OPINIÃO

Pátria: violência e reconciliação

Por Marcos Rolim / Publicado em 15 de março de 2021
“Pátria tem tudo a ver com os ideais de um movimento ainda pouco conhecido e valorizado no Brasil, a justiça restaurativa”

Foto: HBO/ Divulgação

“Pátria tem tudo a ver com os ideais de um movimento ainda pouco conhecido
e valorizado no Brasil, a justiça restaurativa”

Foto: HBO/ Divulgação

Fernando Aramburu é um escritor espanhol, de uma geração de escritores brilhantes, entre eles Arturo Pérez-Reverte Gutiérrez, que integram a chamada “Nova Narrativa Espanhola”. Ele é autor de Pátria (Intrínseca, 512 p.), obra cujo pano de fundo é a violência praticada pelo ETA, sigla no idioma basco para “Pátria Basca e Liberdade” (Euskadi Ta Askatasuna), em sua luta pela autonomia do País Basco (Euskal Herria), região que engloba parte do norte da Espanha e do sudoeste da França.

O ETA, uma organização de esquerda, foi fundado em 1959, também como forma de resistência à ditadura de Franco que, por 40 anos, proibiu a cultura e a língua bascas. A grande maioria das ações armadas do grupo, entretanto, ocorreu no período de construção da democracia espanhola, o que revela uma concepção tradicional do marxismo, nunca equacionada pelos seus seguidores e que nos remete à ideia da “Revolução” como ruptura violenta.

Desde a morte de Franco, em 1975, até a extinção do ETA, em 2018, a organização foi responsável pela morte de 845 pessoas em execuções sumárias e atentados a bomba, o que lhe conferiu um perfil claramente terrorista. No conflito, o Estado espanhol mobilizou seu aparato repressivo, mas essa resposta implicou também na prática de crimes, como a execução e tortura de militantes nacionalistas bascos e mesmo de simpatizantes não envolvidos em ações armadas, além das mortes resultantes da ação de grupos paramilitares, como os Grupos Antiterroristas de Liberación, uma espécie de milícia formada por policiais espanhóis e de organizações de extrema-direita, como o Batallón Vasco-Español, Falange y Tradición e Guerilleros del Cristo Rey. Estima-se que, desde as perseguições de Franco, mais de 200 mil pessoas tenham se exilado por conta do conflito.

Pátria conta parte dessa tragédia a partir da vida de duas famílias bascas. Uma delas, atingida brutalmente por um assassinato praticado pelo ETA, outra abalada pela prisão de um militante da organização. Com base na obra, o HBO lançou, em 2020, a série de mesmo nome, dirigida pelo talentoso Aitor Gabilondo, com atuações muito convincentes de todos os personagens, com destaque para as duas protagonistas do drama: a viúva Bittori, cujo marido, o empresário Txato, foi executado, e Miren, a mãe de Joxe Mari, ativista do ETA, que é preso.

O livro de Aramburu e os oito episódios da série nos oferecem uma síntese impressionante dos caminhos construídos pela insensatez político-ideológica. Vizinhos, amigos e mesmo familiares que sempre conviveram em paz são tensionados pela asfixiante polarização política, transmudando-se em inimigos jurados. O processo é rápido e ocorre na sequência de rituais de isolamento e exclusão daqueles que foram marcados como “inimigos”. A eles, já não se concede a palavra e é preciso que saiam do país, ou que se preparem para o pior. Todos os laços de solidariedade e empatia antes existentes e todos os compromissos propriamente humanos se dissolvem na terra que já não pode compartilhar sequer seus túmulos.

O movimento interno da trama, o impulso que a conduz, está claramente vinculado à busca pela verdade. Para Bittori, é só o que importa. A expectativa de que os detalhes da execução do marido sejam finalmente conhecidos não diz respeito, como se poderia esperar, à vingança ou a uma demanda punitiva. A história, afinal, se passa após a deposição de armas pelo ETA, fato que já havia colocado fim à guerra. Restavam as feridas, entretanto. Como impedir que elas seguissem sangrando o chão da pátria com a incompreensão?

O que a experiência histórica parece mostrar é que o caminho possível para a reconciliação exige o arrependimento e o perdão. Nesse particular, Pátria tem tudo a ver com os ideais de um movimento ainda pouco conhecido e valorizado no Brasil, a justiça restaurativa, o que é mais uma razão para ler a obra e/ou assistir à série.

Penso que Pátria diz algo sobre o Brasil também, e sobre qualquer experiência histórica em que foi preciso um acerto de contas com um passado povoado por mortos, por sofrimentos e por ilusões. Algumas nações trataram essas lembranças com respeito e consideração, permitindo que a verdade histórica viesse à tona. Não foi esse o nosso caso, como se sabe. No Brasil, a anistia veio, pelo contrário, para que a verdade nunca fosse contada.

O processo pelo qual se permite que o passado seja conhecido costuma ser doloroso, porque a verdade tem a mania de desagradar. As mentiras, nesse aspecto, são muito mais condescendentes e consolam com mais facilidade. O problema é que, com as mentiras, não há deslocamento possível, e os polos extremados pelo conflito se mantêm tensionados. Quando menos se espera, alguém atiça os rancores guardados, o choro contido, as frustrações reprimidas. Quando isso ocorre, o ódio retoma seu passeio macabro e os piores afiam suas facas.

Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

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