CULTURA

Ator de todos os gêneros

Publicado em 7 de outubro de 1997

Com uma imagem reconhecida pelo trabalho de ator de teatro e cinema, e em comerciais de televisão, Lever, como é chamado pelo amigos próximos, exibe uma trajetória artística respeitável, consagrada por prêmios e elogios da crítica. Jornalista, funcionário do antigo INPS, abandonou o serviço público no ano passado para consagrar a vida à interpretação de outras vidas e “em todas as bitolas”.

 

No Festival de Cinema de Gramado, em agosto deste ano, o ator Leverdógil de Freitas era um dos mais satisfeitos com o assédio do público e da imprensa. Não era para menos. Afinal, seu nome aparecia nos créditos de cinco filmes exibidos na mostra. “Estou em todas as bitolas”, brincava nos corredores, fazendo trocadilho com seus mais de 100 quilos.

Em março, no segundo Porto Alegre em Buenos Aires, Leverdógil havia emocionado a platéia argentina com o monólogo Ich Feuerbach. Sozinho no palco, foi aplaudido de pé, em cena aberta, no Teatro San Martin. Sua atuação mereceu elogios da crítica especializada. “São vários os méritos desse artista: da reivindicação do talento por cima da estética corporal a sustentar um cenário despojado, apenas com a presença e a palavra”, escreveu Ana Durán, do La Nación. “A emoção que ele provoca no espectador se traduz em silêncios quase míticos e em aplausos estridentes.”

Feuerbach é um ator experiente que passa por uma crise. Está desempregado há sete anos. Para conseguir um papel, sujeita-se a testes como se fosse um novato. A peça expõe as angústias, os mistérios e as ilusões do ofício de representar. Ator e personagem se conheceram em 1993, na montagem de Uma Chance para Feuerbach. O original do dramaturgo alemão Tankred Dorst foi adaptado e dirigido por Leverdógil. “Desde o primeiro contato com o texto sabia que havia nele um monólogo, pois toda a emoção está centrada no personagem”, explica.

Aos 48 anos, 20 de carreira artística, Leverdógil é um ator maduro e respeitado. Ao contrário de seu personagem, não pára de atuar. Tem no currículo seis peças infantis e doze adultas, além da direção de quatro espetáculos de dança, participação em uma dezena de filmes e quatro minisséries de televisão.

Na sala do apartamento próprio onde mora, no décimo andar de um edifício na avenida Osvaldo Aranha, em Porto Alegre, estão expostos os troféus e prêmios conquistados. Os dois últimos – o de melhor ator e o de melhor espetáculo – foram recebidos em julho, no VII Concurso Nacional de Monólogos Ana Maria Rego, em Teresina (PI). Em dezembro de 1996, foi eleito o melhor ator brasileiro do RioCine Festival, pelo filme Deus Ex-Machina, curta-metragem em 35 mm, de Carlos Gerbase. Com o mesmo trabalho, levou para casa o Kikito de melhor ator de curtas nacionais do Festival de Gramado de 1995.

Revendo trabalhos antigos, às vezes ele se surpreende com a qualidade da interpretação. E diz, sem querer parecer modesto: “Acredito, honestamente, que tenho um talento acima da média e, sobretudo, facilidade para interpretar”. Atribui parte do sucesso à disponibilidade para atuar. “Faço super-8 ou 16 mm. Se tem cachê, recebo; se não tem, trabalho de graça, sempre com o mesmo entusiasmo”, garante.

PACIÊNCIA – Meticuloso, dá muita importância ao processo de composição de um personagem. “Tu crias um personagem como se ele fosse uma pessoa. Ele tem identida-de, CPF. Ele sente, gosta de al-gumas coisas, não gosta de outras”, descreve. “Para construir um personagem completo, convincente, é preciso tempo, porque ele terá as coisas que tu sabes dele, mas que não são tuas. Tu precisas andar como ele, dormir como ele, sentir como ele”.

Da atual geração de atores gaúchos, destaca Roberto Oliveira, protagonista de O Estranho Senhor Paulo. “Ele é o oposto do Feuerbach. O meu personagem é visceral, está explodindo a cada momento. Ele parece que tem 200 anos de sabedoria, malícia e carrega a picardia dos velhos lúcidos que sabem rir das novas gerações e das coisas que estão mudando”, compara.

A predileção por artistas locais vai além do teatro. Em casa, tomando chimarrão, ou escrevendo no computador, Leverdógil ouve Vitor Ramil, Ernesto Fagundes, Duna Elias, Paulo Gaiger, Zé Caradipia, entre outros. A paixão pela música regional vem da infância, dos tempos em que cantava e dançava peças do folclore gaúcho no Clube 28 de Maio, em Santo Ângelo. Na cidade missioneira, também participava de Grêmios Literários e promovia jantares com apresentações teatrais. Integrou ainda o Teatro Universitário de Santo Ângelo (Tusa).

Nos anos 70, decidido a investir na carreira de ator, fez plantão na porta da TV Globo, na tentativa de falar com o então diretor artístico da emissora, Augusto César Vanucci. Insistiu tanto que Vanucci aceitou atendê-lo, desde que fosse no caminho entre sua sala de trabalho e o estúdio de gravação.

Conseguiu dizer que era talentoso e que precisava de uma oportunidade. O diretor quis saber em que área. “Em qualquer uma”, respondeu, com a afoiteza de um principiante. “Não”, retrucou Va-nucci, “você precisa se especializar em alguma coisa. Se quer ser ator, trabalhe como ator”, aconselhou.

A conversa deu resultado. O diretor decidiu escalá-lo. Mas ele fez uma exigência que estragou tudo: só aceitaria papéis com fala. Podia ser figuração, mas tinha de ter fala. “Hoje, eu percebo o tamanho da minha arrogância juvenil”, admite.

Antes do Rio, Leverdógil tentou viver em São Paulo. O choque cultural foi tão intenso que quase deu meia volta. “Ficava bravo com as pessoas porque elas batiam em mim na rua e seguiam andando sem pedir desculpas”, recorda. No início, chorava de saudades de casa. Com o tempo, foi se acostumando com a frieza da grande cidade e teve sorte. Trabalhando numa loja, conheceu o diretor de uma grande agência de propaganda, e recebeu o convite para estrelar um comercial de sabão em pó.

De volta a Santo Ângelo, foi trabalhar numa rádio, como locutor e redator. Nessa época, o diretor Sapiran Brito passou pela cidade, selecionando estudantes para a montagem de um peça. Leverdógil havia abandonado a idéia de ser ator, mas concordou em colaborar com o diretor. Separado da primeira mulher, aproveitou a fase de transição na vida e aceitou o convite para encarar mais uma vez o teatro.

JORNALISMO – Por insistência do pai, havia feito concurso público para o INPS (hoje INSS). Em 1981, já morando em Porto Alegre, dividia o tempo entre o emprego público e a redação do Jornal do Comércio. Jornalista provisionado, com registro obtido antes da profissão ser regulamentada, em 1969, é pós-graduado em Estilo Jornalístico pela PUC/RS. “Me considero um bom repórter, sempre escrevi bem e procurei estar bem informado”, afirma. “Hoje percebo que os nossos colegas não têm essa preocupação.” No ano passado, fez a opção definitiva pela carreira de ator, pedindo demissão do INSS.

As viagens e compromissos não têm deixado tempo para a leitura. Na cabeceira da cama repousa a biografia do cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues, escrita pelo jornalista Rui Castro. “Lamento só agora ter conhecido a fundo esse cara, que era um grande reacionário, canalha, sacana, ma-chista, mulherengo, e que escrevia sério como se fosse brincadeira”, comenta.

Mesmo tendo participado de várias produções nos últimos anos, Leverdógil não faz coro àqueles que acreditam no ressurgimento do cinema nacional. Para ele, a sétima arte ainda está engatinhando no Brasil. “No Anahy (de las Misiones, longa-metragem de Sérgio Silva), não tínhamos um cara para cair do cavalo”, conta. Para ele, O Quatrilho, produzido pela família Barreto e indicado para o Oscar de filme estrangeiro, é um bom filme, mas ainda está longe do padrão de qualidade do cinema norte-americano. “Enquanto eles investem bilhões, destróem carros e pontes e têm 15 engenheiros para fazer uma cena, nós queremos fazer cinema com dois milhões.”

O ator lembra que a televisão norte-americana faz propaganda de seus atores, em programas do tipo making off. Depois de 20 anos de batalha, Leverdógil diz que poderia se considerar um privilegiado, pois sempre consegue espaço na mídia para a divulgação de seu trabalho. Para ele, a mídia funciona como um tiete. Se o jornalista gosta daquilo que vê, faz um boa matéria e ajuda na divulgação. “O problema é que, no caso de Porto Alegre, nossa mídia é muito pequena”, constata. “Temos dois jornais de circulação estadual e apenas uma rede de televisão.”

Após a temporada em São Paulo, este mês, pretende descansar e esperar a confirmação do convite para atuar no longa-metragem Intolerância, de Carlos Gerbase, previsto para ser filmado no ano que vem. “Também estudo a possibilidade de produzir uma comédia”, informa. “Gosto de diversificar, assim evito ser rotulado como ator de um determinado gênero teatral.”

Pela mesma razão, nem pensa em aceitar um dos muitos convites para atuar na televisão. “Se eu for para a tevê, vou ser o gordinho mau, o gordinho engraçado, ou o padre. Na televisão não existe tempo para criar personagens como no teatro. Lá, tudo é medido em segundos”, analisa.
Teatro Infantil

Rei Leão e sua Confusão,
de Rosa Cunha

Um problema Verde,
de Rosa Cunha

As aventuras de Madame Apestovich,
de Dilmar Messias

A Cigarra e a Formiga,
de Leverdógil de Freitas

O Mágico de Oz,
de Ronald Raade

Lili Inventa o Mundo,
de Mario Quintana

Teatro Adulto

O Estado Sagrado,
de Fritz Ochwalder

A Falecida,
de Nelson Rodrigues

As Gralhas,
de Franz Kafka

O Ciclo da Inconstância,
de Kydo

O Abajur Lilás,
de Plínio Marcos

O Caso Oppenheimmer,
de Heinard Kipphardt

A Salamanca do Jarau,
de J. S. Lopes Neto

Terror e Miséria do III Reich,
de Bertold Brecht

A Gaivota,
de Anton Tchekov

Orquestra de Senhoritas,
de Jean Anohuil

Uma Chance Pra Feuerbach,
de Tankred Dorst

Ich Feuerbach,
de Leverdógil de Freitas

Dança (direção)

Brava Gente,
Ballet Phoenix
As Mulheres da Minha Terra,
Ballet Popular do Sul

Vertigem,
Ballet Phoenix

La Fille Mal Gasdeé,
Ballet Gisele Meinhardt (participação)

Cinema

Gota de Teatro,
de Lisiane Cohen

Quero Ser Feliz,
de Sérgio Lerrer

Batalha Naval,
de Liliana Zulsbach

A Festa,
de Jayme Lerner

A Pequena Vida,
de Jayme Lerner

O Caso do Lingüiceiro,
de Francisco Dornelles

Ângelo Anda Sumido,
de Jorge Furtado

Deus Ex-Machina,
de Carlos Gerbase

Um Homem Sério,
da Casa de Cinema

Anahy de Las Misiones,
de Sérgio Silva

Prêmios

Ator Revelação

– Troféu Clave de Sol, 1986

Melhor Ator

-Troféu Quero-Quero, 1990

– Troféu Quero-Quero, 1993

– Kikito, Festival de Cinema de Gramado, 1995

– Troféu Sol de Prata, RioCine Festival,1996

Melhor Ator e Melhor Espetáculo – VII Concurso Nacional de Monólogos, 1997

Improviso na cadeira

Em 1949, o pai de Leverdógil, um ex-sargento do Exército brasileiro, foi designado pelo Partido Comunista para organizar trabalhadores rurais das usinas de cana-de-açúcar. A mãe, natural de Santo Ângelo, acompanhava o marido em Ponte Nova, Minas Gerais, quando ele veio à luz.

O Partido Comunista estava na clandestinidade e as atividades de seus militantes eram vigiadas de perto pela Polícia. Desde pequeno, Leverdógil acompanhava reuniões secretas do partido. As pessoas chegavam à sua casa de madrugada e saíam antes do amanhecer. Havia os “tios” que ficavam várias semanas sem jamais saírem à rua. Nessas ocasiões, ele costumava subir numa cadeira e improvisar discursos inflamados.

Fechava a mão, levantava o punho cerrado, chamava os adultos de “camarada”. Para atrair as pessoas, os militantes comunistas preparavam chamarizes. O pai de Leverdógil fazia mágicas, alguns companheiros tocavam acordeão, outros cantavam. “Talvez venha daí a minha paixão pelas artes cênicas”, especula.

Essa história foi mantida em sigilo até o ano passado, quando o ator recebeu o título de cidadão honorário de Santo Ângelo. “Quando eu era criança, a ordem era manter em segredo qualquer fato relacionado a esse período”, relata. Leverdógil conta que chegou a ser preso junto com o pai, em Ouro Preto. “Foi uma experiência tão traumática que nunca mais consegui voltar a Minas Gerais.”

Em 1957, a família veio para Santo Ângelo disposta a esquecer o passado e recomeçar a vida. As únicas pessoas conhecidas eram os tios, alguns ligados ao Partido Libertador, de extrema direita. O pai foi recebido como um “arrependido”, abriu uma camisaria e matriculou os seis filhos em colégios particulares. “Papai exigia que a gente estudasse. Dizia que o Brasil precisava de cérebros”, relembra. Anos depois, ouviu o pai reconhecer que um dos erros do Partido Comunista foi ter tirado os jovens das escolas e universidades e colocado na luta política contra a ditadura Vargas.

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