OPINIÃO

Resgatar a capacidade produtiva do país

A desindustrialização e a reprimarização estão diretamente ligadas ao fato que os conglomerados financeiros dominam a economia e controlam as decisões do Ministério da Economia e o Banco Central
Por Ladislau Dowbor / Publicado em 13 de maio de 2022

Foto: Igor Sperotto

“O centro de gravidade do poder econômico mudou. Antes, podia ser São Bernardo, com as suas indústrias; hoje é a Faria Lima, com os seus conglomerados financeiros”

Foto: Igor Sperotto

O nosso problema não é propriamente econômico, no sentido de falta de recursos, e sim de deformação política e social. É uma questão de governança, do processo decisório da sociedade.

Um fato simples e básico é o que o Brasil produz de bens e serviços anualmente, o PIB, R$ 8,7 trilhões em 2021, o equivalente a R$ 13 mil por mês por família de quatro pessoas.

Poderíamos usar a Renda Nacional Líquida, em vez de Produto Interno Bruto, e fazer outros ajustes, mas nada disso muda o essencial: o que o país hoje produz seria suficiente para assegurar a todos uma vida digna e confortável, bastando, para isso, uma redução moderada da desigualdade, usando o Estado com instrumento de reorganização.

Precisaríamos, também, produzir menos soja para exportação e mais alimento para a população, sem dúvida, mas o ajuste do perfil de produção tende a acompanhar a ampliação de demanda interna, e o conjunto da economia seria dinamizado.

O centro de gravidade do poder econômico mudou. Antes, podia ser São Bernardo, com as suas indústrias; hoje é a Faria Lima, com os seus conglomerados financeiros.

Não são produtores, são intermediários, cobradores de pedágio sobre atividades-fim, sobre os processos produtivos. E são conectados internacionalmente, por propriedade direta ou participação de acionistas de qualquer parte do mundo.

A desindustrialização do país e a reprimarização das atividades econômicas estão diretamente ligadas ao fato que os conglomerados financeiros não só dominam a economia, como também hoje controlam as decisões do Ministério da Economia e o Banco Central, além de outros ministérios.

E criaram um marco institucional que assegura o dreno dos recursos do país segundo os seus interesses. Lembremos que, em 1995, obtiveram a isenção tributária de lucros e dividendos distribuídos, o que é um escândalo, dado o volume de recursos apropriados.

Em 1996, obtiveram a aprovação da Lei Kandir, pela qual produzir para exportação, eixo dos seus interesses nacionais e internacionais, passou a ser igualmente isento de impostos: um dos maiores produtores agrícolas do mundo tem 116 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, porque, como proclamavam, “exportar é o que importa”.

Forçaram a aprovação, em 1997, da lei que as autorizava a financiar campanhas políticas, o que lhes permitiu, durante 18 anos, até o fim de 2015, quando o STF constatou que a lei violava a Constituição, preencher os órgãos públicos com políticos a seu serviço.

Em 1999, introduziram a Proposta de Emenda Constitucional que eliminaria o artigo 192, o qual caracterizava a usura (agiotagem) como crime, conseguindo a sua aprovação no início de 2003.

Apropriação dos recursos e fragilização da economia

Foto: Igor Sperotto

“2022 é o nono ano de paralisia econômica, desde 2014, quando começa a guerra contra o governo popular”

Foto: Igor Sperotto

A partir do Golpe, com o governo Temer e ainda com o governo Bolsonaro, expandiram ainda mais a apropriação de recursos, tanto do setor público, através do serviço da dívida e dos repasses frente à pandemia, como de outras medidas que fragilizaram a economia popular, com a lei do teto de gastos, fragilização da Previdência, liberação de venenos na agricultura, destruição da Amazônia e outras medidas.

Este 2022 é o nono ano de paralisia econômica, desde 2014, quando começa a guerra contra o governo popular. O ano de 2013 foi o último ano de crescimento da economia, 3,0%.

O crescimento médio do período de 2003 a 2013 foi de 3,8%. Os lucros da Faria Lima aumentam de forma radical, enquanto a economia estagna e o povo passa fome. O governo foi simplesmente cooptado pelo mundo corporativo financeiro.

É dentro deste marco que buscamos reconstruir a economia. O eixo central, evidentemente, consiste em recuperar a capacidade do Estado em regular a economia, reduzir a sangria, e reorientar os recursos públicos para que sirvam ao desenvolvimento do país. Lembrando que, quando a presidenta Dilma Rousseff tentou, em 2013, reduzir a agiotagem dos grupos financeiros, foram suficientemente fortes para promover o Golpe.

O resgate da capacidade produtiva passa pelo aumento da renda na base da sociedade, tanto com transferências, com ampliação da renda básica, como com aumento do salário mínimo.

Isso gera demanda, o que dinamiza a economia. Não irá gerar inflação, na medida em que as empresas estão trabalhando com 70% apenas da capacidade, e podem responder com produtos.

Mas também é preciso retomar o financiamento do SUS, da educação e de outras políticas sociais, os chamados bens e serviços de consumo coletivo, que representam grande parte do bem-estar econômico das famílias.

Um terceiro grupo de medidas se refere a políticas públicas de emprego, como está sendo discutido nos EUA e aplicado na Índia e em outros países, permitindo, ao mesmo tempo, investimento nas infraestruturas e geração de emprego e renda.

Mais a prazo, uma medida necessária será a redução da jornada, na linha do “trabalhar menos para que trabalhem todos”. São medidas práticas, para cuja aplicação já se tem ampla experiência.

Um segundo eixo se refere ao resgate da produtividade dos recursos financeiros. O dinheiro que está nos bancos não é dos bancos, é da população. E os recursos públicos têm de voltar a financiar ao que é necessário para o desenvolvimento.

Isso envolve uma reforma tributária básica, nomeadamente, a liquidação da isenção de lucros e dividendos distribuídos – é absurdo que bilionários no Brasil não paguem imposto sobre os aumentos da sua renda –, bem como a revogação da Lei Kandir, para que seja mais interessante abastecer o mercado interno, o que também reduzirá a pressão inflacionária.

Mas é preciso, ainda, assegurar a ilegalidade da agiotagem, retomando o conteúdo básico do artigo 192 da Constituição: é vital que o crédito volte a financiar o consumo das famílias e o investimento empresarial, hoje drenados pelas taxas absurdas de juros.

Em terceiro nível, é necessário resgatar a política fiscal, assegurando que financie a renda básica, as políticas sociais e as políticas públicas de emprego vistas anteriormente.

Dois eixos transversais são importantes neste resgate da economia: o investimento generalizado em ciência e tecnologia, e a proteção do meio ambiente.

Neste sentido, as reformas precisam acompanhar as transformações internacionais. Sobra dizer que não basta eleger um presidente que defenda os interesses do país, temos de assegurar bancadas que permitam as mudanças estruturais indispensáveis.

Ladislau Dowbor é economista, professor da PUC de São Paulo e consultor de diversas agências da ONU.Detalhes das propostas abordadas neste artigo podem ser encontrados nos livros O Pão Nosso de Cada Dia: opções econômicas para sair da crise e Resgatar a Função Social da Economia: uma questão de dignidade – disponíveis gratuitamente em https://dowbor.org

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