GERAL

Liberdade não se compra

Flávio Ilha / Publicado em 23 de novembro de 1999

entrevista_1Extra Classe – O senhor defende a aplicação de penas alternativas para condenados, a despeito da opinião pública e da polêmica que a proposta -apoiada pelo ministro José Carlos Dias (Justiça) – gerou. O senhor tem certeza da eficácia desse modelo?

José Paulo Bisol – Na verdade não existe polêmica. Isso é questão de informação e a polêmica só pode emergir, nesse caso, da ignorância. Michel Foucalt (filósofo francês), por exemplo, denunciou o sistema penitenciário há 30 anos e referiu-se a um modelo que está equivocado há pelo menos 200 anos. Há 200 anos sabemos que esse sistema é um mal, e que devolver o mal do crime com o mal da pena acaba envenenando todo mundo. Foucalt mostrou que o sistema penal produzia mais mal e mais crimes do que todo o sistema social. Outros estudiosos como Zafaroni e Carrara passaram a vida inteira 6 defende alternativas a e apoiada José O eficácia verdade é polêmica caso, Foucalt exemplo, penitenciário se equivocado anos. esse devolver mal envenenando mostrou produzia que Outros e inteira dizendo que o sistema penal é uma fábrica de bandidos. Há pelo menos 30 anos, portanto, temos a clareza de dizer que esse sistema está falido. E as pessoas que pensam, os intelectuais, estão escrevendo sobre isso. Consensualmente então ficou estabelecido que o sistema penal está falido, mesmo em lugares onde ele é até melhor que o nosso.

EC – Mas a opinião pública, o que acha disso?

Bisol – O senso comum é responsabilidade da mídia. Se você tem má mídia… Opinião pública não é mais como na Grécia, onde as pessoas iam para a Ágora, ouviam as discussões e até interferiam se quisessem. Agora a gente fica em casa, ouve rádio ou televisão, lê jornal. Se a mídia não é boa, ela não tem a informação correta e então há uma distorção.

EC – Há essa distorção hoje, no caso específico das penas alternativas?

Bisol – É interessante observar o que se passa nos outros países. Todos estão assustados com o encarceramento. Os Estados Unidos têm diagnóstico de que não é mais possível continuar com o índice de encarceramento registrado lá. E isso que eles têm mais penas alternativas que nós. A Noruega que tem mais penas alternativas ainda também registrou aumento expressivo de prisões. A Califórnia (estado norte-americano da costa oeste) gasta o dobro de recursos na construção e administração de presídios do que em educação. A qualidade da escola pública lá está caindo. Portanto, eu acho sim que a mídia brasileira pode melhorar um pouquinho. Pode pelo menos colocar todos os ângulos da questão para que as pessoas possam visualizar corretamente o problema.

EC – Como se operacionaliza uma mudança de estrutura dessa ordem?

Bisol – O Rio Grande do Sul, por exemplo, tem um cuidado especial com a construção de presídios, de média e alta segurança. Mas não temos casas para aplicação de penas em regime semi aberto. Então, antes das penas alternativas tem que se pensar na construção de estruturas para regimes semi aberto e aberto. Presídio já tem que chegue. Mas como, se estão superlotados, perguntam? Claro, lá está cheio de gente que tem direito a regime especial. Esses direitos estão sendo violados. Mas não temos onde colocá- los neste momento.

EC – Essa transição demoraria muito?

Bisol – O último dinheiro que a sociedade tolera gastar é com o sistema prisional.

EC – Bandido bom é bandido morto?

Bisol – Temos que tirar esse conceito da cabeça dos brasileiros porque, inclusive, ele é de uma burrice sem tamanho. Muita gente que defende a morte de bandido tem, às vezes, um bandido dentro de casa. Pelos menos potencial, porque todo ingestor de drogas -pode ser filhinho de papai – é um bandido em potencial. São essas pessoas que têm em casa um bandido potencial que dizem essas coisas.

EC – E os crimes de colarinho branco, teriam o mesmo tratamento de penas alternativas?

Bisol – Essas pessoas dependem de uma lição no dinheiro delas.

EC – Isso não seria o mesmo que comprar a liberdade?

Bisol – Mas aí já é um julgamento! Isso é um raciocínio elementar. Não adianta botar um cara desses na cadeia porque aí ele sai de lá um bandido. Se obrigá-lo a pagar uma multa tremenda ele sentirá muito mais do que passar um ano na cadeia. E tem outras punições. Digamos que ele seja obrigado a comparecer em público e fazer palestras sobre isso. É um tipo de pena alternativa: que seja reconhecido como infrator em recuperação. Não tem nenhum perdão nisso aí. É duro para ele, é um baita dum castigo. Não adianta encher a cadeiade gente, sabe por quê? Porque o empresário tem dinheiro e arruma um sistema de tratamento privilegiado. Ele compra os presos e forma um sistema de grupo em volta dele. Ele distorce toda a sistemática do presídio. E sai de lá apto a ser um organizador de quadrilha. Então, tem que ser inteligente e não deixá-lo lá.

EC – Mas os pobres, como é que ficam? Eles não podem pagar em dinheiro pela pena.

Bisol – Mas não se trata disso. Você está sendo preconceituoso. Trata-se de dar-lhe uma pena mais dura do que a cadeia. Não é trocar dinheiro por dias de prisão. Se eu tratar dessa forma, estou desmoralizando o assunto.

Liberdade não se compra

EC – O problema continua, secretário. A Justiça acaba sempre dando uma pena maior a quem tem menos condições financeiras.

Bisol – O sistema penal precisará ter recursos humanos e científicos para avaliar a normalidade ou anormalidade de uma pessoa. Se se tratar de uma pessoa que não ofereça distúrbios psicológicos, então se dá uma pena que não seja carcerária. Pode ser pobre ou pode ser rico.

EC – Mas é possível considerar que é mais difícil para o pobre obter uma pena alternativa na Justiça?

Bisol – Só se o juiz for ruim. Só se a Justiça continuar o que ela é. Se mudarmos todo o sistema – e isso inclui o sistema penal – nós vamos ter uma Justiça mais preparada para tratar igualmente as pessoas. Fui juiz durante 30 anos e sei que é diferente quando um réu é rico. Tem que ser um juiz muito isento para colocá-lo na cadeia.

EC – Então o senhor concorda que não estamos preparados para esse tipo de sistema?

Bisol – Está cheio de bons juízes aí, mas uma prova de que não estamos amadurecidos para isso são os crimes cometidos por pessoas que ocupam espaços sociais relevantes e que dificilmente são descobertos. É verdade que por não terem vítimas esses crimes, em geral de conotação fiscal, são mais difíceis de apurar, mas revelam também uma incompetência profissional de parte da polícia. Eles só aparecem quando há denúncia. Admito que nosso sistema judicial não trata igualmente as pessoas e nem luta para torná-las iguais.

EC – Como lidar com a banalização crescente do crime?

Bisol – O fator mais relevante nesse caso é uma evidente perda de sentido. A sociedade moderna não oferece para seus filhos um sentido existencial, os valores morais estãocompletamente diluídos. Não se vive mais numa determinada ordem, que tem um determinado fim. Se vive num mundo fragmentário cheio de ordens, e uma ordem em relação outra ordem ao mesmo tempo e no mesmo lugar vira uma desordem. O caráter fragmentário do mundo moderno faz com que o jovem não tenha utopias. E um mundo sem utopias está completamente perdido. A característica do ser humano e sua mais expressiva grandeza sempre foi essa: caminhar em direção ao impossível realizar o possível. A própria conquista amorosa, que na maior parte dos períodos históricos foi uma realização humana, que emancipava o ser, até isso se tornou uma coisa cotidiana, banal, sem nenhuma importância.

EC – Há ausência de uma referência de autoridade, na sua opinião?

Bisol – Não acho. Para mim só existe a autoridade moral, as outras só atrapalham. Numa sociedade bem organizada o Estado interfere o mínimo possível. E quando interfere nessa questão da segurança, é uma violência, embora legitimada. A Hannah Arendt (filósofa norte-americana) há 40 anos já dizia que a nossa juventude sofre de um mal que ela chamava de “abnegação”. No sentido comum é generosidade, mas ela falava etimologicamente: uma negação para dentro de si mesmo.

EC – E por que isso?

Bisol – Sinal dos tempos, na minha opinião. As últimas experiências de ordem foram terríveis fracassos. Podemos citar dois casos aqui: o nazismo, que matou seis milhões de pessoas (sem contar os da guerra) em poucos anos. Isso foi p roduzido por uma ordem, por um sistema legal, o povo alemão inteiro sabia disso, e os juízes, na maior parte, se acumpliciaram com o sistema; outro exemplo de ordem fracassada foi o marxista, que caiu porque se transformou num socialismo de Estado excessivamente autoritário e se perdeu de seus próprios valores. Isso foi a última etapa da sociedade moderna. Agora, no que se chama de sociedade pós-moderna, estamos num vazio onde tudo é resolvido fragmentariamente, cada um dentro do seu mundinho.

EC – Como recuperar a autoridade moral perdida?

Bisol – Como está aumentando a criminalidade e a violência, o pessoal quer mais efetivos, mais automóveis, mais equipamentos. Então, a solução é cada um casar com um policial e levar a segurança pra cama (risos). É fácil resolver a violência assim. Mas é claro que não adianta efetivo. Tem é que organizar a sociedade sob outros princípios, sob o princípio da solidariedade, da igualdade. Tem que tornar a tecnologia universal e democrática. E não fazer essa sociedade fragmentária onde 80 são desgraçados e desempregados e 20 estão situados. Teremos de conceber uma sociedade com outra organização.

EC – Que tipo de organização?

Bisol – O Direito, por exemplo, é fundado sobre obrigações negativas. “Não matar”. “Não furtar”. E são abandonadas as obrigações positivas, como o direito à alimentação. A diferença entre uma e outra é que as negativas eu posso conhecê-las e cumpri-las individualmente. Agora, acabar com a fome dos famintos, sozinho eu não consigo. Isso só é possível ser cumprido por toda a sociedade. Temos que começar a pensar num tribunal que exija da sociedade o cumprimento das obrigações positivas, por-que eu não posso exigir de você que vá lá e mate a fome de todo mundo. Mas da sociedade podemos exigir. Esse é o caminho para vocês, que são jovens.

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