CULTURA

Gaúchos no exílio

Keli Boop / Publicado em 8 de novembro de 2000

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Fotos: Sabrina Ortácio

Fotos: Sabrina Ortácio

É final de tarde em São Paulo. É agosto e estamos no atelier do artista plástico gaúcho. Ênio Squeff, que vem abrir a porta vestindo um macacão desses de mecânico. Em uma das mãos sujas de tinta, um charuto cubano. Música clássica envolve o sobrado no bairro eclético de Vila Madalena. O ambiente é acolhedor. Cores e formas explodem de telas de médio e grande porte expostas na maior parte das paredes. Ênio nos conduz até a ampla sala do segundo andar onde estão sentados em almofadas e cadeiras dispostas em círculo algumas pessoas, entre elas o músico gaúcho Zé Gomes.

Num clima de roda-de-bate-papo-com-bebida, aguardamos o momento para o início da entrevista com Ênio e Zé, radicados em São Paulo há cerca de trinta anos e amigos desde 1965. Ênio tem planos de fazer uma exposição em Porto Alegre ainda este ano (atenção, galerias!) e Zé Gomes deve lançar até o Natal um CD de música instrumental. A conversa começa com Ênio, que a essas alturas já está na parte de trás da casa, sentado em seu banquinho, diante de um cavalete, fazendo o que mais gosta: pintar.Artes visuais são para velhos

Entre uma pincelada e outra, Ênio repete uma frase que ouviu de Iberê Camargo sobre Picasso, para explicar o início de sua carreira profissional somente após ter trabalhado por vinte anos no jornalismo e na crítica musical. “Um camarada levou para Picasso um garoto que desenhava muito bem e perguntou: ‘O que o senhor achou daquele garoto?’. E ele disse: ‘Maravilhoso, desenha muito bem. Mas não será certamente um grande pintor’. E o camarada perguntou: ‘Porque?’. ‘Porque não existem grandes pintores precoces jovens, muito jovens. Eu mesmo, quando era muito jovem, fazia uma pintura perfeita, mas se eu não tivesse rompido com o meu passado, eu não teria feito o que eu fiz’, respondeu Picasso.” Em um discurso pausado e enfático, Ênio diz que as artes visuais são para velhos. “Velhos, não no sentido cronológico, mas velhos no sentido de adultos. Há um ‘direito’ na música, do artista ser precoce. Nas artes plásticas, não.

Quando eu era garoto, eu gostava muito de desenhar. Desenhei até os 12, 13 anos de idade. Aos 16 anos, eu fiz esta última pintura que está aqui (entramos para o ateliê e Ênio nos mostra um auto-retrato). Aí, 20 anos depois, eu era crítico musical e editorialista da Folha de São Paulo e um dia, o Otávio Frias, o velho, me viu desenhando e perguntou porque eu não desenhava para a página 3, isso por volta do início dos anos 80. Daí comecei a desenhar os artigos do Milton Rodrigues, às quartas-feiras”.

Estrutura e cor

Foi na Pinacoteca do Estado, quando começou a fazer modelo vivo, que Ênio encontrou verdadeiramente o caminho de sua arte. Lá ele passou a “rebuscar uma coisa que afinal de contas acho que acabei encontrando, que foi a busca da espontaneidade, da gestualidade, da verdade, de uma coerência, de uma estrutura; e estrutura é uma coisa que você não precisa buscar, ou ela existe ou não existe. E isso é um outro problema dos pintores. Nessa época eu só pintava em preto e branco, até que um dia eu estava dando uma aula sobre história da música e estragou o aparelho de som. Então convidei as pessoas para irem a minha casa, no grupo estava o João Rossi que perguntou porque eu nunca pintava a cores e eu disse que não pintava porque tinha medo e ele disse que então ia me ensinar a pintar aquarela. E ele me ensinou. Foi o que me bastou no começo para começar a pintar ininterruptamente nas férias”.

De repente, as férias não bastavam mais para Ênio até que um dia ele resolveu assumir a pintura, depois de comunicar à família que a partir daquele momento iria se dedicar integralmente a seus quadros. Isso foi em 1989.

Desde então, Ênio não parou de desenhar e pintar nenhum dia, sempre envolvido com a questão da estrutura na pintura. “Busco a estrutura fundamentalmente quando pinto. Acho que nunca vou fazer abstracionismo, embora admire alguns pintores como a Regina Olweilehr, que depois do Iberê, acho que é a grande pintora do Rio Grande do Sul”.

Rio Grande, Bienal, crítica

“Tenho ido muito ao Sul. Já não sei se sou mais paulistano ou porto-alegrense. Estou há 30 anos em São Paulo. Porto Alegre continua sendo aquela sedução dos meus tempos de garoto, mas eu notei que, quando fui expor em Porto Alegre, por volta de 1997, pela segunda vez, na Sala Iberê Camargo, fui bastante hostilizado. O que é normal, de certa forma. É uma coisa meio provinciana, mas é assim. Reserva de mercado, aquela história, tanta gente esperando para expor… Eu me lembro que eu fui entrevistado por um jornalista lá da Zero Hora e ele começava o texto assim: ‘Clarinetista, crítico de música, jornalista, escritor e, agora, pintor…’. Aquilo ficou pejorativo, ele não gostou da minha obra… Há realmente um olvidadismo na crítica brasileira de artes plásticas que é muito chata, incomoda, porque não são discussões sólidas e pertinentes. Por um outro lado, também, paciência…”

Sobre a Bienal do Mercosul, Ênio diz que gostou mais da primeira e que a proposta da última era um pouco “óbvia” demais. “Acho um saco as instalações porque todas elas são sempre o insólito. Tem uma coisa meio assustadora, dilacerante, só que esse dilaceramento passa a ser uma linguagem tão comum, tão óbvia que no fim, acaba cansando e o que acho que seria fundamental, que seria ambientar o espectador, acaba se perdendo”. Para Ênio, que também é clarinetista e tem todo um envolvimento com a música também como crítico e ensaísta, com dois livros publicados, “a música está muito pior do que a pintura porque ela depende da indústria, da mídia, de uma estrutura que é muito mais cara do que a pintura. O que eu vejo é que em todos os setores nós temos que cair sempre no modismo”.

O minuano e a Redenção

Ênio lembra que pintou durante muito anos à noite, em Vila Madalena. Mas foi na noite de Porto Alegre que um dia ele se deu conta de que a noite tem cores. Empolgado ele lembra: “Eu estava saindo da casa do Elmar Bones, eu, ele e o fotógrafo Felizardo, e estava uma noite fria, e quando saimos da Cauduro, veio aquele vento minuano, que pega na alma da gente, eu olhei para a Redenção e ela estava iluminada, à mercúrio, toda amarelada e me mostrando cores, muitas cores. Eu disse: ‘Nossa, à noite os gatos não são pardos não, não é verdade’. Aprendi muito com a questão das cores na noite”.

Um dinossauro de esquerda
Gomes: trabalho sobre raízes musicais brasileiras.

Gomes: trabalho sobre raízes musicais brasileiras.

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Gomes: trabalho sobre raízes musicais brasileiras.

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Admirador de Bazelitz, do neo-expressionismo alemão, do neo-expressionismo italiano e dos figurativos de um modo em geral, Ênio faz uma tradução de sua obra. “Meu trabalho tem um pouco de chocante. Como gesto, ele não é rispido, ele tem melodia, contraponto e mais que tudo, o ritmo. O Zé Gomes diz uma coisa muito pertinente: ‘Enquanto você fazia música, você estava pintando’”. O “buscador de significados”, como o definiu o professor da USP e compositor, Willy Correa de Oliveira, em seus auto-retratos está sempre a olhar para o lado esquerdo. “Talvez por eu ser um homem de esquerda”, brinca ele. “Apesar de todo mundo me considerar um dinossauro por isso, mas eu continuo acreditando firmemente na necessidade de socialismo nesse mundo, evidentemente não do jeito que foi feito, mas aquilo foi uma primeira experiência e nós temos que continuar tentando”. Os bicos-de-pena, aquarelas, guaches, têmperas e especialmente os óleos de Ênio fazem referências aos clássicos, num diálogo constante com seu acervo cultural.

Música-informação

Ele saiu do Sul nos árduos e psicodélicos anos 70. Atualmente mora em Mairiporã, São Paulo. Zé Gomes acha que no Brasil faltam trabalhos como os dos gaúchos Ivaldo Roque e Laís Marques. Nomes que, conforme ele, “ficaram no ostracismo”. Convicto de que existe uma música que ele define de música-informação, Zé Gomes lamenta que a música brasileira esteja atrelada a uma indústria fonográfica com interesses mercantis imediatistas de uma forma tão comprometedora. “A vontade da indústria é que está determinando o que deve ir para o público ou não. É preferível vender um milhão de cópias em 90 dias do que em 10 anos. Essa realidade não tem volta, mas acredito que surgirão outras perspectivas de acesso à música-informação e de qualidade. A MP3 é um dos caminhos”, aposta. Pode ser o caminho para o novo trabalho que Zé Gomes pretende lançar até o final do ano, novamente voltado para a música instrumental e centrado na consistente pesquisa das raízes musicais brasileiras que também sairá em CD convencional.

Compositor, arranjador e multi-instrumentista, Gomes, nos anos 50, integrou Os Gaudérios, que tinha uma nova proposta de interpretação para a música folclórica do Rio Grande do Sul. Já no Centro do País nos anos 70, trabalhou com nomes como Almir Sater e Renato Teixeira além de ser destacado intérprete da obra violonística de Heitor Villa-Lobos.

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