CULTURA

Como um cruzado no queixo

Pablo Rocca / Publicado em 21 de maio de 2000

queixo

Sem nostalgia, desconforme, utópico, reformador radical, coerente com o projeto moderno, Roberto Arlt chegou aos tempos em que as utopias estão em julgamento, ao futuro pós-moderno que homenageia os cem anos de seu nascimento.

Se diz de mim que escre vo mal – declara al- guém na efervescente Buenos Aires de 1931. É possível. De qualquer forma, não teria dificuldade em citar muitas pessoas que escrevem bem e que são lidos unicamente pelos certinhos de sua família. Depois de outras provocações do mesmo tipo, conclui: “O futuro é nosso, por arrogância de trabalho. Criaremos nossa literatura, não conversando continuamente de literatura, ao contrário; escrevendo em orgulhosa solidão livros que tenham a violência de um cruzado no queixo”. Talvez poucos textos como este mostrem o gênio e a figura do argentino Robert Alt(1900-1942),filho de pai alemão e mãe austríaca, criado em bairros populares onde não passou de uma educação formal básica. E onde, desde muito cedo, exerceu incontáveis e modestos trabalhos, até conseguir viver do jornalismo e da literatura ao mesmo tempo em que acalentava outra singular vocação paralela e, em grande medida, complementar: a de inventor.

Para converter-se em escritor, essa vocação que vê surgir na infância, Beatriz Sarlo tem observado que “Arlt usou tudo que foi possível juntar nesse seu aprendizado custoso: o folhetim, as traduções espanholas dos autores russos, a novela sentimental(….) entravam nesse processo de antropofagia e deformação, de aperfeiçoamento e de paródia que é a escrita arltiana, mas que tem também outros conhecimentos, os conhecimentos técnicos aprendidos e exercidos pelos setores populares; os conhecimentos marginais que circulam no underground espiritista,ocultista, mesmerista, hipnótico, da grande cidade”.

Embora na literatura de Arlt não exista uma “representação realista” da sociedade do seu tempo, é na sua própria escrita que o entorno marginal urbano se transforma num autêntico laboratório criativo. Nele se experimenta a mistura heteróclita de materiais estéticos de diversas feições, aos que se absorvem de maneira caótica e original. Trata-se dos ensinamentos da vanguarda(em particular do expressionismo), da reeducação paródica da literatura sentimental, da literatura popular de aventuras, da crônica policial, de alguns recursos do fantástico.

Talvez todos estes elementos se mostrem com maior riqueza e capacidade de sedução em suas novelas, mas nos contos argentinos que reuniu em O Corcundinha (1933) e em outros espalhados em revistas, pode-se perceber a mistura criativa que o diferencia dos modelos publicados na narrativa rio-platense da sua época. Está longe da representação nostálgica do mundo rural já assumida desde uma perspectiva naturalista (como nas novelas de Manuel Gálvez ou de Carlos Reyles), já sob novas estratégias formais (como na novela Dom Segundo Sombra, de Ricardo Guiraldes); talvez esteja mais próximo dos poucos na floresta que representou Horacio Quiroga em seus contos de Os Desterrados; nada o aproxima da literatura regional de inspiração metafísica que se registra nos contos de Francisco Espinola, em Raça Cega. Os três exemplos antes citados nos remetem a livros aparecidos em 1926, o mesmo ano do Juguete Rabioso. Arlt também se afasta das ficcões da beirada portenha, como aparece nos primeiros contos de Jorge Luis Borges (Homen da esquina cor de rosa) e do realismo proletário de um Elias Castelnuovo ou um Leónidas Barletta; as ficcões de Arlt, por último, não têm conexões num sentido forte com a literatura antirealista dos argentinos Macedonio Fernandez e Santiago Davobe ou do uruguaio Felisberto Hernandez.

Outro problema propõem as história que reuniu no volume o Criador de Gorilas (1941). Com elas, Arlt dá um repentino giro, pois passa da modernizada Buenos Aires, com seus seres extravagantes e sua linguagem peculiar, para as “primitivas” atmosferas da África muçulmana. Sobre esses relatos têm se dividido as opinoes críticas: Júlio Cortázar, por exemplo, propõe que neste livro “se chega ao paradoxo de uma escrita praticamente livre de defeitos formais, mas ao serviço de medíocres contos exóticos, nascidos de um tardio e deslumbrado conhecimento de outras regiões do mundo, e que, a não ser por uma ou outro passagem, não tem a atmosfera que é o estilo profundo da sua melhor obra”. Ao contrário, na sua econômica introdução dos contos completos, Ricardo Piglia afirma que estos contos africanos são um dos pontos mais altos da literatura argentina.

Piglia não desenvolve a sua entusiasmada opinião, enquanto que Cotázar nos adverte que com esta série de contos se coloca a questão dos “defeitos formais”. Porque além das imperícias lingüísticas ou de composição que Arlt comete, motivado pela sua insuficiente formação acadêmica, os textos em que tinha se proposto reproduzir alguns aspectos do clima e da fala portenha obrigaram a estabelecer uma ruptura radical que “contaminou” positivamente a sintaxe de sua narração. Este corte se deve ao emprego de termos coloquias, que incorporou a seu discurso com audácia e completa naturalidade, mas também por causa da crua violência das situações representadas e o exercício de uma ironia que não se amedronta perante situações de extrema crueldade que aparecem com freqüência nos contos O Corcundinha, Ester Primavera ou As Feras.

Situado em espaço alheio às tensões de sua Buenos Aires, os contos africanos de Arlt questionam a fundo o realismo de costume. Muda de ambiente, de personagens, conseqüentemente é obrigado a se desfazer das mudanças populares da fala portenha. Então se coloca mais uma vez à prova, já que aceita o desafio maior de inventar histórias remotas a seu meio e formação afim de sondar a natureza humana a partir de suas obsessões fundamentais: o poder e a violência. Alguns contos desta série africana, como Exército de Artilharia e Lembra-te de Azerbaijan, mostran a luta pela imposição egoísta, o desejo de acumular riquezas a qualquer preço, a vingança e a morte. Em suma, se a cidade cosmopolita, que a passos apressados se incorpora ao capitalismo moderno, acolhe e reproduz situações deste tipo, a sociedade de relações econômicas quase medievais não fica de fora do processo. Neste sentido, teria que revisar a oposição entre cidade e natureza que Sarlo identifica na obra anterior a Viagem pelo Norte da África. Porque este mundo que se encontra num estado mais próximo à natureza também concorda com a brutalidade e o crime, a ousadia e a loucura, muito mais ainda quando é infiltrado pelo mau cheiro do dinheiro.

No começo de “As Feras”, o narrador-protagonista confessa a um interlocutor imaginário: “Difícil é explicar-te como fui afundando-me dia após dia”. Cabe ao leitor encontrar o fio dessas trevas na condição humana tão pródiga em possibilidades de mesquinharia, conforme opina uma personagem feminina do conto A Mola Secreta. É verdade que as propostas de este argentino são, na verdade, similares e diferentes àquelas que desde uma ótica cristã tinham ensaiado Andreiev y Dostoievski ou as que, na mesma época, estava criando o endemoniado Celine. Percorrer a obra de Arlt, este contemporâneo nosso que nasceu faz um século exato, significa uma espécie de “viagem ao coração da noite humana”, uma experiência fundamental, porém, tanto mais dolorosa quanto um cruzado no queixo.

* Professor da Universidad de la República (Montevideo).

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