OPINIÃO

Temos dinheiro sobrando para doar aos bancos?

Por Maria Lúcia Fattorelli* / Publicado em 21 de outubro de 2020
Plenário do Senado Federal durante sessão semipresencial de debates temáticos para tratar sobre os desafios econômicos, sociais e ambientais do Brasil para o período pós-pandemia. Leia-se: recursos públicos para os bancos privados

Foto: Pedro França/Agência Senado

Plenário do Senado Federal durante sessão semipresencial de debates temáticos para tratar sobre os desafios econômicos, sociais e ambientais do Brasil para o período pós-pandemia. Leia-se: recursos públicos para os bancos privados

Foto: Pedro França/Agência Senado

Temos assistido à falta de dinheiro para áreas essenciais como educação e saúde. Também sob alegação de falta de recursos, o auxílio emergencial destinado a milhões de brasileiros e brasileiras que estão vivendo o drama da miséria, do desemprego e desespero em plena pandemia, foi rebaixado para míseros R$ 300,00 ao mês.

Patrimônio público essencial e lucrativo está sendo privatizado sob a alegação de que precisaríamos de recursos advindos dessa entrega. A PEC 32 destrói a estrutura de Estado se baseia na necessidade de reduzir gastos públicos.

Porém, em meio a toda essa escassez, o Senado anunciou na última terça-feira, 20, que irá votar projetos para “legalizar” a doação de dinheiro público, através da remuneração parasita de centenas de bilhões de reais anuais aos bancos e, adicionalmente, tornar o Banco Central um ente à parte, autônomo, livre para obedecer aos mandamentos do mercado financeiro.

Tudo isso está acontecendo em plena pandemia, quando as mobilizações sociais e as visitas aos gabinetes de parlamentares está prejudicada.

O PL 3877/2020, do senador Rogério Carvalho (PT/SE), cria a figura dos “depósitos voluntários remunerados” pelo Banco Central aos bancos, “legalizando” a remuneração da sobra de caixa dos bancos que tem sido feita mediante o abuso na utilização das chamadas “operações compromissadas”.

Em agosto de 2020, o volume dessas operações, que se equiparam ao antigo overnight, atingiram R$ 1,6 trilhão, quase 23% do PIB, e gera falsa escassez de moeda na economia, empurrando os juros de mercado para os patamares altíssimos praticados no Brasil.

Assim, ao mesmo tempo, essas “operações compromissadas” provocam o crescimento do estoque da dívida pública, pois usam títulos públicos para justificar a remuneração aos bancos. Representam um rombo ao orçamento público de centenas de bilhões todo ano, além de causarem danos também a toda a economia do país, pois provocam aumento dos juros de mercado que impedem a circulação do crédito em patamares saudáveis, conforme explicamos em vídeo recente.

"O PL 3877/2020, do senador Rogério Carvalho (PT/SE), cria a figura dos “depósitos voluntários remunerados” pelo Banco Central aos bancos, “legalizando” a remuneração da sobra de caixa dos bancos"

Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

“O PL 3877/2020, do senador Rogério Carvalho (PT/SE), cria a figura dos “depósitos voluntários remunerados” pelo Banco Central aos bancos, “legalizando” a remuneração da sobra de caixa dos bancos”

Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

O projeto do senador Rogério Carvalho propõe que, em vez de usar títulos da dívida pública para justificar a remuneração diária aos bancos, essa remuneração se torne LEI, de tal forma que não mais sejam utilizados os títulos da dívida pública e a remuneração diária parasita continue sendo paga aos bancos.

A justificação do referido PL 3877/2020 está repleta de erros, cabendo ressaltar que ao contrário de servir para mitigar efeitos da crise econômica que vivemos desde 2014 no Brasil, a remuneração da sobra de caixa dos bancos foi a principal causa da fabricação dessa crise, como temos denunciado há anos, conforme artigo publicado em janeiro de 2016.

Erra feio o senador Rogério Carvalho ao dizer que em 2020 a elevação das operações compromissadas teria se dado “em razão da necessidade de enxugar a liquidez criada pela utilização dos recursos da Conta Única para enfrentamento da pandemia”, ignorando que o Banco Central injetou R$ 1,2 trilhão de liquidez nos bancos em 23 de março de 2020, conforme amplamente noticiado.

O senador Rogério Carvalho deveria pedir à sua assessoria para estudar os documentos que embasaram a injeção de R$ 1,2 trilhão nos bancos, conforme disponível no site do Banco Central, detalhadas em relatório da própria instituição e resumidas em reportagens da grande imprensa. Fica demonstrado que tal injeção de liquidez nos bancos não tem absolutamente nada a ver com recursos da Conta Única do Tesouro, como constou erradamente no relatório que embasa o PL 3877/2020.

A justificativa para o pacote de ajuda de R$ 1,2 trilhão aos bancos foi a necessidade de aumentar a liquidez dos bancos (volume de dinheiro disponível) para que estes pudessem ampliar as linhas de crédito para empresas e reduzir os juros. No entanto, o que se verificou na prática foi o contrário: os empréstimos para as empresas se tornaram ainda mais difíceis e os juros dobraram, conforme diversas notícias nesse sentido, o que levou milhões de empresas, principalmente as pequenas e médias empresas à demissão de seus empregados, e até à falência.

Em vez de serem punidos por terem recebido o pacote de liquidez e não terem emprestado às empresas, aprofundando a crise já suficientemente desastrosa por si só, os bancos acabaram sendo premiados. Isso porque, segundo o próprio ministro Paulo Guedes, o dinheiro ficou empoçado nos bancos e aumentou o volume das chamadas “operações compromissadas”, que passaram a aumentar exponencialmente e alcançaram o patamar de R$ 1,6 trilhão em agosto de 2020.

Esse dinheiro decorrente da liquidez injetada pelo Banco Central a partir de 23 de março, conforme amplamente noticiado e documentado no próprio site do BC, foi responsável pela elevação exponencial das “operações compromissadas” e não os gastos com a pandemia, como constou no relatório do senador Rogério Carvalho. Só se engana quem quer, pois está tudo documentado e publicamente divulgado até pela grande mídia!

Além desse rombo, outro projeto também altamente nocivo ao país está na pauta de votação do Senado: PLP 19/2019, que visa dar liberdade total ao Banco Central para continuar praticando essa política monetária suicida.

O PLP 19/2019 recebeu parecer do relator senador Temário Mota (PROS/RR) em 19 de outubro e transforma o Banco Central em um ente autônomo, independente dos demais poderes, pois seu presidente e diretores não poderão sequer ser demitidos pelo presidente da República e deverão “assegurar a estabilidade de preços”. Por outro lado, ficou como mera intenção, “na medida do possível”, o objetivo de “fomentar o pleno emprego”. Ou seja, ocorrerá a total blindagem da atual política monetária suicida, como temos denunciado desde janeiro de 2016. Leia também o artigo Não à “autonomia” do Banco Central e à remuneração da sobra de caixa dos bancos.

O PLP 112/2019 ainda “legaliza” as escandalosas operações de swap, que garantem aos bancos e grandes investidores a variação do dólar às custas de mais dívida pública ilegítima que tem sido paga pelo povo através de contrarreformas e privatizações aviltantes. Não podemos aceitar tanto privilégio à banca, que segue lucrando muito em plena pandemia, não por “eficiência”, mas devido a esses mecanismos perversos que, em vez de serem corrigidos, o Senado irá dar um jeitinho e anuncia que irá “legalizar” de vez.

Senadores(as), barrem essa farra!

*Maria Lucia Fatorelli é auditora fiscal e coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida Pública. Escreve quinzenalmente para o Extra Classe. Este artigo contou com dados levantados por Rodrigo Ávila e Rafael Muller.

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