AMBIENTE

Quem fiscaliza a fábrica?

Por Sinara Sandri / Publicado em 8 de março de 2016
Dois incidentes em oito meses, após a quadruplicação da CMPC Celulose Rio Grandense, em Guaíba, gerou desconfiança entre moradores e pedido do Ministério Público Estadual para antecipar medidas de segurança

Foto: Igor Sperotto

Dois incidentes em oito meses, após a quadruplicação da CMPC Celulose Rio Grandense, em Guaíba, geraram desconfiança entre moradores e pedido do Ministério Público Estadual para antecipar medidas de segurança

Foto: Igor Sperotto

Em dez meses operando com capacidade ampliada, a CMPC Celulose Riograndense, instalada em Guaíba, contabiliza resultados positivos com planos de crescimento. A fábrica é monitorada pela Fepam, mas um vazamento e um incêndio despertaram atenção sobre o nível de segurança. O Ministério Público Estadual constatou irregularidades e antecipou o prazo para resolver problemas que afetam os moradores da região.

A nunciada exaustivamente como ampliação, a qua­druplicação da Celulose Riograndense é, na prática, resul­tado da construção de uma nova fábrica. Inaugurado em maio de 2015, o novo parque industrial ope­ra de forma conjunta com estrutu­ras da unidade, instalada há mais de 40 anos na antiga Borregaard. A produção aumentou 3,9 vezes e o volume de efluentes despejados no rio cresceu 3,3 vezes, enquanto as instalações ganharam 560 mil metros quadrados de área cons­truída, reduzindo a distância entre o maquinário e as residências dos moradores do Bairro Alegria, anti­go balneário da cidade.

O plano de expansão é anti­go e foi concluído apesar de uma mudança na propriedade da em­presa e da troca de governos es­taduais. O empreendimento tem a marca do grupo chileno CMPC Matte que, de olho no mercado internacional, comprou o controle acionário da fábrica da Aracruz Celulose, em 2009. Os atrativos para o negócio foram a garantia sobre a matéria-prima produzida em 213 mil hectares de lavouras de eucalipto instaladas em terras gaúchas e a promessa de obter a autorização definitiva para cons­truir uma nova fábrica.

Para concretizar a obra, foi ne­cessário transferir a responsabili­dade do processo de licenciamen­to, aberto pela antiga proprietária um ano antes da transação. O pro­jeto foi mantido e o ajuste ocorreu sem sobressaltos junto aos órgãos públicos. Em 26 de fevereiro de 2013, quatro meses antes de expi­rar o prazo de validade, a CMPC Celulose Riograndense pediu a renovação da autorização conce­dida à Aracruz Celulose, desta vez em seu nome. Sem interromper o processo, a Fepam liberou em 24 de outubro de 2014 a Licença de Instalação 00801/2014 mantendo para o grupo chileno a autorização, dada pela Licença Prévia 618/2008 à Aracruz Celulose, para multiplicar por quatro a produção de polpa de celulose branqueada de eucalipto e de cloro liquefeito, com o conse­quente aumento da produção de resíduos e da emissão de efluentes líquidos despejados no Guaíba.

Diferente da polêmica que du­rou mais de uma década e resul­tou no abandono da tentativa de duplicação da fábrica pela Klabin Riocell, em 2001, os níveis de po­luentes e o debate público sobre a proposta não foram impedimento para os chilenos.

“O projeto é muito melhor que o anterior, até pela evolução tecnoló­gica. Além disso, houve mobiliza­ção social para fazer esta fábrica. Se alguém reclamar, mostro a pilha de documentos de apoio que reuni­mos”, disse Walter Lidio Nunes, di­retor-presidente da CMPC Celulose Riograndense, ao Extra Classe.

Em agosto de 2013, antes da renovação da licença, a CMPC anunciou o começo da obra. A in­corporação da chamada Linha 2 resultou em um rápido aumento da capacidade de processamen­to, e a unidade de Guaíba fechou o ano festejada pelos controlado­res internacionais. Pelos núme­ros da empresa, em dezembro, o parque industrial gaúcho seria responsável por 43% de toda a produção mundial do grupo. So­zinha, a Celulose Riograndense encostou no desempenho das três plantas localizadas no Chile, que responderam pela outra metade de todo o volume de celulose pro­duzido pela CMPC naquele mês.

Para o diretor-presidente, os re­sultados positivos vão além do au­mento da produção e autorizam a manter os planos de crescimento. A empresa não trabalha com prazos, mas cogita produzir 2 milhões de toneladas, um incremento de 11% sobre 1,8 milhão de toneladas auto­rizadas pela Licença de Operação vigente. Segundo a Fepam, ainda não houve comunicado oficial so­bre a intenção de expandir ainda mais a ampliação, e qualquer mu­dança no empreendimento exigiria novo licenciamento prévio.

Walter Lídio Nunes, diretor-presidente da CMPC Celulose Rio Grandense

Foto: Igor Sperotto

Walter Lídio Nunes, diretor-presidente da CMPC Celulose Rio Grandense

Foto: Igor Sperotto

Nunes aponta como vantagens do novo sistema a redução de 40% do consumo de água e a instalação de três níveis de tratamento dos re­síduos líquidos despejados no Gua­íba. Ele assegura que a liberação de dioxinas e furanos, itens sempre polêmico na relação com ambien­talistas, estaria “resolvida” e que as duas fábricas têm índices que obe­decem às “melhores práticas mun­diais”. Os problemas enfrentados na fase inicial de operação seriam parte de uma “curva de aprendiza­gem” no manejo da estrutura.

“Estou aplicando nos pontos da fábrica de tecnologia mais antiga, os padrões da fábrica nova. Cons­tatei que preciso reformar o equi­pamento, para não ter desempe­nhos diferentes. É uma adaptação que gradativamente eu vou fazen­do”, disse Walter Lídio Nunes.

CARTEL ‒ O grupo Matte não admite que o envolvimento na formação de um cartel que controlou o mercado e os preços do papel higiênico no Chile e Colômbia por mais de dez anos prejudique o desempenho financeiro da empresa no Brasil. Para Nunes, o problema está restrito à prática de alguns executivos do grupo e o impacto seria mais ético que financeiro. As investigações seguem nos países afetados, mas o investimento de 200 milhões de reais previsto para Guaíba, em 2016, está confirmado. Os movimentos da CMPC no Brasil também incluem a defesa do afrouxamento da legislação sobre a compra de terras por estrangeiros. O pedido foi levado por Gonzalo García Balmaceda diretamente à Presidente Dilma Rousseff e ao ministro Armando Monteiro (Desenvolvimento), durante visita oficial ao Chile, em 27 de fevereiro. Secretário-executivo do Grupo há mais de 25 anos, Balmacera foi um dos fundadores da Renovación Nacional, partido de centro direita no Chile, em 1987. Foi subsecretário do Interior do governo Pinochet, entre 1988 e 1990.

Incidentes expõem falta de segurança

Nova fábrica ocupa 560 mil metros quadrados de área construída

Foto: Igor Sperotto

Nova fábrica ocupa 560 mil metros quadrados de área construída

Foto: Igor Sperotto

Desde que começou a opera­ção conjunta das duas fábricas, a Linha 1 foi paralisada duas vezes. Em 20 de maio de 2015, um vaza­mento de cloro úmido e dióxido de cloro na planta de cloro-soda afe­tou 16 trabalhadores. Em 18 de ja­neiro de 2016, um incêndio atingiu o leito de cabos elétricos da unida­de de digestão da Linha 1 e provo­cou uma coluna de fumaça escura que foi vista em Porto Alegre, na margem oposta do lago Guaíba.

Os incidentes pressionaram a curva de tolerância da população que vive na primeira linha de im­pacto do empreendimento. Com a construção da nova Linha 2, a fábrica avançou sobre o limite do terreno, se apro­ximando das residências de mo­radores do Bairro Alegria, antigo balneário de Guaíba. Os vizinhos alegam que estão mais expostos a riscos e não consideram o muro construído na divisa do terreno como proteção suficiente.

“Se pensar que atrás daquele muro existe uma ‘bomba’ de clo­ro, acho que tenho o direito de me sentir ameaçada”, disse Carolina Coutinho. Carolina tem 34 anos e vive desde criança na rua em frente à fábrica. Ela teme que, em caso de novos vazamentos, o cloro chegue à sua casa.

A companhia está autorizada a produzir 33.600 toneladas de cloro liquefeito por ano, mas o perigo é relativizado pela empresa. Sem detalhar quantidades, a direção defende que a fábrica está ajusta­da para consumir imediatamente o cloro produzido, evitando a ne­cessidade de estocar a substância, prática que aumentaria o risco da operação. Nunes admite que há excedente, mas em quantidades “mínimas”, que seriam rapidamen­te vendidas para indústrias locais. Mesmo assim, a população se res­sente com a falta de informação. Alegam que não receberam treina­mento ou informação sobre como agir em situações de risco e recla­mam que os canais de comunica­ção com a empresa e a Fepam são protocolares e pouco resolutivos.

“A coluna de fumaça estava a uns 200 metros da minha casa. Não sabia se deveria ficar ou sair. Não houve qualquer sinal de aler­ta no dia do incêndio. Faltam in­formações importantes para nós”, disse Aline Velloso, 37 anos.

CONTROLE – Tanto o mape­amento e a diminuição de riscos, quanto a orientação a populações afetadas, são exigências previstas no processo que autorizou o funcio­namento da empresa. Segundo a Fepam, órgão estadual responsável pela liberação e fiscalização am­biental, a empresa obedece à de­terminação do licenciamento e tem um Plano de Atendimento de Emer­gência, que “além dos procedimen­tos para tratar emergências, inclui simulados internos e externos” e um canal de comunicação disponíve

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Foto: Reprodução de vídeo

Foto: Reprodução de vídeo

l 24 horas para atendimento telefôni­co ou pelo site da empresa.

O órgão fiscalizador informou por escrito ao Extra Classe, que nos dois últimos incidentes (vaza­mento e incêndio) “o plano foi aten­dido”. Os eventos “ficaram restritos a áreas internas da fábrica e não houve necessidade de mobilização de outras áreas da empresa e tam­bém da comunidade”.

No caso do incêndio de janeiro, a Fepam garantiu que o fogo não atingiu “matérias-primas, insumos ou máquinas dentro do processo produtivo”. Uma inspeção consta­tou ao fim do incêndio e autuou a empresa por “emissões atmosféri­cas em desacordo com a legisla­ção”. A avaliação reforça a argu­mentação da Celulose de que o fogo originado em um painel elé­trico foi controlado em 15 minutos sem maiores consequências.

“Não houve alerta porque, além do aspecto visual da fumaça, não havia risco para comunidade”, dis­se o presidente da Celulose. Sobre a ocorrência de maio de 2015, a Fepam confirmou que “rompimento no selo hidráulico da linha da plan­ta de cloro” provocou o vazamento de cloro e dióxido de cloro. Como consequência, a empresa teria im­plantado um sistema de segurança capaz de “desviar” as substâncias e eliminar o risco de liberação para atmosfera, “em caso de novo rom­pimento”. A multa de R$ 323 mil, aplicada pelo vazamento, soma-se a cinco outras ainda não pagas.

Ministério Público Estadual quer antecipar soluções para ruído e odor

Moradores alegam descaso da empresa e das autoridades

Foto: Igor Sperotto

Moradores alegam descaso da empresa e das autoridades

Foto: Igor Sperotto

Em relação ao processo de li­cenciamento, a Fepam atesta que a Celulose Riograndense apre­sentou todos os estudos exigidos e continua monitorando a toxicida­de dos resíduos, mas não esclare­ce os motivos para o não cumpri­mento da Licença Prévia 618/2008 que determina o pagamento de 24,7 milhões de reais (em valores atualizados) como medida com­pensatória. O recurso previsto ain­da na primeira fase do licencia­mento, deveria ter sido aplicado integralmente em áreas do Bioma Pampa.

O montante equivale a 35,5 por cento do or­çamento da Fe­pam para 2016 (69,5 milhões de reais). A asses­soria do órgão garantiu que os documentos ne­cessários para concretizar o re­passe estariam sendo finalizados pelo setor jurídico da Secretaria do Meio Ambiente. O atual gover­no pretende destinar o dinheiro às Unidades de Conservação esta­duais (Parque Estadual Delta do Jacuí, Área de Proteção Ambiental Delta do Jacuí, Parque estadual do Podocarpus, Reserva Biológica São Donato e Parque Natural Mu­nicipal Morro José Lutzenberger).

MORADORES – O histórico de problemas ambientais da celulo­se de Guaíba não é novidade. Ao longo de 40 anos, melhorias e subs­tituição de tecnologia foram apro­ximando a performance do empre­endimento de níveis aceitos interna­cionalmente. Entretanto, alguns dos problemas como o nível de ruído e a presença constante de poeira con­tinuam visíveis e incomodam parti­cularmente os vizinhos. “A empresa alega que está tudo dentro dos pa­drões, nós alegamos que não”, dis­se a moradora Carolina Coutinho.

MINISTÉRIO PÚBLICO – O as­sunto foi parar no Ministério Públi­co Estadual, que abriu inquérito civil na Promotoria de Guaíba a partir de um abaixo-assinado de moradores.

“Tem um bairro inteiro que vive ao lado de uma fábrica que foi am­pliada. A licença precisa ser cum­prida e a tranquilidade reestabele­cida”, disse Daniel Martini, coorde­nador do Centro de Apoio Opera­cional de Defesa do Meio Ambiente.

Segundo Martini, uma vistoria técnica confirmou a reclamação dos moradores e a presença ir­regular de ruído e cheiro. O odor seria resultado de vazamentos pontuais anteriores à filtragem final dos compostos de enxofre, enquanto o barulho seria pelo fun­cionamento do maquinário.

“Constatamos o descumprimen­to da licença ambiental, mas não é uma situação de extrema gravi­dade que não possa ser corrigida”, disse Martini.

Como providência, o Ministério Público pediu a antecipação para junho do prazo para conclusão de medidas, inicialmente previstas para dezembro, que garantam o “enclausuramento” dos equipa­mentos barulhentos, além da loca­lização e resolução dos vazamen­tos de enxofre. O promotor aposta no compromisso da CMPC e no cumprimento do prazo acordado, evitando medidas como uma Ação Civil Pública ou mesmo um Termo de Ajustamento de Conduta.

“Em nenhum momento a em­presa se mostrou reticente em re­solver os problemas e vem cum­prindo o que é acordado”, resu­miu Martini.

A celulose em números

Arte: Bold Comunicação

Arte: Bold Comunicação

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