OPINIÃO

Cultura no Brasil atual: arte e mimese em uma sociedade transtornada

Por Francisco Marshall / Publicado em 25 de fevereiro de 2022

Foto: Alisson haguiar Phernandes/Divulgação

Cena do espetáculo O inverno do nosso descontentamento – nosso Ricardo III, de Luciano Alabarse com a Cia. Teatro ao Quadrado (Marcelo Adams e Margarida Peixoto)

Foto: Alisson haguiar Phernandes/Divulgação

Podemos equacionar esta questão em dois sentidos: da cultura para o Brasil, e deste para a cultura. O que a cultura oferece a um país potente e transtornado, e o que este país oferece ao mundo da criação artística? Há fluxo e refluxo entre esses pontos de vista, mas podemos analisá-los separadamente. Vejamos o que a cultura pode nos oferecer, neste momento.

Comecemos pelo conceito de cultura, que podemos tomar de Aristóteles (384-322 a.C.), quando analisa a tragédia grega (obras de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, do século V a.C.), na Poética, e constrói sua versão do conceito de mimese.

Para o fundador do Liceu, a arte presta grande benefício à cidade, ao purgá-la de tensões, pela catarse. Muitos leem esta palavra grega, katársis, já adaptada, como sinônimo de êxtase, mas sua origem é médica, o verbo kataró, que quer dizer purgar, purificar, livrar de impurezas.

Então, para uma cidade e suas enfermidades – e sempre as há –, prescreve-se mimese e catarse, por meio da cultura. A mimese, por sua vez, não é cópia ou imitação, mas análise por meio de representação estética, dotada de emoção.

Imita-se, diz o filósofo, para aprender e para ter prazer. O que se imita? Responde reiteradamente Aristóteles: ações e vida. São as ações de um mundo em que temos que enfrentar desafios, conhecer opções e tomar decisões, diante do destino e das circunstâncias, com prudência e ética, no caminho da felicidade, meta maior da filosofia e da existência; e vida, o mundo em sua dinâmica, sobretudo a vida que levamos na pólis, em relações sociais sempre complexas.

Isso nos leva a compreender a cultura como a análise mimética dos mundos em que vivemos, incluindo-se o mundo subjetivo e os vários níveis dos mundos que nos circundam; análise mimética com imagens e emoções que conduzem simultaneamente o pensamento e o tempo do corpo envolvido em um rito transformador. Como é próprio da arte, esta análise é feita em representações por meio de signos enriquecidos, com poder simbólico, e sentimentos intensificados.

Esse conceito de cultura como análise mimética permite diferenciarmos entretenimento e cultura, pois esta, mesmo quando se serve dos atrativos do entretenimento, permite atividades de pensamento e eventuais mudanças de comportamento, individual e social.

Ademais, a cultura pode ser uma forma de educação acelerada, com valores e finalidades em harmonia com aqueles elaborados com maior densidade e tempo nos processos educacionais. Isso reforça o valor da cultura em todas as práticas curriculares, e amplia nossa percepção do poder da cultura.

Papeis sociais da arte

Diante desses conceitos, temos que retomar a pergunta originária: o que a cultura oferece ao Brasil atual?  Como estamos processando as severas condições de vida atuais, diante de violências, irracionalidades, retrocessos, falsidades e intenções perversas postas a valer por um governo exageradamente maligno, representativo de parte importante da população, disseminado como uma epidemia a agredir a vida e seus valores?

Além dos argumentos e análises acadêmicas e jornalísticas, há um massacre de sensibilidades e uma carência de elaborações que ao mesmo tempo façam o diagnóstico dos males, pela representação, e seu enfrentamento profilático, que inclui a restauração de condições sadias de vida e de motivação para avançarmos nesta era tenebrosa. Papeis sociais da arte.

Esses conceitos excluem a noção ingênua de arte e cultura, em que esta é enlevo ou ornamento do espírito. Isso é importante, mas insuficiente. Precisamos muito mais, e podemos.

Diga-se ainda que estas definições nada têm a ver com distinção entre erudito e popular, pois atuações como as de Anitta e de boa parte da nova música popular brasileira, sobretudo o funk das periferias, realizam exemplarmente essas finalidades culturais.

O que precisamos é elaborar em obras de arte, de variados gêneros, as formas de representar os horrores que ora vivemos, do ataque às conquistas democráticas, às condições de gênero e sexualidade, à arte, à ciência e à educação, aos direitos humanos, ao meio ambiente e, pior dos sintomas, também à saúde e à possibilidade de se sobreviver e de viver com qualidade. Junto com essas denúncias, os sonhos do que podemos e queremos ser, bem melhores.

Todos esses assuntos são comentados em diferentes níveis e ambientes, com análises densas ou opiniões postas em circulação, mas requerem que sua força seja promovida, transformada e difundida com os poderes da cultura.

Quando isso ocorre, o conhecimento se transforma, adquire a vitalidade e a grandeza que lhe abrem corações e mentes e faz correrem pela nação as consciências e atitudes reclamadas pelo tempo histórico, mais belas e significativas quando propagadas com arte.

A arte necessária

Varia a aptidão de cada tipo de arte para realizar esses fins culturais e políticos. As artes mais abstratas, como as músicas erudita e instrumental, neste ponto cedem o passo para a fotografia, o cinema, a pintura, a poesia e a música com letras, a literatura e, acima de todas, o teatro, pela sua condição de totalidade e vitalidade, bem calçada na herança da tragédia grega.

Cabe declarar que já temos, em 2022, a obra capaz de mimetizar e analisar o âmago desta era mórbida, com enorme potência artística: a montagem de Luciano Alabarse com Cia. Teatro ao Quadrado (Marcelo Adams e Margarida Peixoto): O inverno do nosso descontentamento – nosso Ricardo III.

Nesta montagem, que em 2022 estará em cartaz em diferentes teatros e momentos, parte-se de Ricardo III (c. 1592), tragédia histórica de William Shakespeare (1564-1616), para uma reescrita do texto e do drama, analisando-se a cobiça do poder e suas patologias.

Eis a arte necessária para o Brasil atual, e com ela o símbolo do tanto que ainda temos que enfrentar e criar para seguirmos o dito de Maiakovsky (1893-1930):

“para o júbilo
o planeta está imaturo
é preciso arrancar
alegrias ao futuro”.

 

Francisco Marshall é professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atuando no Departamento e PPG História (IFCH) e no PPG Artes Visuais (IA).

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