GERAL

Alimenta Brasil desmontou agricultura familiar

Governo reduziu a 1% o investimento no programa de aquisição e distribuição de alimentos enquanto a fome dobrou e segue avançando no país
Por Flávio Ilha / Publicado em 17 de junho de 2022

Foto: Igor Sperotto

Desde 2003, o Programa de Aquisição de Alimentos – rebatizado de Alimenta Brasil no final de 2021 – abasteceu com comida milhões de famílias carentes do país

Foto: Igor Sperotto

Alimenta Brasil substituiu programa de fomento anterior, que subsidiava agricultura familiar e distribuía alimentos a comunidades vulneráveis e escolas públicas. Os cortes de receita não só reduziram incentivos, como praticamente inviabilizaram tanto a produção, quanto as doações.

Com o país batendo recordes de pessoas com fome, o governo federal reservou apenas R$ 2 milhões no orçamento de 2022 para a manutenção do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) produzidos pela agricultura familiar.

Desde 2003, o PAA – rebatizado de Alimenta Brasil no final de 2021 – abasteceu com comida milhões de famílias carentes do país.

NESTA REPORTAGEM
O valor empenhado representa 1% do orçamento deste ano previsto para o programa, de R$ 220,7 milhões, e 0,07% do investimento total do PAA desde 2014.

Nos cinco primeiros meses de 2022, o Ministério da Cidadania investiu apenas R$ 114,5 mil em contratos para a aquisição de doação de alimentos para famílias em situação de insegurança alimentar.

33 milhões passam fome

Foto: Igor Sperotto

58% da população brasileira convive com algum tipo de insegurança alimentar

Foto: Igor Sperotto

No início de junho, um relatório desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan) revelou que mais de 33 milhões de brasileiros estão passando fome. Há dois anos, esse contingente era inferior a 20 milhões de pessoas. Segundo o mesmo documento, 58% da população brasileira convive com algum tipo de insegurança alimentar.

O PAA, criado no primeiro ano do governo Lula (2003), foi substituído pelo Alimenta Brasil no final do ano passado, quando o presidente Jair Bolsonaro (PL) sancionou a MP 1.061 – que também criou o Auxílio Brasil.

A premissa segue a mesma: incentivar a agricultura familiar e a doação de comida para pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional. O resultado, porém, é catastrófico.

Corte de receita

Dados da ONG Fian Brasil, organização de direitos humanos que trabalha por alimentação e nutrição adequadas, aponta que o orçamento do antigo PAA despencou nos últimos 10 anos: passou de R$ 923 milhões em 2012, maior nível da história (dos quais foram aplicados R$ 586 milhões), para R$ 101 milhões em 2021 (ainda como PAA) – dos quais foram executados apenas R$ 58,9 milhões.

“Meio bilhão de reais a menos faz uma diferença enorme, sem dúvida. Essa redução impactou diretamente na vida das cooperativas de produção, muitas não conseguiram sobreviver e outras tantas ainda enfrentam sérias dificuldades.

Um terço das cooperativas está insolvente

O prejuízo maior, no entanto, foi na vida das pessoas carentes, que eram diretamente beneficiadas pela doação dos alimentos”, diz o presidente da União Nacional das Cooperativas de Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes), Gervásio Plucinski.

Segundo ele, mais da metade das 64 cooperativas associadas à Unicafes trabalha com programas institucionais de aquisição de alimentos. Muitas, ainda de acordo com ele, foram criadas a partir do fomento garantido pelo PAA. Com a redução drástica do orçamento, pelo menos um terço delas está insolvente.

É o caso da Cooperativa de Produção Agropecuária de Constantina (Coopac), que encerrou suas atividades logo que o PAA passou a ser desmontado. A cooperativa reunia 28 agroindústrias familiares que concentravam mais de 90% dos seus negócios no programa de aquisição de alimentos. Apenas quatro associados conseguiram manter suas atividades – os outros faliram.

A Cooperativa da Produção dos Agricultores Familiares de Sarandi e Região (Coopafs) só não teve o mesmo destino porque conseguiu reorganizar a tempo o mercado, deslocando a produção para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Mas os prejuízos foram grandes. “Muitos associados com propriedades menores desistiram do negócio e venderam ou arrendaram as terras. Calculamos que a perda média de renda das famílias ficou em 30%”, informa o agricultor Márcio Cassel, associado da Coopafs.

Agricultor lamenta

“É um desastre. O PAA foi um dos programas sociais mais bem-sucedidos do país porque uniu a produção e o consumo de forma equilibrada. Houve uma mudança radical nas condições de vida, tanto de pequenos produtores familiares, que tinham garantia de mercado, quanto das populações em vulnerabilidade social. Agora está tudo destruído, não tem mais nada”, lamenta o agricultor Altemir Tortelli, que durante oito anos ocupou uma vaga no extinto Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e foi deputado estadual por um mandato.

Segundo ele, a transformação do PAA em Alimenta Brasil teve como objetivo acabar com a influência que a agricultura familiar tem sobre a mesa dos brasileiros, em detrimento do agronegócio.

“Além de dinheiro, falta vontade política e gestão estratégica. É claro que gerir um programa desse tamanho, uma enorme rede de produtores e consumidores, dá trabalho. O resultado é que muitas cooperativas perderam seus mercados e agora lutam para continuar existindo”, completa.

Desmonte do programa

Outro dado que revela o desmonte do programa: em 2012, cerca de 184 mil agricultores doaram alimentos ao PAA, número que caiu para 39 mil doadores em 2019.

“Além do orçamento decrescente, o governo federal não tomou nenhuma iniciativa para assegurar a execução do PAA, preferindo apostar na edição do Alimenta Brasil. Concretamente, não houve nenhuma decisão política nos últimos três anos de investir na aquisição de alimentos, pelo contrário: os dados mostram os menores níveis de execução desde que foi criado, em 2003”, diz a pesquisadora Priscila Diniz, da Fian.

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