AMBIENTE

Ocupação urbana fora de controle explica desmoronamento em Gramado

Ministério Público investiga causas de desabamento no centro da cidade turística. Inquérito já alertava sobre deslizamentos há pelo menos uma década
Por Silvia Marcuzzo / Publicado em 24 de novembro de 2023
Ocupação urbana fora de controle explica desmoronamento em Gramado

Foto: Prefeitura de Gramado/ Divulgação

Várias rachaduras e deformações do solo apareceram no município de Gramado após evento de chuva extrema. Centenas de pessoas tiveram que deixar suas casas em áreas interditadas. Na região do Lago Negro, um prédio de luxo apresentou rachaduras no domingo e desabou na quinta-feira

Foto: Prefeitura de Gramado/ Divulgação

O desmoronamento de um prédio de cinco andares e rachaduras em vários pontos da cidade de Gramado, na Serra gaúcha, são evidências mais expostas de uma situação de caos em que o município turístico se viu mergulhado nos últimos dias.

Na manhã de quinta-feira, 23, o Residencial Condado Ana Carolina, um prédio de apartamentos de luxo, desabou. O prédio que ficava na encosta do Vale do Quilombo, área verde com montes de quase um quilômetro, a cerca de 10 minutos do centro de Gramado, havia sido isolado no domingo após o aparecimento de rachaduras.

NESTA REPORTAGEM
Ficava numa área disputada pelo mercado imobiliário que concentra pousadas e hotéis de luxo. A duas quadras do local onde ficava o edifício que desabou está um dos pontos turísticos de Gramado, o Lago Negro.

As causas ainda são investigadas por técnicos do município, do estado e de uma empresa contratada para fazer um laudo geológico. Há várias teorias para as rachaduras, como a declividade do terreno, instabilidade do solo e o excesso de chuva.

Somente nos sete dias que precederam o aparecimento das rachaduras na cidade de Gramado, a estação meteorológica registrou 291 mm em Canela. O volume representa o dobro da média histórica de precipitação de novembro inteiro na região de 144,5 milímetros.

Ocupação urbana desordenada

A ocupação urbana desordenada, sem fiscalização e tolerada pelo poder público, tem provocado problemas que afloram com os impactos da crise climática.

O município decretou estado de calamidade pública nesta sexta-feira, 24, mas a prefeitura sustenta que a zona turística do município não foi afetada. A programação prevista para o final do ano segue sem alterações.

Os pontos mais críticos na cidade são o bairro Três Pinheiros, que segue interditado pela erosão no solo e o risco de desmoronamentos, a Travessa das Azaléias, no bairro Planalto, o loteamento Orlandi na Várzea Grande, e a Rua Nelson Dinnebier no bairro Piratini.

O Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) está solicitando ao Judiciário a realização de audiência com presença de representantes da prefeitura do município.

O objetivo é debater as causas dos desmoronamentos ocorridos nos últimos dias e, em especial, cobrar do poder público uma explicação para a expansão desordenada das ocupações urbanas nas áreas de risco.

Um levantamento feito pelo MPRS na década passada não apontava a área onde atualmente ocorreram as fissuras que levaram ao desmoronamento do prédio no bairro Planalto.

Atualmente, há vários pontos da cidade interditados, diversas famílias foram removidas de suas residências, principalmente no bairro Três Pinheiros.

O MPRS também pretende realizar cursos de capacitação para melhor de detectar rachaduras no solo. Esse treinamento vai envolver a população e servidores municipais.

Com o aumento da zona urbana no plano diretor de 2022, também será solicitada à prefeitura a realização de uma carta geotécnica de aptidão à urbanização.

A medida visa a adoção de ações preventivas para diminuir os riscos à população, o que envolve também futuras localidades onde possam ser construídas residências.

O promotor de Justiça Max Guazelli também irá solicitar o acompanhamento das famílias que estão sendo removidas ou que possam ser retiradas de suas casas devido aos desmoronamentos.

Em 2013, o promotor havia instaurado um inquérito civil devido a pequenos deslizamentos de terra em diferentes pontos do município. Na ocasião ela já havia alertado: os riscos seriam ainda maiores no futuro.

A partir desta constatação, Guazelli ajuizou, em 2016, uma ação civil pública sobre o caso, quando também foi solicitado um mapeamento dos locais com problemas. O trabalho foi realizado pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB).

“Foram cerca de 10 áreas apontadas em 2015. Três que indicamos, na época, no inquérito civil e mais sete áreas, todas com sendo de risco,” explica o promotor.

Somente a região onde o prédio desabou não tinha sido mapeada. Guazelli estima que esse tipo de levantamento tenha de ser realizado a cada três anos. Esse é um dos temas que deverão ser tratados pelo recém criado GabClima do MP/RS, um espaço para estudos, orientações e trocas sobre a crise climática.

Gramado: colapso anunciado

Um exemplo que traduz o pesadelo vivido por quem vive em Gramado é o caso da família de A. L. C. que herdou um sítio de 12 hectares no município.

Com a expansão urbana, a área que antes era rural está praticamente no centro da cidade. O arroio que passa dentro da propriedade está poluído devido à ausência de rede de coleta de esgoto. O cheiro, especialmente em dias quentes e de sol, é insuportável na região.

O esgoto cloacal das fossas das construções vizinhas extravasa e acaba trazendo problemas. Situações como essa expõem as fragilidades que pressionam a região, cartão postal do Rio Grande do Sul.

“Há 20 anos lutamos para preservar a mata, um dos raros espaços para a fauna de Gramado”, diz uma das proprietárias da área.

Ela acrescenta que a prefeitura não fiscaliza a limpeza das fossas, tampouco se preocupa com um planejamento que respeite as características ambientais da serra.

“O que aconteceu é um colapso anunciado,” resume.

Área sujeita a deslizamentos

O professor de Geociências da Ufrgs, Rualdo Menegat, esclarece que o desmoronamento do prédio ocorreu em encosta com mais de 30 graus de declividade, o que já oferece risco de deslizamentos.

“Houve intensa remoção de floresta, em área de preservação permanente (APP), o que aumenta o risco. A grande quantidade de chuva carregou o solo de água, aumentando o peso e diminuindo a sua coesão, gerando um sistema de planos de ruptura na cabeceira do deslizamento da encosta ao longo de mais de 30 metros. Toda essa região a jusante dessas rachaduras está propensa ao colapso”, explica o pesquisador.

Menegat alerta que as encostas da região são formadas por rochas vulcânicas, com grande fraturamento vertical, o que contribui para a fragilidade dos terrenos.

Crise climática

A situação de Gramado, além dos outros 39 municípios gaúchos que decretaram emergência até essa sexta, 24 à tarde, é um dos temas que serão tratados pelo recém criado GabClima do MP/RS, um espaço para estudos, orientações e trocas sobre a crise climática. Trabalho não vai faltar para essa recente iniciativa do MPRS, que será coordenada pela procuradora Sílvia Cappelli.

Rio Grande do Sul e Santa Catarina são os estados que têm sido muito afetados por eventos extremos, como ciclones, enxurradas, granizo, tempestades e estiagens. Mesmo assim, ainda há pessoas que duvidam das alterações climáticas.

Ao ser procurado pela reportagem do Extra Classe, um geólogo que atua na região disse que é preciso tomar cuidado com o que se ouve por aí a respeito desse tema.

“A questão climática necessita muita discussão ainda para ser interpretada como uma fato incontestável. E existem argumentações que não podem ser desprezadas nesse tema, tanto a favor quanto contra”, argumenta.

Assim como ele, que trabalha para o dono do prédio que desabou, muitos gaúchos terão que compreender o que envolve a adaptação nesse momento da civilização.

No seminário realizado pelo MP realizado esta semana, há um farto conteúdo sobre o assunto. Inclusive os organizadores lançaram a Carta de Porto Alegre sobre Desastres e Crise Climática.

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