OPINIÃO

Tantas emoções

Por Marcos Rolim / Publicado em 19 de maio de 2020

Imagem; Reprodução/Web

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“Há uma visão tradicional de que nossas emoções seriam estruturadas em seis referências básicas: alegria, tristeza, medo, repulsa, raiva e surpresa. Tais emoções, entretanto, são apenas reações a eventos externos selecionadas geneticamente pelos efeitos de proteção agregados”

O sociólogo francês Roger Caillois (1913-1978) interessou-se pelo estudo dos jogos como expressão cultural. Ele identificou quatro tipos de jogos: os que envolvem disputas (Agôn), os jogos aleatórios ou de azar (Alea), os que envolvem simulacros (Mimicry) e o que ele chamou de “jogos de vertigem” ou “Ilinx”.  A expressão, de origem grega, significa “turbilhão das águas” e foi usada por Callois para designar a emoção que surge com a interrupção temporária da percepção, que se manifesta por tontura e desorientação. Pessoas que praticam esportes como o wingsuit, aquele tipo de voo de alta performance com um macacão com asas; que escalam altas montanhas; que mergulham em cavernas etc. enfrentam grandes riscos exatamente para sentir a emoção de lidar com o limite.

Em cada cultura, há expressões para emoções muito precisas. Assim, por exemplo, os galeses usam “Hwil” para nomear a euforia particular de quem participa de eventos em grandes grupos como festas, shows e manifestações; os holandeses usam “Gezelligheid” para a emoção de estar reunido com os amigos em ambiente acolhedor; os russos têm a palavra “Toska” para nomear o sentimento de insatisfação radical que bloqueia qualquer desejo por longo tempo; os alemães tem a expressão “Schadenfreude” para designar a satisfação com o infortúnio dos outros (algo que os “secadores” em futebol conhecem bem, mas que pode ser, para além das rivalidades clubísticas, eticamente mais comprometedor) e assim sucessivamente.

Há uma visão tradicional de que nossas emoções seriam estruturadas em seis referências básicas: alegria, tristeza, medo, repulsa, raiva e surpresa. Tais emoções, entretanto, são apenas reações a eventos externos selecionadas geneticamente pelos efeitos de proteção agregados. Estudos contemporâneos têm chamado a atenção para o fato de que temos possibilidades muito mais amplas para desenvolver e sentir emoções; centenas delas, talvez mais.

Tiffany Watt Smith, historiadora britânica e pesquisadora do Centro da História das Emoções, na Universidade Queen Mary de Londres, lançou, em 2016, uma obra intrigante chamada The Book of Human Emotions: From Ambiguphobia to Umpty – 154 Words from Around the World for How We Feel (algo como “O livro das emoções: do medo da ambiguidade ao inespecífico, 154 palavras em todo o mundo sobre como nos sentimos”).  Nesse trabalho, ela discorre sobre inúmeras emoções determinadas, mostrando como elas se desenvolvem historicamente. O que a autora sustenta, com base nas ciências cognitivas, é que as emoções se constroem culturalmente.  Para que possamos ter uma emoção, é preciso identificá-la e nomeá-la. Quando aprendemos uma nova palavra sobre uma emoção, nossos sentimentos começam a ser moldados pela designação. Assim, se a cultura e os valores se alteram, as emoções também mudam. Smith mostra como, em plena Idade Média, sentir-se triste era tomado como positivo, porque ensinaria as pessoas a dominar as emoções quando as desgraças ocorressem. O contraste com a noção de que “devemos ser felizes”, que marca as sociedades modernas, não poderia ser mais forte.

Nas últimas décadas, a ideologia conhecida como “neoliberalismo” passou a influenciar as emoções em todo o mundo. Com base nela, as pessoas foram concebidas como responsáveis por seus sucessos ou fracassos e ajudar os pobres foi visto como uma forma de premiar a preguiça. O Estado foi considerado um excesso e o “mercado” apontado como a solução para os desafios da humanidade. Para tanto, bastaria que o governo “saísse do cangote dos empresários”, como repete ainda hoje um antigo político brasileiro, “mistura do mal com o atraso, com pitadas de psicopatia”. Por decorrência, os laços de solidariedade se fragilizaram, a gramática do ódio convocou a violência latente e as emoções se amesquinharam.

A pandemia do coronavírus, evento imprevisto e terrível, tem promovido ondas de solidariedade em todo o mundo e aproximado tradições políticas muito diferentes. No enfrentamento à Covid-19, se percebe mais claramente a diferença que faz ter governantes responsáveis e irresponsáveis; fica evidente o papel essencial do serviço público e se renovam as expectativas na ciência. Mais do que isso, aflição e dor disseminadas evidenciam a necessidade de estruturas sociais mais justas e ideias como renda mínima universal e sustentabilidade nunca foram tão óbvias. Nossas emoções tendem a ser redefinidas depois disso tudo, para melhor.

 

* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe

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