COLUNISTAS

Um ensino médio precarizado para o mercado

Se persistirem, em 2020, as iniciativas anunciadas pelo MEC e por alguns governos estaduais, como tudo indica, as consequências serão irreversíveis para a geração atual de estudantes
Por Gabriel Grabowski / Publicado em 3 de março de 2020
Lançamento do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim): "privilegiar exclusivamente a profissionalização dos estudantes significa perder de vista uma dimensão universal da função formativa da educação"

Foto: Antônio Cruz/ Agência Brasil

Lançamento do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim): “privilegiar exclusivamente a profissionalização dos estudantes significa perder de vista uma dimensão universal da função formativa da educação”

Foto: Antônio Cruz/ Agência Brasil

Neste início de março, quando começa o ano letivo, que a crítica social da Mangueira (RJ) e a defesa do conhecimento e da sabedoria de Águia de Ouro (SP), esta inspirada em Paulo Freire, nos despertem em defesa da educação brasileira antes que seja destruída. Se persistirem, em 2020, as iniciativas anunciadas pelo MEC e por alguns governos estaduais, como tudo indica, as consequências serão irreversíveis para a geração atual de estudantes.

Enquanto o MEC corta orçamento das Universidades Federais e dos IFs, essas instituições intensificam pesquisas para proteger a população do Covid-19. Enquanto verbas do Fundeb são utilizadas para pagamento de pensões e aposentadorias, o MEC quer ampliar e fortalecer a privatização da educação básica. Enquanto governo federal e estados priorizam a implementação de escolas cívico-militares monitorados por militares, a reforma do ensino médio resume-se a oferta de dois itinerários fragilizados, ao invés de cinco previstos e prometidos para que os estudantes pudessem optar.

Francisco Marshall (Ufrgs), constata que “para seduzir o povo de sociedade, mercado logrou camuflar-se com aspecto da realidade”. Da educação infantil à pós-graduação, habilidades e competências são desenvolvidas para atender aos interesses desse tal mercado. Do trabalhador de semáforo nas ruas, do jovem adolescente vendedor de balas que deveria estar numa escola acolhedora, passando pelo novo currículo das escolas do ensino médio, prepondera a mantra e o discurso falso da formação empreendedora e inovadora enquanto redentoras da realidade brasileira que ainda não universalizou a educação básica para os jovens adolescentes.

Para Ladislau Dowbor, a realidade brasileira é que “a economia está parada. Há 50 milhões de desempregados e precários. A fome voltou e os sem-teto estiram-se nas calçadas. Duzentos homens engordam suas imensas fortunas, sem nada produzir”. Pesquisas da PNADC/IBGE e FGV Social apontam que os empregos minguaram e a renda despencou, atingindo mais quem está na faixa dos 20 anos. De maneira geral, entre os jovens a renda da metade mais pobre caiu -24,24% nos últimos cinco anos. Causas: desemprego, redução da jornada de trabalho e redução do salário por hora/ano estudo. E mesmo neste ambiente de baixo crescimento e alto desemprego que atinge, inclusive, os jovens formados no ensino superior, o MEC anunciou, em dezembro de 2019, mudanças no Fies que permitem cobrança judicial dos egressos inadimplentes, podendo colocá-los no banco dos réus.

Transformar o acessório em centralidade
no currículo básico é uma estratégia
de precarizar ainda mais o ensino médio

O filósofo Nuccio Ordine já dizia que ao indicarmos que a escolha do curso ou formação que o jovem deve fazer é a que lhe vai “fazer ganhar mais dinheiro” é uma forma de corrompê-lo e enganá-lo, pois não há garantia alguma e, ainda, pode torná-lo infeliz. Porém, na reforma do ensino médio em implementação, esse é o discurso central: educar jovens para a inovação, o empreendedorismo e a criatividade. E indagação que fazemos é: e as ciências, artes, literatura, humanidades e linguagens, bases para a vida e para escolhas autônomas, ainda possuem algum valor nessas reformas?

Na BNCC e na reforma, os currículos do ensino médio são compostos por formação geral básica (60%) e itinerários formativos (40%), indissociavelmente. A reforma fixou máximo de 1,8 mil horas de base nacional comum curricular e, 1,2 mil horas para a parte diversificada através da oferta de um dos cinco itinerários. Os diversos sistemas de ensino já estão implementando reduções de carga horária em diversas áreas do conhecimento, inclusive de matemática, literatura e português, cujos resultados expressos nas avaliações de desempenho são tão criticados e descontextualizados.

Porém, é através do quinto itinerário – técnico e profissional –  que está aberto o caminho para mudanças curriculares de toda natureza, para o bem e para o mal. Neste itinerário se permitirá tudo, desde o aproveitamento de aprendizagem profissional, desenvolvido em parceria com as empresas empregadoras, incluindo fase prática em ambiente real de trabalho no setor produtivo ou em ambientes simulados, bem como cursos básicos de qualificação profissional, cursos livres, palestras  motivacionais, com certificações intermediárias diversas, inclusive obtidos na modalidade EaD, sem garantia de solidez na formação obtida.

Em matéria de currículo na educação básica é necessário distinguir o essencial e imprescindível para a formação dos estudantes e o acessório e complementar. Na LDB (lei nº 9.394/1996), o Art. 22 estabelece que “a educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”. Portanto, cabe aos sistemas de ensino, através das escolas, organizar e ofertar estruturas curriculares qualificadas para viabilizar uma sólida formação humana, científica ou tecnológica.

Não se trata de colocar em dúvida a importância da preparação profissional nos objetivos das escolas e das instituições formadoras. Mas a função da educação não pode ser reduzida à formação profissional de trabalhadores, empreendedores, engenheiros, advogados e demais profissionais imprescindíveis para o desenvolvimento de uma nação. Porém, alerta-se que, privilegiar exclusivamente a profissionalização dos estudantes significa perder de vista uma dimensão universal da função formativa da educação: nenhuma profissão poderia ser exercida de modo consciente se as competências técnicas que ela exige não estivessem subordinadas a uma formação cultural mais ampla, capaz de encorajar os estudantes a cultivarem autonomamente seu espírito e a possibilitar que expressem livremente sua curiosidades e criatividade. Persistindo essa tendência, brevemente, estaremos produzindo gerações de máquinas produtivas, em vez de formarmos cidadãos íntegros.

“Mercado tinha ojeriza a toda família pública e queria devorá-la, como voraz canibal. Escola pública, Saúde, Cultura Pública, Praça Pública ou até Mercado Público pareciam ser presas apetitosas a Mercado, para serem abocanhadas e ampliar o vigor de Sua Alteza Leviatã-Mercado”.
Francisco Marshall – Ufrgs

Nesta perspectiva, componentes curriculares como produção interativa, projetos de vida, empreendedorismo, educação financeira, criatividade, inovação, práticas laborais e cursos básicos de qualificação são elementos complementares (diferenciais) na educação básica. Transformar o acessório em centralidade no currículo básico é uma estratégia de precarizar ainda mais o ensino médio atual. O estudante somente será criativo, inovador e empreendedor se tiver construído bases científicas – em todas as áreas do conhecimento – durante toda formação nas diversas etapas da educação básica.

Para muitos estudiosos, como Ordine e Marshall, hoje assistimos a uma ditadura do mercado. Em qualquer âmbito, em qualquer situação, em qualquer momento de nossa vida é preciso levar sempre em consideração a que serve, quanto se ganha, qual é o proveito disso. Nesse contexto, nossas escolas precisam ter mais consciência do mundo em que nossos estudantes vão viver. O pragmatismo e utilitarismo, tanto do mercado como da educação para a economia, está produzindo uma sociedade moderna que, segundo Richard Sennett, está desabilitando as pessoas na condução da vida cotidiana, em que dispomos de muito mais máquinas, mas de menos ideias; temos mais canais entre as pessoas, mas menor compreensão sobre como nos comunicar bem.

Tanto as escolas como seus currículos precisam ser reformulados e atualizados. Porém, o desafio é reequilibrar as missões acadêmicas, entre as funções econômicas e as funções sociais e culturais. Em vez da empregabilidade é preciso compreender o sentido de uma formação que vai para além de um ciclo inicial de estudos e que fornece as bases para percursos de vida que integram a relação com o trabalho, mas que não se esgotam nesta dimensão. E, em vez da inovação, como simples prolongamento tecnológico, é preciso que a escola se constitua como um ambiente aberto e estimulante, criativo, capaz de promover nos estudantes uma cultura de descoberta e de responsabilidade, que se projete numa nova relação com a sociedade.

A formação durante a educação básica é para toda a vida e não pode ter sua centralidade baseada nas exigências passageiras do mercado. Novas matrizes curriculares já estão sendo impostas nas escolas públicas, sem a reflexão, construção coletiva e responsabilidade com o presente e futuro dos jovens estudantes.

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