OPINIÃO

A usurpação dos recursos do Fundeb

Por Gabriel Grabowski / Publicado em 3 de janeiro de 2022
A escola Tuiuti, de Gravataí, escancara a falta de estrutura física da rede estadual de ensino, com salas de aulas em ruínas ou interditadas por obras. A diretora Geovana Affeldt não pode nem abrir a biblioteca por falta de um técnico

Foto: Igor Sperotto

Contradições: A escola Tuiuti, de Gravataí, escancara a falta de estrutura física da rede estadual de ensino do RS, com salas de aulas em ruínas ou interditadas por obras. A diretora Geovana Affeldt não pode nem abrir a biblioteca por falta de um técnico

Foto: Igor Sperotto

No Brasil de 2022, se não bastassem os incompetentes e terraplanistas em cargos governamentais que tentam destruir as instituições públicas de ciência, de cultura e de educação, entidades e grupos empresariais educacionais intensificam a disputa pela direção política da educação pública brasileira e pelo orçamento público.

Exatamente um ano após a vigência da Lei 14.113, de 25 de dezembro de 2020, que regulamentou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação Básica (Fundeb), o Congresso aprovou e o presidente sancionou a Lei 14.276, dia 27 de dezembro de 2021, permitindo que entidades empresariais do Sistema S e as instituições de ensino comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos sejam beneficiadas com os recursos públicos do Fundeb.

Na verdade, o que está em jogo na disputa são três coisas: o orçamento público, as matrículas públicas da educação básica e a direção político-pedagógica da formação dos estudantes brasileiros.

Estes objetivos estão correlacionados com o descumprimento da maioria das metas do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, especialmente da Meta 20, a qual determinou aumento de investimentos na educação, bem como com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a reforma do novo ensino médio aprovados após golpe de 2016.

Todas essas ações em sequência, inclusive esta alteração no Fundeb, foram estrategicamente pensadas e pavimentam as condições para a transferência de recursos públicos para o setor privado na forma de parcerias, convênios, terceirizações, compras diretas, bolsas, financiamentos diversos, etc.

Os interesses do capital

O empresariado educacional tensiona pela abertura de um mercado há muito alvejado pelo capital: as mais de 80% das matrículas na educação básica que se encontram na rede pública de ensino, e a canalização do maior fundo público da educação para a reprodução da acumulação capitalista que atravessa frequentes crises de acumulação.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) aponta aspectos de inconstitucionalidade na Lei 14.276, sobretudo em relação a extensão dos profissionais abarcados na subvinculação de 70% do Fundeb.

A entidade entende que essa nova lei, assim como a anterior (Lei 14.113), extrapolou os limites da Emenda Constitucional 108, que destinou parte dos recursos do Fundo exclusivamente para a valorização dos profissionais da educação. O repasse de recursos do Fundeb para entidades do Sistema S e para escolas privadas também contraria norma constitucional (art. 213, CF) e deverá ser questionada pela CNTE.

O Sistema S, novo beneficiado pelos recursos do Fundeb, é composto por um conjunto de organizações das entidades corporativas empresariais voltadas para o treinamento profissional, assistência social, consultoria, pesquisa e assistência técnica.

Os repasses para o Sistema S

Fazem parte do Sistema S: o Sesi, ligado à indústria, que oferece opções culturais, de lazer, de esporte e serviços de saúde; o Senai, ligado à indústria, que oferece cursos de qualificação profissional e assessoria técnica; o Sesc e o Senac, ligados ao comércio; o Sebrae, ligado à micro e pequena empresa e ao fomento do empreendedorismo; o Senar, ligado ao agronegócio; o Sescoop, ligado às cooperativas; e o Sest e o Senat,  ligados ao setor dos transportes.

Estas entidades são sustentadas com dinheiro público arrecado pela União, por meio de contribuições que as empresas pagam sobre a folha de pagamento, repassados à população nos produtos e serviços prestados.

Juntos, Senai, Sesi, Senac, Sesc, Sebrae, Senar, Sest, Senat e Secoop receberam R$ 17.676.259.11,92 no ano 2019 e, em 2021, os repasses giram em torno de R$ 20 bilhões, sem contar receitas próprias de serviços, consultorias e parcerias prestadas e remuneradas.

Na BNCC e nas diretrizes do novo ensino médio, aprovadas pelo MEC e o Conselho Nacional de Educação em 2018, já tinham sido incorporados todos os serviços de qualificação e aprendizagem profissional prestados por essas entidades para serem os parceiros prioritários dos estados na oferta do quinto itinerário técnico profissional. O primeiro exemplo e prova vem do Estado do Rio de Janeiro.

No dia 15 de outubro de 2021, a Secretaria de Estado da Educação do Rio de Janeiro celebrou um contrato com o Senai de R$ 24.374.058.25, com vigência até 31 de dezembro de 2022, para oferta do ensino médio integrado. Cabe lembrar que o Senai e o Sistema S não trabalham com professores formados e habilitados, e sim com instrutores, tutores e profissionais de “notório saber”.

Reformas transferem dinheiro para a iniciativa privada

De forma camuflada e gradativa, as diversas reformas educacionais em cursos, reduzem os investimentos do estado em educação – como ocorreu em 2020 e 2021 em plena pandemia –, para transferi-los para iniciativa privada empresarial e destruir as condições de trabalho e estudo nas escolas públicas.

Eis a chave para entender a ausência de concursos públicos para professores, funcionários e bibliotecários para as escolas. Isto é só começo. O fim será a privatização da educação como ocorreu no Chile e que serve de inspiração à equipe econômica do Guedes/Bolsonaro e de muitos governadores.

As consequências não serão apenas apropriação dos fundos públicos da educação pelas entidades e corporações mercantis da educação.

A direção política e didático-pedagógica já está sendo efetuada por Fundações e Institutos ligados aos interesses do empresariado e do capital. O exemplo típico é Jorge Lemann, dono da Eleva Educação, que tem 190 unidades de ensino, 120 mil estudantes, dono de uma fortuna de quase R$ 19 bilhões, financiando formação de lideranças políticas nacionais e promovendo governos à serviço de seus interesses privados.

A mercantilização na educação pública

Em recente livro Educação Básica em Disputa: o jogo dos empresários no mercado mundial do século XXI, Camila Azeredo de Souza aborda o espectro da mercantilização que ronda a educação pública.

“No grande teatro mundial de operações mercantis, diversos atores estão em cena e despudoradamente disputam o lugar de protagonistas. Grandes grupos de mercadores de ensino, conglomerados financeiros, empresas big tech e escritórios internacionais de consultorias contracenam com atores já conhecidos como o Banco Mundial, a OCDE e a Unesco”, aponta a pesquisadora.

O livro de Camila nos conta a história desse novo antagonismo da educação pública brasileira e, também, portuguesa, que vai buscando estabelecer parcerias aqui e lá com entidades que representam os interesses empresariais na educação junto à sociedade política e à sociedade civil, com um único propósito: valorizar o capital investido em educação.

Neste contexto, o professor Gaudêncio Frigotto (Uerj) afirma que o novo ensino médio é uma traição à juventude que estuda na escola pública e “é um pastel de vento”.

Pastel de vento porque liquida com o sentido de educação básica a qual supõe um equilíbrio entre as disciplinas que permitem entender as leis da natureza (química, física e biologia) e as que permitem entender e atuar nas relações sociais (sociologia, história, geografia, literatura, filosofia e artes).

O que as reformas estão priorizando são conhecimentos instrumentais e de qualificação profissional fragmentadas para inserção subordinado dos jovens com impacto para toda sua vida.

Tolerância e cumplicidade

A sociedade brasileira precisa ser menos tolerante para com a usurpação dos fundos públicos por empresas educacionais que possuem como fim último o lucro em detrimento da formação humana integral dos jovens.

É inaceitável que governo e o congresso reservem R$ 21 bilhões para o fundo eleitoral e para emendas secretas do relator no orçamento federal de 2022 e cortem as verbas para pesquisa e o financiamento estudantil.

É grave que União, estados e municípios não invistam os recursos do Fundeb previstos para a educação no pior ano de crise sanitária e educacional como ocorreu em 2021.

Ao tolerarmos estamos sendo cúmplices com a exclusão de mais 40% dos estudantes da educação básica e inviabilizando seus projetos e sonhos de vida.

Incluir as escolas do Sistema S entre aquelas que poderão participar do rateio dos recursos públicos do Fundeb atende ao anseio do setor privado empresarial de acessar ainda mais os fundos públicos para seu benefício próprio.

Para educação pública é um retrocesso enorme pois serão menos recursos para a escola pública, enquanto as entidades do Sistema S engordarão seus orçamentos bilionários.

Essa aprovação já é a materialização da reforma do novo ensino médio que prevê intensas parcerias entre os estados e setores privados, cabendo ao Sistema S a preferência pela oferta dos itinerários – especialmente, o quinto itinerário técnico profissional – nas redes públicas, reduzindo os investimentos e gastos dos estados com as escolas estaduais responsáveis pela oferta pública do ensino médio.

Parcerias já firmadas e outras em andamento serão a chave para fragilizar a esfera pública e reduzir a oferta de educação pública de qualidade para os jovens pobres de periferias, ampliando a desigualdade entre a oferta privada para menos de 20% dos estudantes e negação do direito à educação dos demais.

Esse é o projeto em vigor no Brasil. Neste ano de 2022 você terá oportunidade de mantê-lo ou promover a mudança. Escola não é empresa. educação não é mercadoria. Rebelar-se é necessário!

Gabriel Grabowski é professor e pesquisador. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

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