OPINIÃO

Palavras

Por Luis Fernando Verissimo / Publicado em 11 de maio de 2022

A palavra

Ilustração: Ricardo Machado

Ilustração: Ricardo Machado

 

O enfadonho não enfada, apenas. Sua enfadonhice tem algo de denso e irrecuperável

Nunca encontrei uma explicação satisfatória para a origem da palavra “sacanagem”. Como ela tem um som algo francês, e como os franceses têm uma palavra para tudo, especula-se que seja um galicismo adaptado. Viria de “sac a nager”, bolsas de ar que ajudavam os franceses arcaicos a boiar e que acabou adquirindo o significado de sacanagem como a conhecemos hoje. Talvez devido à prática de furar os sacos para afundar os franceses, que ficavam se debatendo na água e gritando “Mon sac a nager! Mon sac a nager!”, enquanto os ingleses, na margem, disfarçavam o riso.

Uma palavra ótima é “enfadonho” para descrever alguém. Tem o mesmo sentido de aborrecido, cansativo, chato, mas não é a mesma coisa. Não corresponde nem ao seu sentido literal, aquilo ou aquele que dá enfado. Pense nas pessoas enfadonhas que você conhece. Nenhum outro adjetivo salvo “enfadonhas” as descreveria, certo? O enfadonho não enfada, apenas. Sua enfadonhice tem algo de denso e irrecuperável. Deveria existir o verbo “enfadonhar”, como em “Não me enfadonhe!”. Porque, além de tudo, a enfadonhice é contagiosa.

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Louco por futebol, eu acompanhava pelo rádio e pelos jornais (não existia TV na época, acredite) o futebol de Buenos Aires, a grande cidade mais próxima de Porto Alegre. Um dia, a turma da zona decidiu que nosso futebol de terreno baldio e calçada merecia um nome. A sugestão vencedora foi a minha: Racing. Não era o meu time em Buenos Aires – por alguma razão, torcia pelo River Plate –, mas o nome soava bem. Lembrava “raça”, nada mais argentino. Só muito depois me dei conta que “racing” era inglês, um dos tantos vestígios que os ingleses deixaram na língua e na alma dos argentinos. Mas, na época, nossa intenção era sermos argentinos.

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Do valoroso “Racing” só ficaram estas lembranças – e um esboço de escudo, que eu mesmo fiz e encontrei, anos mais tarde, entre outros papéis guardados. Levei algum tempo para decifrar as letras no escudo: RFR. Por que RFR? E então me lembrei. Alguém tinha sugerido “Racing de Futebol e Regatas”. Ninguém se lembrou de perguntar onde e como praticaríamos regatas no nosso bairro, que não tinha nem um açude. Era influência do Rio, onde os times de futebol também eram de regatas. O nome completo foi aceito por aclamação. Porque pouco importava se não tínhamos como cumprir o que dizia o escudo. Ser “de regatas” nos dava uma dimensão especial. Além de argentinos imaginários, éramos também cariocas no nome. Não era preciso ter barco e remos ou sequer chegar perto do Guaíba para ser “de regata”. “Regata”, no caso, nem era uma palavra. Era um símbolo hierárquico.

Sinal de que não éramos pouca coisa.

*Crônica originalmente publicada em maio de 2015.

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