OPINIÃO

Reforma Administrativa de Bolsonaro tira a população do orçamento público e beneficia segmentos privados

Por Anelise Manganelli / Publicado em 11 de maio de 2021

Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados

Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados discute a PEC 32 da Reforma Administrativa na terça-feira, 11 de maio. Na foto, o Dep. Afonso Motta (PDT/RS) , o dep. Hélio Costa (Republicanos/SC) e, na tela, o engenheiro Eduardo Moreira, que participou dos debates

Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados

De acordo com o governo Bolsonaro, para o Brasil ter crescimento econômico, gerar empregos, atrair investimentos e manter o equilíbrio nas contas públicas é preciso fazer reformas. Reforma Trabalhista, Reforma da Previdência, instituição do Teto nos Gastos, EC 109 (PEC emergencial) entre outras que já foram realizadas. Qual foi o resultado? Agravamento da crise, aumento do desemprego, crescimento da desigualdade, pobreza e fome. Diante desse quadro desolador o governo já tem a resposta para que a recuperação prometida finalmente aconteça. E qual é? Fazer mais reformas.

Segundo nossa ilustre equipe econômica, ainda não reformamos o suficiente. É preciso dobrar a aposta! A República precisa agora da Reforma Tributária (que a propaganda alega simplificação, mas já se sabe que não corrige injustiças), Programa de privatizações (Petróleo, Energia Elétrica, Infraestrutura) e Reforma Administrativa (PEC 32/2020). Mas o que todas essas medidas têm em comum? Retirar a população do orçamento público e/ou beneficiar segmentos privados.

Educação e saúde

A reforma da vez é a Administrativa, que abre caminho para os brasileiros experimentarem um aprofundamento na ausência de política pública.

Essa proposta, que atingirá todos os servidores (atuais, aposentados e futuros), está longe de ser apenas uma reforma do funcionalismo, porque além de extinguir o Regime Jurídico Único da União, Estados, Distrito Federal e municípios e criar cinco modalidades distintas de contratação – que não sabemos sequer se serão celetistas, também altera a forma de funcionamento e organização do Estado.

Os serviços prestados pelos governos aos cidadãos constam na Constituição de 1988, muitos deles consagrados como direitos, alguns deles são: direito a educação, a saúde, a moradia, a previdência social, a alimentação, o trabalho, a segurança, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados entre outros. Para que esses direitos existam na prática, precisam ser efetivados através de políticas públicas que são operacionalizadas pelo Estado através dos servidores.

Mesmo aqueles cidadãos que usufruem de alguns desses direitos eventualmente por meio de empresas privadas ainda assim são beneficiários de políticas públicas. Vejamos o exemplo da educação. Mesmo quem nunca estudou numa escola pública é alvo das políticas de educação. Isso porque as universidades públicas respondem por mais de 95% da produção cientifica no Brasil – pesquisas das mais diversas áreas do conhecimento que buscam compreender e solucionar problemas do cotidiano.

No caso da saúde, as ações do SUS vão muito além do atendimento em postos e hospitais, e mesmo quem tem plano de saúde se beneficia dele. O SUS é responsável por vigilância sanitária e epidemiológica, saneamento básico, desenvolvimento científico e tecnológico da área da saúde e até mesmo fiscalização e inspeção de alimentos e certos medicamentos. Podemos renunciar a isso?

Preços e empregos X políticas públicas

Temos ainda os preços. A princípio não parece, mas tem estreita relação com política pública. Estamos pagando 25,2% a mais por uma cesta básica do que há 12 meses, gás de cozinha 19%, gasolina 24,6%, e o salário-mínimo não teve sequer a reposição da inflação (INPC/IBGE) em 2021.

Por trás desse panorama, evidencias da ausência de política pública, tais como: falta de estoques reguladores da Companhia Nacional de Abastecimentos (Conab) que afeta o preço dos alimentos. O fim do subsídio do gás. No caso dos combustíveis, a influência da decisão da Petrobras, que passou a acompanhar a variação do preço internacional do petróleo, que combinado com a desvalorização de nossa moeda simplesmente inviabilizou uma grande parte da população seu acesso, uma realidade vivida apenas por países que não são produtores e/ou não possuem um parque de refino capaz de abastecer sua população, longe de ser o caso do Brasil.

E, claro, em paralelo a carestia, a decisão do atual governo de acabar com a política de valorização do salário mínimo adotada desde 2004 e estabelecida por lei desde 2007.

No caso do mercado de trabalho, sabemos que o Estado é também um importante empregador, que num país com taxa de informalidade próxima de 40% torna-se indispensável, porém não é só isso. Existem políticas públicas bastante conhecidas, como o seguro-desemprego, intermediação de mão-de-obra e qualificação profissional, imprescindíveis para a sociedade, no entanto podemos estar diante de um ataque a tudo isso com essa reforma.

Um dos pilares da reforma administrativa é acabar com a estabilidade, trazendo para dentro do setor público um problema que hoje não existe: a rotatividade nos postos de trabalho –, mecanismo amplamente utilizado pela iniciativa privada para reduzir salários – e, aqui, vale destacar que foram poupados da reforma os juízes, os parlamentares e os militares.

Ponto importante destacado em estudo recente publicado pelo Dieese é que a administração pública provê,  no mínimo, 50% dos empregos formais em 38% dos municípios brasileiros, renda essa crucial para a dinâmica econômica desses territórios, sobretudo em setores como o comércio e serviços.

Poder público e iniciativa privada

Se aprovada a reforma administrativa, como está proposta, o estado brasileiro deixará de operacionalizar políticas públicas. Para consecução disso, dois pontos são chave: a criação dos chamados “instrumentos de cooperação”, que permitem a elaboração de contratos entre o poder público e a iniciativa privada, que autoriza a executar serviços públicos, utilizar suas infraestruturas sem nenhuma exigência de contrapartida ao ente público.

Hoje já podem ser firmados contratos nesse sentido, mas apenas para atividades públicas de natureza social não exclusivas do Estado e que não tenham fins lucrativos, como as Organizações Sociais (OS).

Com a PEC 32, os instrumentos de cooperação poderão ser firmados com empresas com fins lucrativos, excetuando apenas atividades privativas de cargos típicos de Estado – que não sabemos quais são, irão dizer depois por lei complementar federal (lá se foi mais cheque em branco para apostas de terceiros).

O outro ponto chave é o que coloca o interesse privado acima do interesse público ao incluir a “subsidiariedade” entre os princípios que devem reger a administração pública, isto é, o Estado agindo somente onde não há interesse do mercado, invertendo a lógica da Constituição de 1988, seguindo caminho diametralmente oposto ao dos países que buscam recuperação pós-pandemia, redução de desigualdade e melhoria de qualidade de vida para seu povo.

Sistema de lucro privado e prejuízo público

O presidente americano Joe Biden vem anunciando pacotes trilionários de apoio às famílias, que deverá ser financiado com aumento de taxas ou diminuição de benefícios fiscais aos mais ricos e as grandes corporações. Está ampliando a presença do Estado, seguindo recomendação da maior parte dos organismos internacionais de prover mais políticas públicas nesse momento. O caso clássico é o sistema de saúde, que nos EUA é majoritariamente privado e não universal.

Se houvesse qualquer racionalidade no sistema de apostas do governo federal brasileiro, o modelo americano estaria longe de ser favorito, uma vez que lá os gastos com saúde representam 17% do PIB americano, enquanto a média dos países (38) pesquisados pela OCDE é de 8,8%. Além disso, estudos indicam que existe desperdício nos cuidados de saúde: tratamentos desnecessários, drogas e procedimentos inadequados (podendo chegar a 34% no total gasto com saúde).

No Brasil, o gasto com saúde representa 9,2% do PIB, onde as despesas públicas são 4% e as privadas 5,2%. E essa medida em relação ao PIB nem é das mais justas, uma vez que o PIB brasileiro é significativamente menor; em termos de gasto per capita/anual (incluindo público e privado), no Brasil, é de US$ 1.282, enquanto nos EUA US$ 10 mil. Isso quer dizer que a reforma administrativa, é mais uma aposta que nos empurra para um sistema que custa oito vezes mais, e que necessita do amparo do Estado, através de política pública nesse momento. Ou seja, um sistema de lucro privado e prejuízo público.

Anelise Manganelli é economista e técnica do Dieese. Escreve mensalmente para o Extra Classe

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