CULTURA

Provocando o olhar

Nereida Grabauska / Publicado em 30 de maio de 2003

Bruxas, fadas, gnomos, bichos com cara de gente, gente com cara de bicho, vassouras que dançam, árvores que dão conselhos, heróis e vilões fazem parte do repertório infantil há séculos. Frutos de descrições detalhadas de escritores primorosos, esses personagens, entretanto, perpetuaram-se por fazerem parte da memória visual das crianças, trazidos à vida por pincéis e tintas de artistas não menos detalhistas nem menos primorosos que os escritores: os ilustradores. No mundo atual, contudo, ilustrar a literatura infantil e encher os olhos dos pequenos leitores com desenhos coloridos não têm sido uma tarefa fácil. Os artistas que se dedicam a esse ofício têm como adversária a parafernália eletrônica representada por computadores, televisão e videogames. Trabalham para crianças muito mais difíceis de serem surpreendidas e que estão expostas diariamente a uma quantidade sem limite de estímulos visuais. O desafio de hoje para quem atua nessa área é, portanto, buscar nas entrelinhas do texto aquilo que não se enxerga. É uma espécie de convite para deixar a realidade e embarcar na canoa da imaginação. E é justamente a imaginação que se torna a visão das crianças portadoras de deficiência visual que sentem as ilustrações em relevo (para textos em braile) pela ponta dos dedos, fazendo do tato, olhar.

Das palavras à imaginação

Nesse sentido, um par de botas pretas, num chão repleto de embalagens de presente, são uma representação mais que suficiente de que nessa cena há uma personagem que qualquer criança está careca de conhecer: o bom e velho Papai Noel. É a pista deixada por Laura Castilhos, ilustradora há oito anos e professora de Artes Plásticas na Ulbra e na Unisinos, que já teve sete livros publicados, em seu trabalho mais recente: O Natal de Natanael (Ed.Projeto), livro/cd do Grupo Cuidado que Mancha. “O ilustrador precisa resgatar em suas experiências elementos que o remetam para o mundo infantil, mas sem desprezar a inteligência da criança nem sua capacidade de fantasiar sobre as situações propostas pela história. A forma de enxergar cada situação, cada personagem, é subjetiva. A leitura do texto visual é diferente para cada criança,” ressalta a artista, premiada em 2001 pelo trabalho no livro A Mulher Gigante, também do Cuidado que Mancha. A filosofia de trabalho de Laura, porém, é baseada no conhecimento do texto que vai ilustrar e na interação com o autor e com as idéias que ele quer concretizar.

A artista plástica Cristina Biazetto, que estreou como ilustradora de livros infantis em 1999, com Três Contos de Muito Ouro, de Fernanda Lopes de Almeida, também aposta nesta interação com o escritor e na necessidade de o ilustrador escapar da obviedade. Para ela, o papel da ilustração é o de um despertador da curiosidade e de um provocador da imaginação, o que torna esse trabalho muito mais abrangente no espectro da arte. “É muito gratificante saber que o trabalho que será impresso em dois mil livros vai chegar às mãos de pelo menos duas mil crianças e vai interferir na vida delas e na forma como elas vão encarar o mundo. É uma obra muito diferente de uma tela, por exemplo, cujo universo se resume à parede onde fica dependurada”, avalia a criadora da personagem Tecelina em livro homônimo, – uma menina que tecia a vida ao contrário –, e dos marcianinhos solitários de Num Marte Pequeninho (Ed. DCL), ambos em parceria com a escritora Gláucia de Souza.

Mas por que não dar à ilustração um papel menos figurativo e mais subversivo, no sentido das possibilidades de interpretação que uma cena de livro possa ter? Foi se fazendo esta pergunta que o ilustrador Marco Cena, há mais de 20 anos no mercado da literatura infantil, concebeu trabalhos como os da série 1001 Lendas (Ed.Mercado Aberto) e que lhe renderam o Prêmio Henrique Bertaso de Melhor Ilustrador de 1994 por Cadê a Coruja?, de Sissa Jacoby. Nessa coleção de contos populares narrados com o mínimo de texto, Cena empresta aos personagens toques de ingenuidade, esperteza e desprezo que não estão nem sugeridos na escrita. “Acho que a ilustração não deve trair o texto, mas tem vida própria, não é só um acessório”, opina.

O trabalho de Marco no livro Tibi e Joca, de Cláudia Bisol, é uma constatação de que essa vida própria do desenho é possível. O livro, sobre a trajetória de um menino surdo e sua situação de isolamento, toca o coração de qualquer um em páginas e páginas de ilustrações em que transparecem solidão, culpa, sofrimento e redenção. Tudo quase sem palavras.

Quando as imagens precisam ser sentidas

A produção literária infantil, embora rica em opções, pensa basicamente na criança com capacidades plenas. Como fica então a linguagem visual agregada aos textos para crianças quando o pequeno leitor é um deficiente visual e conta apenas com a ponta sensível de dedinhos muito ágeis para explorar o mundo do “faz de conta”? As professora Creusa Marques, de visão normal, e Suzete Remus, cega desde a infância, ambas do Instituto Santa Luzia, em Porto Alegre, reconhecendo que havia defasagem no aproveitamento da leitura de alunos cegos, iniciaram neste semestre um trabalho pioneiro no campo da linguagem figurativa. Com materiais que transcendem muito aos usados pelos profissionais da ilustração, estão produzindo traduções completas de obras literárias, tanto no sentido da escrita quanto no da imagem.

“Procuramos representar os elementos mais importantes da ação de cada livro, mas não podemos distorcer a figura para o deficiente visual. Para não causar confusão, é preciso que a imagem representada seja muito próxima do real”, explica Creusa, pedagoga especial e criadora de ilustrações que são tocadas, sentidas, experimentadas e, se possível, até cheiradas. Uma galinha tem penas. Um lobo tem pêlo. Uma pomba tem asas que se mexem. E o bico de um pássaro é tão afiado o quanto deve ser.

Para quem não tem a experiência das cores, das luzes e das formas, um livro assim torna a leitura muito mais convidativa. “Eu lembro que os livros que eu li na infância eram apenas com textos e letras, o que, embora desse margem a imaginação, era muito monótono e se distanciava do mundo real. Com os livros que nós produzimos, o ato da leitura fica mais completo, mais lúdico e a história mais perto da realidade”, explica Suzette.

Que o digam Wanderley, de 8 anos, Laura, de 7, e Dalila de 4, alunos* de Creusa e Suzete no Jardim B, e espectadores de um mundo que só tem sentido se puder ser ouvido ou tocado. Todos filhos de pais que têm visão plena estão acostumados com os sons da televisão e do rádio, mas acham que o livrinho de estórias, com figuras, é muito mais interessante, pois a tevê é só “um vidro”. Wanderley e Laura. que já sabem ler alguma coisa em braile, reproduzem com detalhes as histórias que conhecem. “Gosto da Bota do Bode, a bota é de camurça e o bode tem pelinhos”, relata a pequena Laura.

Wanderley vai mais longe na sua apreciação e repete sorridente que conheceu a cigarra e a formiga, no livro O Caracol. “Fiquei passando tanto a mão naquela formiga que ela quase me mordeu”, brinca. E Dalila, que ainda não sabe ler, interrompe os colegas para também relatar sua preferência. “Eu gostei muito do Palhaço Espalhafato, que tem cabeça e roupa e mora lá, no milho”, diz, recordando a história do espantalho de um milharal que um dia se transformou em palhaço.

A boa literatura ainda pára na porta da escola

Quem percorre livrarias na busca de livros infantis espanta-se com a quantidade de obras em oferta e com a variedade de temas oferecidos pelas editoras. Os amantes da boa leitura, que estão aí por volta dos 40 anos, sentem até uma certa inveja das escolhas que as crianças de hoje podem fazer e não é raro pensar “no meu tempo era Monteiro Lobato e olhe lá”. Houve uma evolução de mercado e também na qualidade dos textos produzidos; surgiram novos escritores, novos ilustradores e as editoras se multiplicaram. Mesmo num Brasil de tantas limitações, o livro chega hoje à maioria das escolas e ingressa na vida de crianças que anos atrás sequer pensariam em manusear uma história com desenhos coloridos, que trouxesse alegria para existências de extrema pobreza. Portanto, a nossa literatura infantil evoluiu com certeza absoluta.

Mas será que a abordagem que se faz do livro também acompanhou esse desenvolvimento? Será que o livro é visto como deve ser, como uma obra de ficção, narrativa ou poética, para ser lida de modo subjetivo, sem ser necessariamente por um professor?

Nossa tradição literária remonta ao século 20, com Lobato, Ruth Rocha e Ziraldo. O surgimento de novos autores é constante, mas o desaparecimento também. Os livros de boa qualidade, produzidos para divertir, emocionar e conquistar as crianças para o mundo das palavras, ainda são minoria nas bibliotecas escolares, cedendo lugar para obras que se prestam à pregação de moral, ao enfrentamento de medos, ao treinamento disso e daquilo. Evoluiu-se na oferta, mas a abordagem da literatura é ainda muito tradicional, menos preocupada em desenvolver o gosto pelas letras e mais em trazer regras, lições.

“Há espaço no Brasil para o livro de qualidade. O livro produzido aqui é tão bom quanto o produzido lá fora, tanto do ponto de vista de conteúdo quanto da tecnologia. A questão é que a cadeia comercial de venda do livro está ainda muito ligada às adoções de escolas e nem chegam às livrarias aquelas obras que as escolas decidem não adotar”, analisa Annete Baldi, diretora da Editora Projeto.

Direito autoral e outras polêmicas

A literatura infantil, no que tange à ilustração, não se restringe apenas aos desafios constantes da mudança de linguagem. É também berço de polêmicas, como na questão do direito autoral.

É praxe das editoras oferecer 10% sobre o preço de capa dos livros em direitos autorais, via de regra para o escritor. O ilustrador normalmente recebe a remuneração pela tarefa de ilustrar, e ponto. Se o livro for reeditado 15 vezes e o escritor não concordar em dividir sua porcentagem, o ilustrador não recebe mais nenhum tostão.

De acordo com a editora Annete Baldi, há não muito mais de uma década é que o ilustrador passou a ter um status mais equilibrado em relação ao escritor. Nos livros publicados pela editora em que atua, o nome do ilustrador sempre aparece na capa e há oferta de contratos de co-autoria, ou seja, 5% de direitos para o escritor e 5% para o ilustrador. “Temos inclusive oferecido a opção de o ilustrador receber os direitos autorais a partir da segunda edição, o que não acontece se o escritor não quiser abrir mão de seus 10%”, explica. Não são poucas, contudo, as editoras que ainda hoje limitam-se a mencionar o ilustrador apenas na ficha catalográfica, dando a ele um papel secundário no conjunto da obra. “É por isso que muitos escritores ilustram os próprios livros e que ilustradores acabam virando escritores”, diz Cristina Biazetto, que representa no Rio Grande do Sul a Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil (AEILIJ).

Pior que a questão do direito autoral, já em processo de evolução, está, na visão de Marco Cena, o desprezo da crítica e dos formadores de opinião pelo trabalho do ilustrador. O crítico literário, normalmente, não tem informações para discutir aspectos estéticos da ilustração, por isso quase sempre o faz de forma superficial ou os ignora. “Além de ilustração para livros infantis, eu faço em média 60 capas de livros por ano. Há reportagens inteiras sobre o texto e ninguém fala sobre a capa, que também é parte do produto, que alguém fez e esse alguém não foi o escritor”, reclama.

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