OPINIÃO

Os pastores do ouro

Por Marcos Rolim / Publicado em 11 de abril de 2022

 

Os pastores do ouro

Imagem: The Handmaids Tale/Paramount/Reprodução

Imagem: The Handmaids Tale/Paramount/Reprodução

A vigarice de pelo menos uma parte dos políticos que se apresentam
como “servos do Senhor” assinala uma das vergonhas nacionais

A laicidade é o princípio constitucional da separação entre Estado e Igreja, que está no centro do Estado Democrático de Direito e do processo de secularização.

Por conta dele, o Estado assegura ampla liberdade de crença e de não crença e é governado por leis resultantes do debate público e não pela interpretação de textos sagrados.

Graças à conquista histórica da laicidade, as sociedades contemporâneas não são como aquela descrita na distopia O Conto da Aia (“The Handmaid’s Tale”), de Margaret Atwood, e autocracias religiosas, como a do Talibã, no Afeganistão, nos parecem a realidade política do inferno.

Pois bem, não importa o quanto você é religioso ou o quanto não é; não importa, também, qual sua religião. Se você possui princípios morais, deve estar indignado diante das evidências sobre a intermediação de verbas mediante propinas realizadas por alguns pastores com livre trânsito no Ministério da Educação.

Segundo o que já se sabe, desde 2021, os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura intermediaram pedidos de prefeitos no MEC, alcançando a liberação de R$ 9,7 milhões com extraordinária agilidade.

Em pelo menos um dos casos, conforme relato do prefeito Gilberto Braga (PSDB), a propina solicitada foi de 1 quilo de ouro (aproximadamente R$ 300 mil). Esse tipo de conduta, assinale-se, envergonha também os evangélicos capazes de identificar os “vendilhões do templo” (João 2, 13-25) e os “lobos vestidos de pele de ovelha” (Mateus 7:15-20).

Desde 2018, com a eleição do líder da extrema-direita brasileira Jair Bolsonaro, pastores neopentecostais e ativistas fundamentalistas têm ocupado cargos destacados no Governo Federal e controlado, entre outras pastas, o Ministério da Educação.

Não se trata, como se poderia imaginar, da simples possibilidade de pessoas qualificadas e religiosas desempenharem funções públicas, mas de processo de afronta à laicidade, já que a referida ocupação é estratégia de subordinação das políticas e dos recursos públicos a um projeto de poder de natureza teocrática.

O movimento de ocupação de espaços no aparato do Estado por lideranças evangélicas, tendo em conta esse projeto de poder, chegou ao STF depois que o presidente nomeou o primeiro ministro “terrivelmente evangélico”, mas o processo começou há muitos anos, com a formação da chamada “bancada evangélica” no Congresso Nacional, grupo que atua, por sobre as precárias identidades dos partidos, como um pelotão de choque contra a modernidade e as garantias constitucionais.

A bancada evangélica tem sustentado, desde sempre, posições misóginas e homofóbicas; proposto a abstinência sexual dos jovens, a “cura gay” e o homeschooling; legitimado as políticas de armamento, a guerra contra as drogas e a violência policial; insinuado uma nova cruzada contra os povos indígenas e combatido as ações afirmativas; defendido a censura, atacado o conhecimento científico e agenciado posições negacionistas como em todo o período pandêmico.

Desde que 29 parlamentares evangélicos foram acusados, em 2006, na “CPI dos Sanguessugas”, de cobrarem comissões entre 10 e 20% do valor de emendas parlamentares, muitos foram os escândalos com membros do grupo.

Em 2017, 32 deputados evangélicos eram réus em processos envolvendo improbidade administrativa, corrupção eleitoral, abuso de poder econômico, sonegação fiscal e formação de quadrilha. Há coisas piores.

O pastor Everaldo, então presidente do PSC, foi preso quando do impeachment do governador Witzel do Rio de Janeiro. De acordo com as investigações da Polícia Federal, ele seria o líder de uma “sofisticada organização criminosa” para “desviar recursos públicos e realizar a lavagem de dinheiro”. Já a deputada Flor de Lis, outra expoente da bancada evangélica, foi cassada pela Câmara Federal no ano passado, depois de ter sido apontada como a mandante do assassinato de seu marido.

A vigarice de pelo menos uma parte dos políticos que se apresentam como “servos do Senhor” assinala uma das vergonhas nacionais. Há mais de dois anos, a Receita descobriu que muitas igrejas não recolhem contribuições ao INSS.

Igrejas no Brasil contam com imunidade tributária, não pagando impostos sobre renda, patrimônio e serviços. Contribuições patronais ao INSS, no entanto, são uma obrigação legal. Feitas as contas, a dívida foi estimada em cerca de R$ 1 bilhão.

Os templos distribuem lucros a bispos e pastores, e alguns deles se tornaram milionários. Matéria de Carta Capital citou levantamento da Forbes que apurou que Edir Macedo (Igreja Universal) tinha, em 2013, um patrimônio de 950 milhões de dólares, seguido por Valdemiro Santiago (Igreja Mundial do Poder de Deus) e por Romildo Ribeiro Soares (Igreja Internacional da Graça de Deus), com patrimônios de 220 e 125 milhões de dólares, respectivamente.

O Leão procurou, então, aplicar sobre esses patrimônios privados a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) que financia o SUS, o Bolsa-Família e o INSS. Lembram do resultado? A bancada evangélica se mobilizou para aprovar um projeto de lei apresentado pelo deputado David Soares (DEM), filho do Bispo Soares, para anistiar as dívidas das Igrejas com o INSS e isentar os humildes pastores da CCLL.

A proposta, pasmem, foi aprovada pelo Congresso por ampla maioria (345 X 125), contando, inclusive, com alguns votos favoráveis de deputados dos partidos da oposição (veja como votaram os/as parlamentares aqui.) Nesse bloco, aliás, apenas a bancada do PSOL o rejeitou de forma unânime.

Em síntese, “Deus acima de todos”, especialmente acima do Erário.

Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe

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