OPINIÃO

O Brasil não é para principiantes

Por Pedro Curi Hallal* / Publicado em 6 de março de 2021
Hospital de Campanha Gilberto Novaes, de Manaus, recebe primeiros pacientes graves de covid-19, em abril do ano passado. Em janeiro de 2021, viria o colapso do sistema de saúde na capital amazonense com a falta de oxigênio

Foto: Mário Oliveira/ Semcom/ Prefeitura Municipal de Manaus

Hospital de Campanha Gilberto Novaes, de Manaus, recebe primeiros pacientes graves de covid-19, em abril do ano passado. Em janeiro de 2021, viria o colapso do sistema de saúde na capital amazonense com a falta de oxigênio

Foto: Mário Oliveira/ Semcom/ Prefeitura Municipal de Manaus

A frase de Tom Jobim ilustra os sentimentos de perplexidade, impotência, tristeza e indignação que sinto ao redigir este texto. Escrevo esta coluna no dia 15 de fevereiro de 2021. Exatamente um ano atrás, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicava seu 26º relatório sobre o coronavírus, contabilizando 50.580 casos confirmados de covid-19 no mundo, sendo 50.054 (99,0%) deles na China. O número de mortes era de 1.526. É justo mencionar que ninguém poderia imaginar o que estava por vir. Mas é também necessário lembrar que já se sabia que não se tratava de uma “gripezinha”. No dia 30 de janeiro de 2020, a OMS classificou o coronavírus como emergência internacional de saúde pública, e no dia 11 de março de 2020, como pandemia.

Em 15 de fevereiro de 2021, já eram mais de 109 milhões de casos confirmados no mundo e mais de 2,4 milhões de mortes. Em números absolutos, o Brasil era o terceiro país com mais casos e o segundo com mais mortes. Alguns “patriotas” gostam de dizer que o Brasil é o sexto país mais populoso do mundo e, portanto, é normal que esteja entre aqueles com maior número de óbitos. Quando as mortes são ajustadas para o tamanho da população, o Brasil é o 27º com maior mortalidade no mundo, com 1.121 mortes para cada 1 milhão de habitantes. Devemos comemorar esses números? É claro que não.

Vamos comparar o Brasil com os BRICS, agrupamento de cinco países emergentes que, juntos, representam 42% da população e 23% do PIB. Na Índia, a mortalidade por 1 milhão de habitantes é de 112, dez vezes menor do que no Brasil. Na Rússia, são 552 mortes por 1 milhão de pessoas, metade do observado no país. Na África do Sul, são 801 mortes por 1 milhão de pessoas. Na China, as estatísticas oficiais mostram três mortes por 1 milhão de pessoas. Somos disparadamente o pior entre os BRICS.

Agora vamos nos comparar com a média mundial. Notem que não estou falando da Nova Zelândia, Coreia do Sul, Austrália, Vietnã, ou Cingapura, exemplos positivos no enfrentamento do coronavírus. A população brasileira, de mais de 210 milhões de pessoas, representa 2,7% da população mundial. Até o dia 15 de fevereiro, o Brasil registrava 239.294 vidas perdidas para a covid-19. Tivéssemos 2,7% das mortes, o que seria esperado, dado o tamanho da nossa população caso tivéssemos um desempenho igual à média mundial no enfrentamento da pandemia, seriam 65.146 vidas perdidas.

Isso mesmo, 174.148 brasileiros perderam a vida porque somos piores do que a média mundial. Em outras palavras, sete de cada 10 mortes por covid-19 no país poderiam ter sido evitadas se estivéssemos na média mundial. Não por acaso, o Instituto Lowy, da Austrália, colocou o Brasil como o pior país no enfrentamento da pandemia, ao analisar 98 nações. Em termos de testagem, o Brasil ocupa a “honrosa” 117ª posição, com apenas 134 testes para cada 1 milhão de habitantes.

Na recém-iniciada corrida da vacinação, o Brasil imunizou, até o dia 15 de fevereiro, 2,4% da população. Em Israel, 74% da população foi vacinada até a mesma data. Novamente, os “patriotas” reclamariam da comparação, visto que Israel é menor do que o Brasil. Mas os Estados Unidos, com mais de 330 milhões de habitantes, vacinaram 16% da sua população no mesmo período, 6,6 vezes mais do que o Brasil.

Quais foram então nossos maiores erros para chegarmos a essa situação vergonhosa?

  1. Baixa testagem: a testagem em larga escala ajuda a identificar precocemente os casos, evitando a transmissão do vírus.
  2. Não rastreamento de contactantes: no Brasil, a vigilância não questiona aos positivos sobre sua rede de contatos nos dias anteriores. Se fizesse isso, tais pessoas poderiam ser isoladas e testadas, evitando a transmissão do vírus.
  3. Negacionismo presidencial: ao chamar a covid-19 de uma “gripezinha”, ao idolatrar tratamentos sem comprovação científica, ao questionar a efetividade do distanciamento social, ao desinformar em relação à vacinação, o presidente da República influencia negativamente a opinião de seus apoiadores.
  4. Invisibilidade e inoperância do Ministério da Saúde: depois da saída precoce dos ministros que defendiam ações baseadas em evidências científicas, o Ministério da Saúde esteve invisível e inoperante durante a pandemia, ignorando os avisos da ciência e das autoridades em saúde, cortando o financiamento de pesquisas e transformando a campanha de vacinação em uma disputa eleitoral.
  5. Narrativa falsa de um dilema “saúde pública x economia”: desde o princípio da pandemia, o governo federal, grupos de empresários e parte da população disseminaram que havia uma encruzilhada: proteger a saúde pública ou proteger a economia. Esse dilema nunca existiu: evitar mortes é a melhor estratégia para a saúde pública e, também, para a economia, como nos ensinaram as pandemias vividas no passado.

Realmente, o Brasil não é para principiantes. E muito menos, o cargo de presidente da República.

* Epidemiologista e professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Coordenador da pesquisa Evolução da Prevalência de Infecção por Covid-19 no Rio Grande do Sul (Epicovid19) do Centro de Pesquisas Epidemiológicas (CPE/UFPel).

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