OPINIÃO

Sintonia

Por Marcos Rolim / Publicado em 21 de outubro de 2019

Foto: divulgação Netflix

Série dirigida por Konrad Dantas rompe com todos os estereótipos e constrói uma imagem de periferia “desde dentro”

Foto: divulgação Netflix

Lançada em agosto pela Netflix, a série Sintonia retrata a vida de três jovens da periferia de São Paulo, amigos desde a infância: Doni (MC Jottapê), que quer ser uma estrela do funk; Rita (Bruna Mascarenhas), que irá se aproximar de uma Igreja evangélica; e Nando (Christian Malheiros), que almeja se vincular ao PCC. O nome da facção não é mencionado, pelo menos nessa temporada, mas a referência é evidente e está presente, também, no nome da série, pois “sintonia” é a expressão do grupo para designar os responsáveis pela coordenação de alguma atividade ou mesmo da própria organização.

A série, que está sendo mostrada em 190 países, é dirigida por Konrad Dantas (Kondzilla) e Johnny Araújo. Kondzilla, a propósito, é uma referência importante entre os jovens como produtor de vídeos no mercado funk. Seu canal no YouTube, para que se tenha uma ideia, tem 51 milhões de inscritos e 25 bilhões de visualizações, o 6º maior do mundo.

Os três amigos de Sintonia enfrentam dificuldades variadas. Depois da morte de sua mãe, Rita está só e precisa “se virar” na rua vendendo produtos contrabandeados; Nando está casado e tem de sustentar sua esposa e um bebê; a família de Doni possui uma situação um pouco melhor, mantendo um pequeno comércio, mas o rapaz precisa recorrer a um agiota para perseguir seu sonho como compositor e terá que superar a morte do pai.

Cada um deles está limitado pelo seu entorno e encontra seu caminho na busca pelas mesmas coisas. As opções do crime, da religião e da arte terminam por oferecer às personagens possibilidades concretas de pertencimento, autoria e reconhecimento. Essa dinâmica assegura à série uma dimensão especialmente significativa.

A vida na periferia, onde reside a nova classe média brasileira, reproduz valores estéticos e morais muito distintos daqueles compartilhados entre as camadas mais privilegiadas socialmente. Temas como a presença de uma facção criminal na comunidade, o tráfico de drogas, o sexo entre os jovens e as diferentes estratégias de sobrevivência criadas pelos moradores aparecem naturalmente, dispensando adjetivos ou exclamações. Há coisas muito tradicionais ali, como a importância da família e o carinho das pessoas pelos seus, e coisas surpreendentes, como a convivência no mesmo espaço de instituições como o crime, o funk e a igreja.  Esse ambiente é retratado com riqueza de detalhes e com atores coadjuvantes que conquistam um espaço maior do que se poderia esperar pelo seu tempo de participação. Esse é, por exemplo, o caso dos dois barbeiros que asseguram o “visual” de Doni e o de uma das vizinhas de Rita, Jussara (Rosana Maris), mãe de sua melhor amiga. Impressionam, também, pelo realismo, as cenas em que a disciplina do PCC é convocada para redimir conflitos comunitários.

Dificilmente essa periferia é retratada na TV brasileira para além das visões estereotipadas que afloram nos noticiários. Sintonia rompe com todos os estereótipos e constrói uma imagem da periferia “desde dentro”. Só por isso já valeria assistir aos seis episódios da série. Ali, o mundo dos jovens moradores pobres surge de uma maneira que se torna mais fácil perceber o quanto a própria realidade social vai interditando os caminhos tradicionais de respeitabilidade e ascensão social pelo trabalho e pelo estudo. As histórias das três personagens, aliás, não se articulam com a escola, e Doni, o único que exercia um trabalho formal, o fazia como auxiliar de seu pai, sem o desejo de construir seu futuro a partir daquela posição. Não surpreende, também, que cada um dos jovens persiga sua saída de forma isolada, contando com a ajuda apenas dos amigos, sem presença em um espaço público onde fosse possível articular projetos coletivos.

Sintonia mostra o que é viver em áreas urbanas sem Estado, ou melhor, em lugares onde a única expressão do Estado é uma ameaça constante. Nas quebradas, onde vivem alguns dos participantes da série e que fizeram o seu primeiro trabalho para a TV, se fala gírias como “moiado”, “nave”, “papo reto”, “mó boy” e “mil grau”, entre tantas outras, e os jovens não se encontram na balada, mas no “fluxo”. Quando há um conflito mais sério, não se recorre à polícia, nem aos tribunais, mas ao PCC, cuja prestação jurisdicional é rápida e legitimada socialmente. É esse Brasil que nós, moradores da bolha dos incluídos, desconhecemos, que emerge na série.

 

* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe

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