Estados Unidos compravam suprimentos (máscaras e respiradores) da China atravessando compras e contratos de outros países. Não ser refém de interesses externos e ser capaz de atender as demandas em saúde da população brasileira é o que entendemos por soberania e segurança sanitária.

EC – Além dos empregos, o que mais essa indústria pode proporcionar?
Lucia – Os dados que temos são estudos que mostram que o multiplicador do gasto em saúde no Brasil é de 1,7, ou seja, cada real de gasto em saúde gera R$ 1,7 a mais no PIB. No que diz respeito especificamente ao complexo econômico industrial da saúde, a gente se refere a todas as indústrias de medicamentos, equipamentos médicos e tudo aquilo necessário ao provimento da saúde à população. Muitas dessas indústrias estão na fronteira tecnológica e podem impulsionar um processo de desenvolvimento reduzindo nossas diferenças para os países centrais. Outras, ainda que não tão avançadas, garantem acesso a tratamentos e diagnósticos que muitas vezes podem não estar disponíveis de acordo com as necessidades da população.

 

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