SAÚDE

Pandemia aumenta lista de espera por transplante

O risco de contágio e o deslocamento de profissionais de saúde para o atendimento a pacientes de Covid-19, somados a uma redução do número de doadores, teve um impacto negativo de até 40% nos transplantes
Por Marcia Anita Santos / Publicado em 18 de setembro de 2020
Na fila desde janeiro, Ícaro espera por transplantes de pulmões

Foto: Acervo Pessoal

Na fila desde janeiro, Ícaro espera por transplantes de pulmões

Foto: Acervo Pessoal

Portador de fibrose cística, doença genética que afeta principalmente pulmões, pâncreas e sistema digestivo, o engenheiro civil Ícaro Salomão Barroso, 24 anos, deixou sua terra natal, Manaus, em 2013, rumo a Porto Alegre em busca de tratamento, devido à perda de sua capacidade pulmonar.

Em janeiro deste ano teve de entrar na fila de espera pelo transplante. Sua dificuldade chegou a tal ponto que hoje necessita de um transplante bilateral – os dois pulmões estão afetados. Mas ele não contava com um problema adicional: além da espera por um órgão compatível, sem saber por quanto tempo, a pandemia do novo coronavírus – o primeiro contágio no Brasil foi notificado em 26 de fevereiro – fez cair os índices de transplantes e doações, com um consequente aumento da fila de espera no primeiro semestre.

O que Ícaro sente na pele é constatado objetivamente pelo médico Valter Duro Garcia, especialista em transplantes de órgãos desde a década de 1970 e hoje é o chefe do serviço de transplante renal do hospital Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre. “Janeiro e fevereiro deste ano foram os melhores meses de toda a história de transplantes de órgãos no Brasil”, avalia. Para comparar, ano passado, foram oito doadores por milhão de habitantes, enquanto que janeiro e fevereiro de 2020 alcançaram a marca de 19 doadores por milhão.

Entretanto, a situação piorou sensivelmente a partir da segunda quinzena de março, quando a pandemia se agravou no território nacional. “É, sem dúvida, o mais grave problema de saúde, e talvez econômico, enfrentado pela humanidade nos últimos cem anos”, constata Garcia. O Rio Grande do Sul e outros estados entraram em isolamento. Em consequência, houve diminuição nas doações. Conforme dados do Ministério da Saúde, em julho, mais de 46 mil pacientes aguardavam na fila de espera. No mesmo mês do ano passado, eram 35 mil

Vidas salvas que devem ser comemoradas

Equipe da Santa Casa de Porto Alegre fez 72 transplantes de órgãos entre janeiro e 20 em julho

Foto: Igor Sperotto

Equipe da Santa Casa de Porto Alegre fez 72 transplantes de órgãos entre janeiro e 20 em julho

Foto: Igor Sperotto

No Rio Grande do Sul, dados da Central de Transplantes demonstram queda de 39,20% nos procedimentos entre janeiro e julho deste ano. Foram 794 intervenções realizadas, enquanto que 2019 apresentou 1.306 no mesmo período. Após o início da pandemia, o estado precisou reduzir o número de transplantes para direcionar os esforços. Em janeiro, foram realizados 72 transplantes de órgãos e, em julho, somente 20.

Mesmo com todas as dificuldades, no Brasil, entre janeiro e junho de 2020 foram realizados 3.632 transplantes de órgãos e 3.963 de tecidos. No mesmo período de 2019 foram feitos 4.355 transplantes de órgãos e 7.112 de tecidos. São vidas salvas que devem ser comemoradas.

O médico Valter Garcia é integrante do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) e editor do Registro Brasileiro dos Transplantes (RBT). Em sua edição mais recente, ele escreveu que, comparado a 2019, o primeiro semestre de 2020 apresentou, no país, diminuição no número de transplantes de fígado (6,9%), rim (18,4%), coração (27,1%), pulmão (27,1%), pâncreas (29,1%) e, de forma mais acentuada, no transplante de córneas (44,3%), pela suspensão das atividades de grande parte dos serviços. Houve queda nos transplantes com doador vivo, tanto de rim (58,5%), quanto de fígado (23,6%), para evitar o risco de o doador adquirir Covid-19 durante a internação.

Crise sanitária paralisou transplantes no Norte e Nordeste

Valter Garcia, nefrologista da Santa Casa de Porto Alegre

Foto: Igor Sperotto

Valter Garcia, nefrologista da Santa Casa de Porto Alegre

Foto: Igor Sperotto

Na região Norte, a mais atingida no início da pandemia, os transplantes foram paralisados. Logo depois foi a vez do Nordeste. “O transplante de rins estagnou e houve queda muito grande de coração e fígado”, explica o nefrologista. No primeiro trimestre do ano, ele acrescenta, a região Sudeste conseguiu se manter estável, enquanto que o território Sul sofreu uma pequena queda e o Centro-Oeste ficou em uma posição intermediária. “Mas, no segundo trimestre, se verificou que houve uma queda em todas as regiões”.

Segundo a ABTO, a mortalidade na fila de espera por transplante é maior entre pessoas que aguardam por doação de coração, pulmão e fígado. Mas a entidade recomendou a todos os territórios que fossem mantidos os transplantes ativos o quanto fosse possível.

O trabalho, anuncia Valter Garcia, já foi retomado na região Norte, que é a mais atrasada em termos de transplante no Brasil. O mesmo acontece com o Nordeste.

Porém, o Rio Grande do Sul, que sempre foi um estado de ponta, praticamente parou. Antes, era entrar na fila e ficar aguardando, porque, a qualquer hora poderia ser chamado, desde que houvesse um órgão disponível e compatível.

Mesmo com o momento desfavorável para este tipo de procedimento, ele não perde a esperança de logo resolver a situação e voltar com sua vida normal. “A tendência é de progressão, acredito que logo recomecem os transplantes”.

Para o médico, apesar de ter sido um semestre particularmente difícil, “graças aos esforços das equipes de doação e transplante, essa atividade essencial para milhares de pacientes se manteve ativa”. Mas muitas regiões, que já passaram pela fase aguda da pandemia, deverão retomar suas atividades e manter as taxas de doação e transplante estáveis no Brasil.

Agora, no final de agosto, surgiu uma boa notícia. Antes de entrar setembro, a direção da Santa Casa, maior instituição e pioneira em transplantes no estado, autorizou o recomeço dos trabalhos rotineiros, após paralisia pelo novo coronavírus. As urgências foram mantidas na Santa Casa durante o período. Como em 20 de agosto, quando foi feito um transplante renal. Valter Garcia comemora o sinal verde dado pela direção do hospital: “estamos prontos para recomeçar”.

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