COLUNISTAS

Estranhos frutos

Por Luis Fernando Verissimo / Publicado em 9 de outubro de 2020

Ilustração: Ricardo Machado

Ilustração: Ricardo Machado

Billie Holiday não podia cantar Strange Fruit (Estranho fruto) quando e onde quisesse. Muitas vezes a permissão para cantar a canção dependia de uma negociação com o dono do bar ou o promotor do evento, preocupados com a reação do público, na sua maioria branco. A gravadora Columbia, da qual Billie era contratada, recusou-se a gravar Strange Fruit. Billie teve que recorrer a uma gravadora menor e, em 1939, lançou a incômoda canção junto com um certo Lewis Allan, pseudônimo de um professor judeu do Bronx chamado Abel Meeropol, autor do poema musicado por Billie, sobre quem se sabe muito pouco. Meeropol e a mulher adotaram os filhos de Julius e Ethel Rosenberg, executados nos Estados Unidos por espionagem.

O poema de Meeropol que Billie transformou em letra foi em reação ao linchamento de dois afro-americanos no Sul dos Estados Unidos, caçados e enforcados por nenhuma outra razão além da cor da sua pele. Há uma foto dos dois corpos pendendo, como estranhos frutos, do galho de um álamo, cercados por uma multidão de brancos com uma coisa em comum: todos sorriem de satisfação pelo que acabam de fazer.

Apesar do sucesso do disco, a ameaça de represália ou protestos onde a canção fosse apresentada continuou. Um lugar onde se podia ver e ouvir Billie Holiday cantando Strange Fruit ao vivo sem problemas era o Café Society, não por acaso a primeira boate integrada de Nova York, numa época em que, por exemplo, o Cotton Club apresentava os melhores artistas afro-americanos para uma plateia segregada, e afro-americanos só entravam para trabalhar na cozinha.

Linchamentos eram comuns no Sul do país. Enquanto o Sul fornecia exemplos repetidos de selvageria racista, o resto do país vivia uma contradição que o estranho sucesso de Strange Fruit tipificou, a de um racismo que não se reconhecia, que amava Billie Holiday, lamentava a selvageria, admirava o poema, mas não se envolvia. A grande novidade das atuais manifestações antirracistas nos Estados Unidos é a participação de jovens brancos, que resolveram se envolver.

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