OPINIÃO

Sintomas

Por Luis Fernando Verissimo / Publicado em 11 de setembro de 2019

Arte: Ricardo Machado

Arte: Ricardo Machado

 

Catch 22 é o título de um romance satírico do americano Joseph Heller, que já morreu. O livro foi publicado no Brasil com o título de Ardil 22. Deu um bom filme, dirigido pelo Mike Nichols. A história se passa na Segunda Guerra Mundial, numa base da qual diariamente decolam aviões americanos para bombardear a Alemanha. Os bombardeios são feitos à luz do dia, as perdas de homens e aviões a cada missão são apavorantes – e não é incomum um piloto decidir largar sua carga de bombas no Canal da Mancha e voltar para a base sem enfrentar os caças e o fogo antiaéreo do inimigo.

Um piloto que não foge do horror, e é o personagem principal do livro, pede para ser dispensado das missões por questões médicas. Seus nervos não aguentam mais o risco diário de ser abatido sobre a Alemanha. Cada missão pode ser a sua última. Ele não dorme. Não come. Não para de pensar no seu avião mergulhando em chamas e levando junto toda a sua tripulação. Está ficando louco. A junta médica que examina a reivindicação do piloto conclui que ela é perfeitamente razoável, e por isso mesmo não pode ser atendida. Existe uma diretriz chamada Catch 22, segundo a qual só uma pessoa anormal não enlouqueceria com a perspectiva da morte quase certa. Portanto, enlouquecer é uma prova de sanidade. O piloto do livro está perfeitamente capaz de voltar para o seu avião e enfrentar a morte como uma pessoa normal.

Mas esta crônica não é sobre lógica militar, é sobre uma questão correlata: como e quando se decide que alguém enlouqueceu? Quais são os sintomas indiscutíveis de loucura? Qual é a diferença entre loucura e comportamento excêntrico, ou apenas anticonvencional? Quando a pessoa sobre a qual se tem dúvidas – enlouqueceu ou só surtou? – tem o poder, a coisa se complica.

O exercício do poder sem controles pode parecer uma forma de loucura, ainda mais se o poderoso já tem uma tendência autocrática e a convicção de que pode tudo. Dois exemplos de poder maluco nos vêm da Roma antiga: o imperador Nero pondo fogo na cidade e depois alegando que dormiu com um cigarro aceso, embora o cigarro ainda não tivesse sido inventado, e o imperador Calígula, que tentou nomear seu cavalo favorito, Incitatus, cônsul de Roma, afirmando que não havia nepotismo porque Incitatus não era nem primo, sendo dissuadido por um Senado que, na época, parece, tinha o senso do ridículo.

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