CULTURA

Cem anos depois, uma obra infindável

O centenário de Contos Gauchescos comemorado neste ano traz novas abordagens sobre a obra de Simões Lopes Neto
Por Renato Dalto / Publicado em 10 de julho de 2012
Henrique de Freitas Lima dirige cena de seu filme baseado em Contos Gauchescos

Foto: Divulgação

Henrique de Freitas Lima dirige cena de seu filme baseado em Contos Gauchescos

Foto: Divulgação

Ele fez da linguagem oral da gente xucra do sul uma vigorosa obra literária, mas parece que sempre há uma nova face de Simões Lopes Neto a ser desvendada ou reinterpretada. Neste 2012, quando se comemoram os cem anos de Contos Gauchescos, e em 2013 com o centenário de Lendas do Sul, o autor ressurge novamente em várias dimensões: uma nova edição Lendas do Sul e Contos Gauchescos, pela editora L&PM, com notas explicativas de Luis Augusto Fischer, um filme de Henrique de Freitas Lima, uma exposição de desenhos de Zoravia Bettiol e uma reedição de parte de sua obra histórica, em Pelotas, além de outras várias iniciativas. Parece enfim destampado definitivamente o sentido universal da obra de Simões Lopes Neto, cujo marco remete à edição da Obra Completa, em setembro de 2003, patrocinada pela Copesul. Na apresentação do livro, Luis Fernando Cirne Lima lembra Carlos Reverbel, o precursor da garimpagem da obra, e fala do homem quedeu voz às “essencialidades da cultura do sul”.

Mas desde então parece haver um movimento em várias partes que impulsionam Simões Lopes Neto de um escritor da aldeia para o mundo. Fischer, por exemplo, tentou ser didático nas novas edições lançadas pela L&PM. Palmilhou o texto e chegou a mais de 1,6 mil notas. Agora, debruçado em novos manuscritos, ele entende que vem mais coisa boa por aí (veja entrevista abaixo).

Na busca dessa obra, o cineasta Henrique de Freitas Lima partiu do que entende como mais universal e dramático da obra do autor. Filmou os contos Os Cabelos da China, Jogo do Osso, Contrabandista e No Manantial, reunidos no filme Contos Gauchescos, que CULTURA E extraclasse@sinprors.org.br Por Renato Dalto Cem anos depois, uma obra infindáveldeverá entrar em cartaz no circuito comercial ainda neste ano, mas já está à disposição para aquisição pela Cinematográfica Pampeana. Henrique filmará também O Negro Bonifácio e Trezentas Onças, além de já ter feito um documentário. Os episódios virarão uma série de televisão. Numa leitura minuciosa da obra, Henrique conta que selecionou 18 contos capazes de serem entendidos “em qualquer parte do mundo”. Depurou seis para levar a obra de Simões Lopes Neto ao cinema.

Em Pelotas, terra do escritor, um grupo que tem, entre seus integrantes, o pesquisador e livreiro Adão Fernando Monquelat, prepara uma edição comemorativa aos 200 anos da cidade. Chama-se Almanaque de Pelotas e nele será publicado um fac-simile da Revista do Centenário, feita por Simões Lopes Neto narrando a história da região, editada originalmente em 1911. Nela está, por exemplo, a história do João Cardoso. “Esse foi um personagem dele que passou da vida real à ficção. João Cardoso era um precursor da indústria saladeril, que depois virou personagem do conto O mate do João Cardoso”, revela Monquelat. Em Pelotas, há também o Instituto Simões Lopes Neto, que está realizando uma série de atividades

Nesse espocar de interpretações, descobertas e reinterpretações, surge também uma versão nas artes plásticas. Com a exposição Homenagem a Simões Lopes Neto, ( No espaço de Arte da Ufcspa, em Porto Alegre, na rua Sarmento Leite, 245), Zoravia Bettiol mostra 21 desenhos e vinhetas feitos especialmente para a publicação 14 contos e uma lenda, editada pela Associação dos Bibliófilos do Brasil. Ali estão retratados o contrabandista, Tudinha, O Negro Bonifácio e, especialmente, o Negrinho do Pastoreio de braços abertos, a manada atrás simetricamente composta e Nossa Senhora, também de braços abertos, protegendo a todos. Zorávia refere-se a isso como a fé dos oprimidos. Num tempo de crueldade consentida, o autor também era um homem a frente do seu tempo.

Revelava-se, sobretudo, em linguagem. Então o texto quase musical começa assim: “Naquele tempo os campos ainda eram abertos, não havia cerca entre eles, somente nas volteadas se apanhava a gadaria xucra, e os veados e avestruzes corriam sem empecilhos (…)”. Retrato de uma época de latifúndios e opressão, o Negrinho do Pastoreio de Simões Lopes Neto é uma releitura do mundo através de uma lenda. Cem anos depois, a obra parece ainda mais fértil e infindável. Espera-se – e virão – mais revelações por aí.

Inéditos a caminho
Luis Augusto Fischer trabalha na compilação de manuscritos de Simões Lopes Neto. Nesta entrevista, fala da linguagem, do sentido clássico da obra do autor e do diálogo que estabelece com a visão do campo de Jorge Luis Borges.

Luis Augusto Fischer

Foto: Igor Sperotto

Luis Augusto Fischer

Foto: Igor Sperotto

Extra Classe – Depois da reforma gramatical, essa globalização da língua que esqueceu a fonética, qual a importância que adquire a linguagem de um Simões Lopes Neto?
Luis Augusto Fischer – Essa reforma ortográfica foi realmente uma lástima, especialmente por haver sido feita às pressas e, mais importante, sem chegar a resultado relevante algum. (Não por acaso, grandes escritores e intelectuais portugueses estão se recusando a segui-la, como ainda esses tempos uma matéria de O Globo mostrou). Quanto ao Simões Lopes Neto, sim, essa reforma em nada contribui: sua intensa qualidade está muito ligada a uma peculiar atenção que ele prestou à fala, às modulações locais da fala; ao escrever esse mundo oral, ele foi o primeiro grande escritor brasileiro, seguido depois por Guimarães Rosa. Esta é sua importância central no que se refere à língua e à cultura faladas, cá no sul.

EC – Fazes uma observação sobre o Simões Lopes Neto colocar em cena um homem simples, e não um dono de terras (imagem que os CTGs consagram). Nesse sentido, vês uma ligação temática da obra dele com a de Borges, especialmente em A IntrusaEl fin e no clássico poema Los Gauchos?
Fischer – Borges já olhava para esse mundo por uma lente não apenas cosmopolita, mas moderna, quase poderíamos dizer modernista, no sentido de que ele foi na juventude um praticante das vanguardas de cem anos atrás – época em que Simões Lopes Neto, criado no contexto cultural pós-romântico (aquilo que no Brasil deu em um excelente realismo narrativa e um abominável parnasianismo poético), estava no fim da vida, vivendo numa cidade cosmopolita apenas em parte, porque muito restrita em quase tudo, especialmente na capacidade de dar eco a invenções singulares como a dele. Mas a tua pergunta aponta para uma grande afinidade, é claro: nenhum dos dois tinha apreço pelo elogio pateta, pelo ufanismo antipovo, pelo patriotismo racista – Simões Lopes foi explicitamente a favor da miscigenação, por exemplo, o que vai contra um traço classista e racista muita vezes implicado no tradicionalismo.

EC – Como chegaste a esse número de mais de 1,6 mil notas?
Fischer – Esse número corresponde ao tamanho da minha ignorância: eu fiz as notas, primeiro, para entender em detalhe a obra do grande escritor, e segundopor acreditar que, como eu, muita gente precisaria desse apoio para uma fruição profunda. São notas de vocabulário, a maior parte, mas também de explicações para alusões históricas presentes no texto (as guerras, as datas etc.).

EC – Estás fazendo uma nova incursão por manuscritos ainda inéditos?
Fischer – Estou editando dois manuscritos inéditos: um é a Artinha de leitura, uma cartilha de alfabetização que ele concebeu e apresentou para as autoridades estaduais, em 1907, mas que foi rejeitada por praticar uma ortografia ousada, que já assumia a necessidade de simplificação que na época ainda se discutia (cortar consoantes dobradas, como “elle” em vez de “ele”, simplificar ortografia etimológica, aquela de “pharmácia” e não “farmácia”). Ele também nisso estava à frente do tempo: poucos anos depois, todo mundo no Brasil adotou essa simplificação – mas aí ele já tinha perdido a paciência. O outro é ainda mais maravilhoso: trata-se do Terra gaúcha original, um livro para leitura de alunos da escola (entre 8 e 12 anos, digamos), narrado por um menino, o que por si já é um ganho enorme para a força do texto, porque se trata de depoimento, muito menos diretivo e restritivo do que costumava acontecer nos livros de escola da época. O livro tem duas partes: uma tem por cenário a fazenda da família do menino, e ali ele conta coisas do cotidiano, da vida campeira, assim como introduz uma personagem inacreditável, uma velha contadora de lendas, numa prefiguração do que Monteiro Lobato faria duas décadas depois; a segunda parte transcorre na escola mesmo, e por ela ficamos sabendo do cotidiano escolar da época, assim como das ideias avançadas do velho capitão Simões Lopes Neto sobre educação, sobre a vida, sobre o que realmente importa. Espero que as duas obras possam sair ainda este ano – a depender de a gente obter patrocínio, pela Lei Rouanet.

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