POLÍTICA

Boiada da bancada do agro atropela direitos dos indígenas

Em sessão marcada para o dia 7 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) pode votar uma ação sobre o tema, definindo se a promulgação da Constituição pode servir como marco temporal para essa finalidade
Por César Fraga / Publicado em 31 de maio de 2023
Boiada da bancada do agro atropela direitos dos povos indígenas

Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Em sessão marcada para o dia 7 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) pode votar uma ação sobre o tema, definindo se a promulgação da Constituição pode servir como marco temporal para demarcação de terras indígenas

Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Só não ocorreu na calada da noite porque a aprovação da tese do marco temporal na Câmara dos Deputados se deu sob protestos dentro e fora dos prédios do Congresso Nacional na última terça-feira, 30.  Foram por 283 votos a favor e 155 contra o Projeto de Lei 490/07 restringe a demarcação de terras indígenas àquelas já tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da nova Constituição federal.

O PL  do Marco Temporal, como agora é chamado, foi aprovado na forma de um substitutivo do relator, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA). Segundo o texto, para serem consideradas terras ocupadas tradicionalmente, deverá ser comprovado objetivamente que elas, na data de promulgação da Constituição, eram ao mesmo tempo habitadas em caráter permanente, usadas para atividades produtivas e necessárias à preservação dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural. Mas, vale lembrar que em sua origem, o PL 490/07, é de autoria do deputado já falecido  Homero Pereira (PR/MT), e teve a urgência de votação aprovada na noite do dia 24 de maio, pela Câmara Federal, depois de ter o trâmite desenterrado, talvez porque a frente parlamentar do agronegócio previsse possibilidade de derrota no STF.

Em caso de aprovação no Senado e se não for vetado pela Presidência da República, prosperando a tese, a comunidade indígena que não ocupava determinado território antes desse marco temporal, independentemente da causa, esta terra não poderá ser reconhecida como tradicionalmente ocupada.

O substitutivo prevê ainda:

  • permissão para plantar cultivares transgênicos em terras exploradas pelos povos indígenas;
  • proibição de ampliar terras indígenas já demarcadas;
  • adequação dos processos administrativos de demarcação ainda não concluídos às novas regras; e
  • nulidade da demarcação que não atenda a essas regras.

PL contra indígenas teve apoio de 19 deputados gaúchos

O que representa da prática é que o PL abre as porteiras para o agronegócio avançar sem empecilhos na devastação sobre territórios originários. “Esse PL pretende matar a mulher mais velha da humanidade, a Terra”, defendeu a liderança indígena, deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG). Contudo, a visão dos indígenas que se levantaram durante todo o dia pelo país foi ignorada.

O governo, em bloco, votou contrário à tese, bem como a minoria e outros blocos de partidos que englobam PT, Psol, Rede, PCdoB e PDT. MDB e PSB liberaram os votos das suas bancadas .

Dos 31 deputados gaúchos 19 votaram a favor, oito votaram contra e quatro se ausentaram. Votaram a favor do marco temporal: Any Ortiz (Cidadania), Alceu Moreira (MDB), Bibo Nunes (PL),  Covatti Filho (PP), Daniel Trzeciak (PSDB), Franciane Bayer (Republicanos), Giovani Cherini (PL), Heitor Schuch (PSB), Lucas Redecker (PSDB),  Luciano Azevedo (PSD),  Luiz Carlos Busato (União), Marcel van Hattem (Novo), Marcelo Moraes (PL), Márcio Biolchi (MDB), Mauricio Marcon (Podemos), Osmar Terra (MDB), Pedro Westphalen (PP), Sanderson (PL), Tenente-coronel Zucco (Republicanos). Votos contrários: Alexandre Lindenmeyer (PT),  Bohn Gass (PT), Daiana Santos (PCdoB), Denise Pessôa (PT), Fernanda Melchionna (PSOL), Marcon (PT), Maria do Rosário (PT), Reginete Bispo (PT). Estavam ausentes: Afonso Hamm (PP), Afonso Motta (PDT), Carlos Gomes (Republicanos), Pompeo de Mattos (PDT).

O deputado Elvino Bohn Gass (PT-RS) destacou que “o marco temporal é uma tentativa de oficializar o roubo do direito histórico dos povos indígenas às terras que são deles”.

Para o deputado Alexandre Lindenmeyer (PT-RS), “o PL 490 retira direitos históricos dos povos indígenas e ameaça os biomas brasileiros. É inaceitável o retrocesso na demarcação dos territórios indígenas”.

A matéria agora será encaminhada ao Senado Federal, onde não deverá contar com tramitação acelerada, como na Câmara.

“Este é o projeto da morte, do atraso e do retrocesso. É o lucro sobre a vida humana. Nosso povo indígena já foi vergonhosamente explorado, massacrado, escravizado e assassinado. Esse PL quer acabar de novo com os direitos, promover a injustiça e legalizar a violência. É um crime. Esse projeto vai aumentar o desmatamento e comprometerá metas climáticas em nível global”, disse a deputada Juliana Cardoso (PT-SP), que também é indígena.

Relator espera que STF não julgue a matéria

Em sessão marcada para o dia 7 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) pode votar uma ação sobre o tema, definindo se a promulgação da Constituição pode servir como marco temporal para essa finalidade, situação aplicada quando da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

O STF já adiou por sete vezes esse julgamento. A última vez ocorreu em junho de 2022.

O relator do PL 490/07, deputado Arthur Oliveira Maia, explicou que o projeto se apoiou na decisão do próprio Supremo e disse esperar que o STF paralise o julgamento sobre o tema. Segundo o deputado, o projeto aprovado hoje vai garantir segurança jurídica para os proprietários rurais, inclusive para os pequenos agricultores. “O País não pode viver num limbo de insegurança”, afirmou.

No Plenário da Câmara, parlamentares contrários ao projeto alertaram sobre ameaças aos direitos dos povos indígenas e sobre prejuízos ao meio ambiente. “O marco temporal vai na contramão do que é discutido internacionalmente, na contramão da preservação ambiental e da defesa de povos originários”, disse o líder do Psol, deputado Guilherme Boulos (Psol-SP).

Parlamentares ignoraram alerta da ONU

A ONU Direitos Humanos na América do Sul alertou um dias antes da votação “sobre iniciativas legislativas que arriscam enfraquecer a proteção dos povos indígenas no Brasil”, e cobrou das autoridades medidas urgentes em prol destas populações conforme as normas internacionais de direitos humanos.

O alerta da ONU Direitos Humanos se deu logo depois de a Câmara dos Deputados aprovar um requerimento de urgência para votar um projeto de lei (PL 490).

Cimi considera marco temporal inconstitucional

Para o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) o projeto é inconstitucional e prevê uma série de modificações nos direitos territoriais garantidos aos povos indígenas na Constituição Federal de 1988, inviabilizando, na prática, a demarcação de terras indígenas. Além disso, altera o Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973) e incorpora medidas  da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, uma das principais ameaças aos direitos originários que já passou pelo Congresso.

Dispersão à bala pela polícia de choque

Boiada da bancada do agro atropela direitos dos povos indígenas

Foto: Reprodução/ Redes Sociais/ Comissão Guarani Yvyrupa - CGY

Protesto de indígenas contra PL 490 na Rodovia Bandeirantes foi dispersado pela Polícia de Choque do Governo de São Paulo com uso de violência e balas de borracha

Foto: Reprodução/ Redes Sociais/ Comissão Guarani Yvyrupa - CGY

Repercutiu nacionalmente o protesto de indígenas que bloqueou a Rodovia dos Bandeirantes, na altura do km 20, em Jaraguá, na Zona Norte da capital paulista, na pista sentido São Paulo, na manhã do dia da votação. A via foi liberada por volta das 9 horas da manhã com ação violenta da Tropa de Choque da PM, que atirou contra os manifestantes  com balas de borracha e jatos de água para dispersar a manifestação. o protesto foi organizado por comunidades Guarani da capital e do litoral paulista contra o Projeto de Lei 490.

Usufruto dos indígenas

Antes da votação, Maia aceitou uma das nove emendas apresentadas pela deputada Duda Salabert (PDT-MG) e retirou do texto dispositivo que listava quatro situações nas quais o usufruto dos indígenas sobre a terra não se aplicariam, como aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos e os resultados de mineração ou garimpagem.

Todas as emendas apresentadas pela deputada propunham a retirada de diversos artigos do substitutivo.

Sem autorização

O substitutivo de Maia estabelece que o usufruto das terras pelos povos indígenas não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional, permitindo a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Fundação Nacional do Índio (Funai).

Essa dispensa de ouvir a comunidade se aplicará também à expansão de rodovias, à exploração de energia elétrica e ao resguardo das riquezas de cunho estratégico.
As operações das Forças Armadas e da Polícia Federal em área indígena não dependerão igualmente de consulta às comunidades ou à Funai.

Já o poder público poderá instalar em terras indígenas equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação.

Atividades econômicas

A partir do projeto, fica permitido aos povos indígenas o exercício de atividades econômicas por eles próprios ou por terceiros não indígenas contratados.

Esses povos poderão assinar contratos de cooperação com não indígenas para a realização dessas atividades, inclusive agrossilvipastoris, desde que gerem benefícios para toda a comunidade, seja por ela decidido e que a posse da terra continue com os indígenas. O contrato deverá ser registrado na Funai.

De igual forma, será permitido o turismo em terras indígenas, também admitido o contrato com terceiros para investimentos, respeitadas as condições da atividade econômica.

Essas atividades, assim como a exploração de energia elétrica e de minerais autorizadas pelo Congresso Nacional contarão com isenção tributária.

Participação ampla

Outra novidade nos processos para a demarcação de terras indígenas é que eles deverão contar, obrigatoriamente, com a participação dos estados e municípios onde se localiza a área pretendida e de todas as comunidades diretamente interessadas, como produtores agropecuários e suas associações.

Segundo o texto, essa participação deverá ocorrer em todas as fases, assegurando-se o contraditório e a ampla defesa e permitida a indicação de peritos auxiliares.

Nesse sentido, o substitutivo de Arthur Maia determina que caberá a apresentação de suspeição de antropólogos, peritos e outros profissionais especializados. Essa suspeição está prevista para juízes, membros do Ministério Público e auxiliares da Justiça quando a causa envolve pessoas com as quais trabalharam ou têm relação direta, por exemplo.

Quanto aos procedimentos, eles deverão estas disponíveis para consulta em meio eletrônico e qualquer cidadão poderá ter acesso a todas as informações, estudos, laudos e conclusões. Informações orais coletadas de indígenas somente serão consideradas válidas se realizadas em audiências públicas ou registradas em áudio e vídeo.

Qualquer benfeitoria

O substitutivo considera de boa-fé e sujeita a indenização qualquer benfeitoria realizada pelo ocupante de terra indígena até a conclusão do procedimento de demarcação, mesmo que já exista decisão sobre a ocupação ilegal.

Além disso, o ocupante poderá ficar na terra até a conclusão do procedimento demarcatório e o pagamento da indenização, sem qualquer limitação de uso e gozo.

Já a indenização das benfeitorias deve ocorrer após a comprovação e avaliação realizada em vistoria do órgão federal competente.

Quanto ao conflito de titulação de propriedade em área indígena, o projeto prevê a indenização por erro do Estado, inclusive em relação àquelas áreas cuja concessão possa ser documentalmente comprovada.

Áreas reservadas

O texto diferencia as terras ocupadas tradicionalmente, segundo o marco temporal de 5/10/1988, das áreas indígenas reservadas, consideradas aquelas destinadas pela União à posse e ocupação por comunidades indígenas de forma a garantir sua subsistência digna e preservação de sua cultura.

Entre esses tipos de áreas estão as terras devolutas da União discriminadas para essa finalidade; áreas públicas pertencentes à União; e áreas particulares desapropriadas por interesse social.

Entretanto, se houver mudança dos traços culturais da comunidade, ou em razão de outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo, a União poderá considerar que a área reservada não é mais essencial para o cumprimento dessa finalidade e retomá-la.

Nesse caso, deverá dar outra destinação de interesse público ou social ou direcioná-la ao Programa Nacional de Reforma Agrária em lotes preferenciais a indígenas com “aptidão agrícola”.

Áreas compradas

As áreas indígenas compradas pela comunidade ou doadas a ela serão consideradas áreas indígenas adquiridas, às quais se aplicará o regime jurídico da propriedade privada.

Unidades de conservação

Quando houver terras indígenas superpostas a unidades de conservação, o usufruto pela comunidade será de responsabilidade do ICMBio – o órgão federal gestor das unidades de conservação – com a participação dos indígenas.

Povos isolados

No caso de indígenas isolados, o projeto permite o contato, intermediado pela Funai, para ações estatais como auxílio médico ou ação estatal de utilidade pública, como construção de equipamentos de serviços públicos (torres de transmissão de energia, por exemplo).

Entidades particulares, nacionais ou internacionais, não poderão manter contato com povos isolados, exceto se contratadas pelo governo para essas finalidades.

Com informações da Agência Câmara, CUT/RS e Cimi

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