CULTURA

A leitura que vem do lixo

Marcia Camarano / Publicado em 20 de março de 2003

As cidades de Porto Alegre e Montenegro contam com um serviço que se poderia chamar de “salva-livros”. Recicladores de lixo urbano, por iniciativa própria, montaram bibliotecas com livros encontrados em suas garimpagens diárias, dando acesso gratuito à leitura não só para si, mas também para muitas pessoas que dificilmente teriam condições de comprá-los. Tal qual mergulhadores que caçam tesouros marítimos em meio a destroços de navios, eles resgatam as palavras de dentro das lixeiras, trazendo-as novamente à luz e colocando-as à disposição de quem as queira. O fato nos faz lembrar da importância da separação de dejetos. Mesmo assim, boa parte da população das grandes cidades ainda não se convenceu da importância da separação do lixo. Na capital, por exemplo, apenas 17% do lixo reciclável tem o destino devido, conforme dados do DMLU (uma diminuição em relação aos dados de 2000, que apontavam 25%). Ao todo são coletadas diariamente 300 toneladas de lixo que poderia ser reaproveitado. Deste total apenas 50 toneladas/dia seguem para os galpões de reciclagem. (leia também Extra Classe edição 46 – Out 2000)

Em Montenegro, logo na entra da da casa de Paulo e Regina Gustafson, na parte mais nobre, a sala, foi instalada a biblioteca reciclada “Flores no Amanhecer”, inaugurada em agosto do ano passado, somente com obras encontradas no lixo. Eles trabalham há 12 anos catando o que a sociedade joga fora para ser reaproveitado. Muita coisa é transformada em dinheiro para sustentar a família. Outras tantas são aproveitadas na própria residência do casal, como móveis e decoração. “O material que temos aqui vem das ruas”, mostra Regina.

Livros encontrados representam mais uma aquisição para a biblioteca. Muitos chegam sujos, rasgados, em estado precário. Paulo os arruma, um a um. Com cuidado e fita adesiva, ele faz com que cada exemplar fique em condições de ser manuseado. “Sempre fui apaixonada por livros e escritores, e meu marido gosta de ler. Para nós é um prazer esse trabalho”, conta Regina, que estudou até o quinto ano primário, enquanto o marido tem ainda um ano menos.

São 30 anos de casamento. No começo, tinham profissão, ele – motorista de táxi, ela – cozinheira. Com a idade avançando, chegou também a falta de serviço e a alternativa encontrada foi ir para as ruas, catar lixo. Ultimamente o filho e a nora têm feito esse trabalho, pois Paulo, com problemas cardíacos, agora passa os dias fazendo o que mais gosta: receber crianças em sua biblioteca, que já conta com um acervo de 3.800 exemplares. “Ela está aberta para o montenegrense, especialmente para os filhos de recicladores”, informa Paulo.

Claro que a biblioteca chegou a esse número com a ajuda também de particulares. Caso do escritor Ziraldo que, ao saber do projeto do casal Gustafson, anunciou a doação de 1.600 exemplares de sua obra e também de outros autores. O casal se encontrou com Ziraldo em dezembro, em Porto Alegre, durante a entrega do Prêmio Pandorga, da TVE. O ponto em comum, gostar de crianças, uniu-os e o projeto de Paulo e Regina encantou o pai d’O Menino Maluquinho.

RARIDADES – Na biblioteca são encontrados os mais variados temas e, incrível, raridades. “Esses dias um BM (policial militar) chegou aqui desesperado, ele tinha percorrido várias bibliotecas para encontrar “Espelho”, de Machado de Assis, para a sobrinha, que precisava dele para um trabalho de faculdade. Achou aqui”, orgulha-se Paulo. “Temos praticamente toda a coleção de Machado de Assis”, ele diz. “Baú de Espantos”, de Mário Quintana, também está lá, para quem quiser conferir. Há “O Gaúcho”, de José de Alencar, em edição de 125 anos; e bíblias em todos os formatos, línguas, tipos, inclusive uma em alemão. Uma partitura para violinos, com 104 anos, é relíquia mostrada com muito carinho. “Para quem gosta de música, é um achado”, afirma Regina.

Como recompensa pelo trabalho, um conhecido presenteou os Gustafson com uma raridade, uma coleção de fotografias de Roma e Veneza, sob o título “Roma – R. Galleria Borghese – 40 Tavole”. Incrível é pensar que esse material foi achado no lixo, colocado fora por alguém que não viu nenhuma importância nele. Além dos livros, há na casa objetos que revelam a capacidade de aproveitamento do casal. Paulo e Regina dão vida a coisas que a sociedade qualificou como sem serventia, colocando-as fora. Como o rádio de carro, adaptado, e que agora toca as músicas favoritas de Paulo enquanto ele recupera livros em estado precário. Ou o ventilador que o refresca nas horas de trabalho, o relógio colocado na parede, os enfeites da sala. Até um celular em bom estado foi achado no lixo. Durante a conversa, Paulo revela objetos guardados com carinho, como a faca de prata com bainha e a coleção de moedas e cédulas. “Tem até uma moeda do tempo da Coroa”, conta Regina.

Espaço maior ainda é um sonho

Com tudo isso, o casal ainda não está satisfeito. Regina e Paulo sonham com um espaço maior, para que as crianças possam estudar, usar a máquina de escrever manual (encontrada no lixo) e o computador, comprado por R$ 40,00 por mês, ao preço total de R$ 900,00. Mas a realidade do casal é bem diferente. A família e sua riqueza, a biblioteca, está abrigada em uma casa velha, com o chão tomado por cupins. “Algumas crianças entram para visitar a biblioteca, outras têm de ficar lá fora”, revela Paulo.

Sem dinheiro, os Gustafson (são oito filhos, cinco ainda em casa) têm passado fome. “Ontem, tínhamos só polenta para jantar e comemos isso no café da manhã. Não sei o que comeremos no almoço”, relatou Paulo no dia dessa entrevista. Quando revela isso, sente-se humilhado e chora. Mas o que mais o magoa é o descaso do poder público municipal, por não dar a devida atenção ao trabalho. Desiludido, ele visa estar disposto a se mudar para qualquer município que se interesse em abrigar sua biblioteca.

O contato mais direto com os livros, especialmente com os escritos de Olavo Bilac, estimularam Regina a escrever poesia. Ela se encantou com a “Vida Exuberante”, de Bilac. Encorajou-se e agora lançou seu próprio livro: “Flores no Amanhecer”, o mesmo nome da biblioteca que montou com o marido. Com pouco estudo, os erros de português são muitos, mas Regina perdeu o medo de transpor para o papel versos que sempre brotaram da boca de uma artista popular. “Escrevo não por saber, mas é algo natural, coloco no papel o que sinto”. Versos como esses: “Sou tímido, sou calado, silencioso. Sou como soneto, danço qualquer bailado, navego em altos e baixos…”.

Sim, o que para muita gente é lixo, para o casal é um tesouro, no sentido puro da palavra. Basta ver a pulseira de ouro que Regina usa, encontrada pelo marido em uma “garimpagem” pelos dejetos coletados. Mas, para eles, o maior tesouro são os livros. “Reciclando-os, devolvendo-os à condição de uso, foi a forma que encontramos de buscar nosso passado, de trazê-lo de volta”, diz Regina.

Livros na estante e comida na mesa

Iniciativa semelhante ocorre em Porto Alegre. Há seis anos funciona a Unidade de Reciclagem Cavalhada, que dá emprego para 46 pessoas. O grupo também teve a idéia de montar uma biblioteca para os trabalhadores e os meninos e meninas da comunidade com os livros encontrados no meio dos detritos jogados fora. Os trabalhadores também recuperam cadernos, lápis e todo o tipo de material escolar que são utilizados pelas crianças. Os beneficiados são filhos desses recicladores, que tiram o sustento da família do que vem do lixo.

O material reciclado é comercializado, indo para uma empresa intermediária. Cada sócio da Unidade de Reciclagem obtém uma média de R$ 350,00 a R$ 450,00 por mês. “Dividimos tudo em partes iguais, tentando fazer com que todos trabalhem”, informa Celoí da Rosa, presidente da Associação de Catadores da Cavalhada. Antes, a biblioteca funcionava no próprio galpão de reciclagem, pois o local também servia de sala de aula para os trabalhadores, que faziam parte de um programa de alfabetização da Secretaria Municipal de Educação. Mas há quatro meses o projeto foi interrompido no local e o acervo foi doado para a Escola Municipal de 1º Grau Neuza Brizola, que atende as crianças da comunidade. “O Movimento dos Catadores está negociando para que as aulas sejam retomadas, dentro do horário de trabalho porque, se não for dessa forma, vai ser impossível tocar o projeto, já que as pessoas têm casa e filhos para cuidar”, diz Celoí.

Depois da doação à escola, o grupo agora pensa em auxiliar a creche da comunidade, que atende crianças de até cinco anos, doando livros de histórias infantis e material para brincadeiras. “Pegamos material em ótimo estado, muitas escolas sabem que nós aproveitamos e já mandam tudo separado”, conta a líder comunitária. No trabalho de reciclagem de lixo, a biblioteca é só um exemplo de que tudo pode ser reaproveitado, não apenas os livros. O Clube de Mães da comunidade faz um trabalho igualmente importante, ensinando meninas adolescentes a reaproveitarem tecidos, retalhos e mesmo roupas. São feitos bordados e aplicações, tudo com material coletado. “Os produtos são lavados e, quando não dá para clarear, a gente dá um banho com chá da Índia”. Quem conta o segredo é a professora de Artesanato Cleusa Centeno. As meninas agora estão prontas para começar um novo aprendizado: bolsas e mochilas com cordão: um trabalho que começou com a dona-de-casa Grace Kelli Acunha. No início, ela queria dar ocupação e renda para as mães. “Mas quem participa mesmo é a gurizada”, constata Grace. Entre as meninas beneficiadas com o projeto está Márcia Gonçalves, de 11 anos, estudante da 6ª série da escola que recebeu os livros reciclados. Ela é usuária da biblioteca e diz preferir os livros de poesia.

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