OPINIÃO

Eu quero que você entre em pânico

Por Carmen Silveira de Oliveira / Publicado em 15 de maio de 2019
O ato de Greta Thunberg ficou conhecido como “Fridays for future” e inspirou um movimento mundial

Foto: Reprodução/Facebook

O ato de Greta Thunberg ficou conhecido como “Fridays for future” e inspirou um movimento mundial

Foto: Reprodução/Facebook

Desde agosto do ano passado, uma adolescente sueca de 16 anos tem faltado às aulas nas sextas-feiras para realizar um protesto diante do prédio do Parlamento, em Estocolmo, com o objetivo de exigir medidas sobre as mudanças climáticas.

O ato de Greta Thunberg ficou conhecido como “Fridays for future” e inspirou um movimento mundial, cuja iniciativa justificou a sua indicação ao prêmio Nobel da Paz.

Considerada a mulher mais influente em 2018 na Suécia, Greta já esteve no Parlamento Europeu, com o Papa Francisco e em eventos internacionais, como a Conferência do Clima da ONU e o Fórum Econômico Mundial.

No dia 15 de março, cerca de 1,5 milhão de estudantes de mais de 100 países realizaram uma marcha histórica, o #schoolstrike4climate, com a declaração de solidariedade de cerca de 23 mil cientistas.

As circunstâncias deste “levante” suscitam várias questões:

Como explicar o ativismo social de uma adolescente com diagnóstico de Síndrome de Asperger, um transtorno do espectro autista?

Por que as meninas prevalecem como lideranças? Por que esta mobilização juvenil tem tido poucas ressonâncias no Brasil?

A experiência humana para além dos sintomas – pânico

A primeira questão nos remete a problematizar os limites da nosografia na compreensão do sofrimento psíquico, demonstrando que a experiência humana é muito mais complexa do que conseguimos apreender por meio do agrupamento de sintomas.

Fernand Deligny, um pedagogo francês, definiu o autismo como uma produção singular da existência.

Por isto, ele descentralizou as práticas pedagógicas das representações psicopatológicas para investir no rastreamento das singularidades da “experiência autística”, notadamente a errância, a vivência de um “tempo fora do tempo” e a vacância da linguagem.

Para ele, estas não seriam limitações, mas outras formas de registros, como no caso da retração à fala, que não deveria ser confundida como recusa da linguagem.

Isto nos permite ressignificar o mutismo seletivo de Greta, conforme sua própria descrição: “Só falo quando acredito que é absolutamente necessário”.

Para Deligny, é preciso pensar o silêncio no interior da linguagem e, portanto, se pôr à escuta e à espreita do que está aí, quer o autista fale ou não. Como refere o autor, o mínimo gesto, a mínima palavra, o mínimo silêncio contam.

Por isto, o pedagogo percorre o espaço-tempo silencioso no qual habitam crianças que não falam, que vibram diante do brilho da água e que agarram as abelhas pelas asas, sem machucá-las.

Nesta perspectiva, o autista teria mais acesso a um tipo de liberdade à deriva e de uma vivacidade desconhecida pela maioria das pessoas.

E esta condição pode ser percebida como aliada, como sugere Greta: “Isso me faz diferente, e ser diferente eu diria que é uma dádiva. Me faz ver coisas além do óbvio”.

Talvez isto lhe aproxime das minorias, ou seja, de um modo de existência e de pensamento que confronta a axiomática capitalística em sua pretensão de classificar as pessoas em selecionados e excluídos dela.

“Se eu não fosse tão esquisita, ficaria presa nesse jogo social que todo mundo parece apreciar. Eu vejo o mundo um pouco diferente, a partir de outra perspectiva. É muito comum que as pessoas, no espectro do autismo, tenham um interesse especial”.

Atualização do ecofeminismo

Um segundo ponto que nos interessa problematizar vai além da historiografia de Greta para pensar as motivações das outras meninas neste ativismo.

Há evidências de uma atualização do ecofeminismo emergente nos anos 70 não apenas pela temática ambientalista em comum, mas porque as jovens ativistas adotaram as formas de comunicação dos coletivos ambientalistas (não se assobia, não se aplaude, mas se levanta ou abaixa as mãos), contrastando com o movimento dos “coletes amarelos”.

Entretanto, talvez a maior aproximação com o ecofeminismo seja a centralidade da vida. Como refere Shiva Vandana, uma das ecofeministas precursoras, as mulheres tiveram a responsabilidade histórica pelo cuidado e manutenção da vida.

No contexto atual em que a crise de cuidados corresponde à negação da responsabilidade coletiva, o ativismo das meninas atualiza a ideia de que a opressão das mulheres e da natureza estão relacionadas, demandando a construção de relações colaborativas entre todas as pessoas e espécies.

Alguns críticos desqualificam esta mobilização feminina associando a uma suposta ideologização partidária ou familiar, o que não se sustenta pois, ainda hoje, as decisões masculinas prevalecem. Contudo, é incontestável a forte presença das meninas nas ocupações secundaristas, nos protestos e marchas em diversas lutas ou no ativismo virtual.

Acordar os adultos

E o que pode ser escutado por estas vozes juvenis? “Nós não saímos às ruas para fazer selfies nem ouvir as pessoas dizendo o quanto admiram o que fazemos. Nós estamos fazendo isso para acordar os adultos”.

O confronto geracional é bastante evidente: “Vocês dizem que amam seus filhos acima de todo o resto, mesmo assim estão roubando o futuro deles bem na frente de seus olhos”.

Os jovens criticam os estilos de vida pautados pelo imperativo de consumo, desperdício e lucro: “Nossa biosfera está sendo sacrificada para que os ricos em países como o meu possam viver no luxo. É o sofrimento da maioria que paga pelo luxo de poucos”.

Como a maioria das emissões de carbono não é causada por indivíduos, mas pelas corporações e pelo Estado, a juventude reconhece que para salvar o planeta é preciso bem mais do que reciclar garrafas pets e roupas, andar de bicicleta, economizar a água do banho etc.

Como a máquina capitalística de extração-produção-descarte tem gerado a predação ambiental, a exclusão econômica, a pobreza e a injustiça social, eles consideram inadiável projetar um desenvolvimento economicamente inclusivo, socialmente justo e ambientalmente sustentável.

“Vocês sempre falam em seguir adiante com as mesmas más ideias que nos criaram essa confusão, mesmo quando a única coisa sensata a fazer é puxar o freio de emergência. Vocês não são suficientemente maduros para dizer as coisas tais como elas são. Mesmo esse fardo, vocês deixam para nós, crianças”.

Impressiona a percepção clara sobre a urgência agônica de medidas de enfrentamento. Mais assombroso ainda é o fato de que as novas gerações demandam a adultez dos adultos, com o pedido de compartilhamento do fardo de tomar conta do mundo.

Por último, cabe problematizar o quase silêncio dos adolescentes brasileiros sobre as mudanças climáticas, principalmente porque nossos biomas estão sendo devastados pelo agronegócio ou pela mineração, com a atual franquia do governo Bolsonaro.

Vários fatores podem justificar o adiamento da pauta ambiental em nosso país, tais como o fato da agenda de mobilizações da juventude estar hoje mais voltada para os retrocessos na educação pública, bem como a força do imaginário social acerca do Brasil como “gigante pela própria natureza” e “país do futuro” alimentando a fantasia de uma riqueza inesgotável e de um tempo sempre postergado.

Contudo, é neste contexto que o apelo de Greta parece fazer ainda mais sentido, a fim de nos produzir um impreterível sobressalto: “Eu não os quero esperançosos. Eu os quero em pânico. Quero que sintam o medo que eu sinto todos os dias. E então quero que ajam como numa crise. Quero que ajam como se a casa estivesse em chamas. Porque ela está”.

Carmen Silveira de Oliveira é psicóloga e colaboradora do jornal Extra Classe.

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