AMBIENTE

Até o lixo é desviado dos catadores

Por Fernanda Henzel / Publicado em 16 de agosto de 2018

Nos últimos dois anos vem caindo progressivamente a quantidade de lixo reciclável recolhido pela Prefeitura para ser encaminhado às unidades de triagem das associações de catadores.

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Nos últimos dois anos vem caindo progressivamente a quantidade de lixo reciclável recolhido pela Prefeitura para ser encaminhado às unidades de triagem das associações de catadores. Embora as autoridades não sabiam explicar o fenômeno, trava-se nas ruas da capital uma guerra pelo lixo que vem sendo ganha por caminhões clandestinos das chamadas máfias do lixo. Quem perde são os catadores organizados em cooperativas, cadastrados na Prefeitura há décadas e que deixam de ter sua principal fonte de sustento. A capital gaúcha conta com 17 unidades credenciadas pela Prefeitura que abrigam cerca de 600 catadores. Em 2000, quando o serviço completou dez anos, foi considerado um dos melhores sistemas de coleta e reciclagem do país

Em 28 anos de coleta seletiva, a situação dos catadores de Porto Alegre nunca esteve tão ruim. Há cerca de oito meses, 40 pessoas trabalhavam na Associação Reciclando pela Vida, que fica no Bairro Floresta, e cada uma tirava pelo menos R$ 250 por semana. Hoje, o número de catadores caiu pela metade, e a renda fica na média de R$ 150. A explicação está na queda na quantidade de lixo que tem chegado ao galpão, realidade que se repete em todas as 17 Unidades de Triagem (UTs) de Porto Alegre, em menor ou maior grau.

Além da queda nos resíduos, as Associações de Catadores sofrem com os atrasos nos repasses mensais de até R$ 5 mil para cobrir os gastos com energia, água, luz, gás e manutenção dos galpões de reciclagem. Segundo representantes das associações de catadores, todas as unidades estão com repasses atrasados. Na Associação Reciclando pela Vida o atraso é de um ano, e os trabalhadores estão tendo que tirar dinheiro do bolso para pagar as contas do galpão, reduzindo ainda mais a renda já prejudicada pela escassez de resíduos.

Por tudo isso, a Promotora de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre, Annelise Steigleder, é uma das que afirmam que este é o pior momento da história dos catadores: “É um problema sistêmico. Hoje as cooperativas conveniadas ao Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) não estão recebendo mais investimentos públicos, houve uma Interrupção do programa Somos Todos Porto Alegre, que capacitava e apoiava essas comunidades. Infelizmente os convênios na sua grande maioria estão atrasados, os municípios não estão pagando em dia, o que também vulnerabiliza as condições dos trabalhadores”.

Mas o problema que mais preocupa e intriga a promotora e os catadores é a queda na quantidade de resíduos. A Prefeitura afirma que os caminhões da Cootravipa – que fazem a coleta do resíduo reciclável – são controlados por GPS, e seguem recolhendo o lixo e encaminhando-o regularmente para as UTs. A diferença é que a quantidade de material caiu. Segundo dados da Assessoria de Planejamento do DMLU, a quantidade média de lixo entregue por dia nas UTs vinha aumentando continuamente desde os anos 1990 até 2015, quando chegou a 90 toneladas/dia. O número, no entanto, caiu nos dois anos seguintes, registrando 68,60 toneladas/dia em 2016 e 64,08 em 2017. O DMLU ainda não tem dados relativos a 2018, mas os catadores relatam que a quantidade vem caindo ainda mais nos últimos meses.

O diretor-geral do DMLU, Renê Machado, aponta algumas explicações, como a redução do consumo (e consequentemente da quantidade de resíduos gerados) em função da crise econômica e a falta de conscientização da população, que muitas vezes coloca os resíduos recicláveis nos contêineres destinados apenas aos orgânicos. Outra explicação está no aumento dos “atravessadores”, que passam antes do caminhão da coleta seletiva. “Essa é a explicação que mais me convence, porque vejo caminhões e kombis recolhendo lixo nos bairros mais variados”, afirma a promotora.

Nos últimos dois anos vem caindo progressivamente a quantidade de lixo reciclável recolhido pela Prefeitura para ser encaminhado às unidades de triagem das associações de catadores.

Foto: Igor Sperotto

Unidade de Triagem na Ilha Grande dos Marinheiros

Foto: Igor Sperotto

Para entender de onde veio parte desses caminhões, é preciso voltar para o dia 10 de março de 2017, quando foi proibida a circulação de carroças nas ruas de Porto Alegre. A medida atendeu à Lei 10531 de 2008, de autoria do então vereador Sebastião Melo (PMDB) e foi sancionada pela administração do então prefeito José Fogaça (PMDB). “Foi proibido usar a carroça, e eles [os carroceiros] tiveram que se juntar e comprar uma kombizinha, um carrinho velho e começar a puxar. E aí eles carregam o lixo mais qualificado”, explica o irmão Marista Miguel Antônio Orlandi,  educador social e membro da ONG Avesol. Ele atua junto à comunidade das Ilhas do Guaíba, que tradicionalmente vive do lixo trazido das áreas centrais de Porto Alegre.

Quem circula pelas ruas da capital percebe que também há muitos carrinheiros, que estão autorizados a circular até 2020. Mas segundo a promotora Annelise Steigleder, o “poder predatório” desses trabalhadores que puxam os próprios carrinhos não se compara aos dos caminhões: “Eles competem com os caminhões da Cootravipa, chegam antes, pegam o filé do resíduo reciclável e infelizmente os catadores conveniados com o DMLU acabam sendo penalizados”.

Empresariado clandestino e a guerra do lixo

Na Ilha Grande, o lixo está por toda parte. A cada quadra da estreita estrada de chão, existem um, dois, às vezes três pequenos galpões, puxadinhos ou apenas o pátio da casa abrigando um amontoado de lixo. Dali a pouco, um pequeno caminhão cruza a estrada embarrada trazendo uma nova carga. Isso a menos de 7 quilômetros da UT onde Marina Souza da Luz lamentava a falta de resíduos para trabalhar.

Beatriz Gonçalves Pereira é moradora da Ilha da Pintada, educadora do Centro de Assessoria Multiprofissional (Camp) e integrante da Rede de Proteção da Criança e do Adolescente. Ela afirma que a quantidade de lixo que chega nas Ilhas – em especial as Ilhas Grande e do Pavão – aumentou desde que as carroças foram proibidas e alguns moradores começaram a usar caminhões. Mas isso não quer dizer que a vida tenha melhorado.

A maioria das pessoas teve que parar de “puxar” por conta própria para passar a trabalhar para um dos donos dos caminhões, que construíram galpões particulares: “Antes eu tinha meu carrinho, eu puxava minha mercadoria. Então eu buscava, eu selecionava e eu vendia. Agora eu não busco. Me entregam, eu só seleciono e não vendo. Então eu vou ficar com a migalha da migalha”, explica Beatriz. É a mesma percepção do irmão Miguel Antônio Orlandi: “Tem aquele que criou um galpão particular, daí contratou uns quatro, cinco, que trabalham de qualquer jeito, muitas vezes sem equipamento de prevenção”.

Beatriz conta que quando a Lei das Carroças foi aprovada, foram feitas capacitações profissionais pela Prefeitura, mas insuficientes para inserir estas pessoas no mercado de trabalho formal: “Algumas famílias conseguiram fazer alguns cursos de qualificação e dar um jeito na vida, mas são muito poucos. Porque a maioria deles não tem instrução, mal sabe ler e escrever”. Ela diz que a precarização do trabalho dos catadores trouxe de volta dois graves problemas sociais: o trabalho infantil e a fome. Isso sem falar no tráfico de drogas, principalmente na Ilha do Pavão.

A comunidade também reclama do fechamento do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) que ficava na Ilha Grande, desativada desde o ano passado. Através da Fasc, a Prefeitura informou a previsão de que o local seja reaberto no segundo semestre deste ano. Enquanto isso, os serviços de Proteção e Atendimento Integral à Família (Paif), Cadastro Único, entre outros encaminhamentos como documentação e vale transporte, estão sendo prestados pela unidade do Cras localizada na Cidade Baixa.

Diretor do DMLU minimiza o problema

O diretor-geral do DMLU, Renê Machado, diz que a redução na quantidade de resíduos que chega às UTs não é tão significativa quanto dizem os catadores: “Não é bem isso, porque quando eles fazem as prestações de contas eles nos informam o volume de vendas e o faturamento deles. É normal que eles sempre joguem esse valor um pouco para baixo no intuito de que isso demonstre uma necessidade de ganho maior. Mas não é tão assim”.

Sobre os caminhões clandestinos, Renê afirma que estão sendo feitas ações de fiscalização com o apoio da Brigada Militar e da EPTC. Até maio, a única forma de punir estes atravessadores era com multas e apreensão dos veículos por infrações de trânsito. Mas no final de abril uma portaria da Fepam deu um novo instrumento às equipes de fiscalização, ao obrigar todo veículo que carrega lixo a estar cadastrado junto ao Sistema de Manifesto de Transporte de Resíduos.

Em relação aos convênios com as UTs, o diretor-geral do DMLU nega que haja atrasos nos repasses. Segundo ele, o que está havendo é uma análise mais criteriosa das prestações de contas das associações, que vinham apresentando “fragilidades”: “Não há um atraso, há um cuidado no sentido de que ao repassar o recurso a gente saiba que a prestação de contas do recurso anterior já foi aprovada. A regra de convênio é assim. Eu só posso repassar o valor depois de ter feito a prestação de contas do repasse anterior, e essa prestação de contas tem que ter sido feito da forma correta”.

BNDES financiou 9 milhões em programa

Os cursos de capacitação para catadores são parte do programa Somos Todos Porto Alegre, criado na gestão anterior e que compreende três projetos: Inclusão Produtiva de Condutores de VTAs e VTHs (veículos de tração animal e humana), Reestruturação do Sistema de Triagem de Porto Alegre e Educação Ambiental. Denise Souza Costa é uma das coordenadoras do programa, e afirma que os cursos contavam inclusive com alfabetização: “Muitas pessoas que fizeram os cursos são garçons, comerciários, trabalham com serviços gerais, tem gente em todas as áreas. Agora nem todos que fizeram os cursos se adaptaram, e muitos que até se adaptaram, com essa crise que veio depois, são 13 milhões de desempregados. Então não foi a lei das carroças que gerou desemprego né, é muito simplista tu querer dizer isso”.

Quando foi lançado, a previsão era de que o programa tivesse um investimento total de R$ 22 milhões, dos quais R$ 9 milhões seriam financiados pelo BNDES, R$ 9 milhões pela Prefeitura e o restante por apoiadores privados. Mas Roseli Neetzow, que coordena o Todos Somos Porto Alegre dentro da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SMAMS), explica que o município não está mais recebendo recursos do BNDES justamente porque não cumpriu o compromisso de aumentar a quantidade de resíduos nas UTs. Cinco editais para obras em UTs, por exemplo, estão aguardando o aval do banco para irem adiante.

Roseli afirma que a Prefeitura vem tomando uma série de medidas para resolver o problema. Além do aumento da fiscalização contra os clandestinos, está sendo feito um projeto-piloto para incluir os carrinheiros dentro do sistema de reciclagem. Ao invés de levarem o lixo para galpões particulares, a Prefeitura quer convencê-los a vender o resíduo para uma das UTs conveniadas ao DMLU. “O que a gente quer é trazer todo mundo para dentro da formalidade”, explica. Outra medida, prevista para vigorar em dois meses, é obrigar todos os condomínios de Porto Alegre a se cadastrarem no Sistema de Manifesto de Transporte de Resíduos, caso queiram vender seu lixo para uma recicladora privada. Para ser aceita pela Prefeitura, essa recicladora também precisará estar cadastrada no sistema.

Sistema possui gargalos

Segundo dados do DMLU, 23% do lixo domiciliar gerado em Porto Alegre é encaminhado equivocadamente para aterro sanitário. É um material com potencial para ser reciclado e reinserido na cadeia produtiva gerando renda, emprego e reduzindo impactos ambientais, mas que acaba indo parar no aterro administrado pela Companhia Riograndense de Valorização de Resíduos em Minas do Leão, ao custo médio de R$ 67,18 por tonelada (R$ 3,08 milhões/mês). A reportagem analisou todos os contratos vigentes do DMLU disponíveis no Portal da Transparência da Prefeitura, e encontrou pelo menos seis que dizem respeito a alguma etapa do processo de recolhimento, transporte e aterro do lixo da capital. Juntos, os contratos somam R$ 9,4 milhões por mês.

Apesar de tanto investimento, apenas 3,7% por cento do resíduo gerado na capital é efetivamente comercializado pelas Unidades de Triagem.  Mesmo quando o material chega aos galpões, a reciclagem não está garantida. Alguns produtos têm um preço tão baixo que os catadores nem se dão ao trabalho de separar. É caso das sacolas plásticas de supermercados, vendidas a 5 centavos o quilo. Outras vezes, simplesmente não existem empresas interessadas no material. Segundo o DMLU, hoje a empresa mais próxima de Porto Alegre interessada em comprar isopor, por exemplo, está no Espírito Santo.

Fabíola Pecce é fundadora da Escola de Sustentabilidade Pasárgada e uma ativista do Movimento Lixo Zero. Ela entende que as dificuldades enfrentadas pelos catadores é consequência de um sistema repleto de falhas: “Passa por essa falta de educação ambiental, pela falta de conscientização do consumidor, mas também passa por esta falta de processo. Porque quando a gente diz ‘vamos coletar o lixo seco na segunda-feira de manhã’, é claro que vai passar na frente o clandestino pegando o que tem mais valor comercial”.

Outro gargalo está na Lei Nacional de Resíduos Sólidos e nos acordos setoriais por ela implementados, que não obrigam as empresas a destinarem seus resíduos para os catadores. E são justamente estes os principais geradores de material reciclável, como explica Núbia Luísa Vargas dos Santos, presidente da Cooperativa de Catadores Sepé Tiaraju: “Os únicos mercados grandes de Porto Alegre que mandam os fardos são o Carrefour e Atacadão, que é uma festa quando chega nas unidades, porque é o que dá um up na nossa renda”. Sem uma lei que obrigue o repasse para os catadores, a maioria das empresas opta por vender o material diretamente para as recicladoras.

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