CULTURA

Luta de classes, populismo e preconceito no campo da cultura

Por Leo Felipe / Publicado em 1 de agosto de 2016
Luta de classes, populismo e preconceito no campo da cultura

Fotos: Caio Vasques

Em 5 de agosto, na abertura das Olimpíadas, Anitta subirá ao palco no Maracanã juntamente com Wesley Safadão, Ludmilla e a dupla Caetano e Gil (uma aparição surpresa de Elza Soares também está prevista).

Fotos: Caio Vasques

A patrulha partiu para o linchamento. Bastou o anúncio de Anitta como atração na cerimônia de abertura das Olimpíadas. Expressas na ira costumeira com a qual é comentada nas redes sociais a maioria dos acontecimentos, as reações desmereciam uma cantora brasileira da maior grandeza pop. Não seriam Olimpíadas e Anitta, em suas dimensões midiática e popular, feitas uma para a outra? As reações que causaram mais surpresa não vieram, contudo, da direita raivosa e caricata, mas do lado supostamente progressista.

O episódio lembrou quando a Folha de S. Paulo publicou em nove de outubro de 2015 o artigo O fim da música, de Vladimir Safatle. O filósofo de esquerda lamentava a decadência de nossa música popular que outrora acompanhara com sofisticação a complexidade dos momentos históricos da nação. Saudosista de uma MPB que conforme o ponto de vista pode ser produto de anos de ouro ou de chumbo, a crítica de Safatle mirava o funk e o sertanejo, que considerou mero fruto das demandas de consumo da indústria cultural. Sugeriu ainda que a eventual discordância de suas ideias decorreria da aplicação “de um esquema tosco de luta de classes ao campo da cultura”. Versão mais adestrada do vira-lata de Nelson Rodrigues, Safatle parecia emular o ladrar do cão de raça, enaltecendo uma cultura superior com valores estéticos que apanhou como as sobras de um banquete.

O artigo foi compartilhado por apressados à esquerda e à direita, mas bastou um olhar mais atento para evidenciar o seu elitismo. Em Porto Alegre, um seminário atendido por alunos do curso de História da Arte recebeu o jornalista Zeca Azevedo, em 28 de novembro. Zeca construiu sua apresentação, Eu prefiro todas as músicas, como um contraponto a O fim da música: “O lamento pelo suposto empobrecimento da música popular e da cultura manifestado por pessoas de todas as correntes ideológicas é equivalente ao chororô daqueles que rejeitaram os processos de desconstrução da arte levados a cabo no Século 20 para defender as ‘belas artes’”. Para Zeca os fenômenos dinâmicos da cultura devem ser observados por uma ótica multiculturalista, que respeite os contextos, lutas e aspirações de quem a produz. Zeca lembrou que gêneros hoje considerados grande arte já foram percebidos como música de segunda classe. Pense no jazz de Louis Armstrong ou no samba de Pixinguinha.

Mas alguém poderia objetar: estamos falando de produtos da indústria cultural, não de arte. Às vezes arte e produto podem ser difíceis de distinguir, e é bom lembrar que critérios mudam com o passar do tempo. A sigla MPB surgiu como jogada da indústria fonográfica para classificar a segunda geração da bossa nova que se engajava politicamente após o golpe militar de 1964. Para o sucesso da construção mitológica da MPB era preciso um contraponto. O escritor e colecionador Antonio Carlos Cabrera, autor do Almanaque da Música Brega, explica: “No final dos anos 1960, havia a Jovem Guarda, um movimento musical centrado em um programa de TV que ditava moda. Tudo que não fazia parte dessa turma era chamado de cafona, termo amplificado por Carlos Imperial. Após o pequeno e ruidoso império da Jovem Guarda acabar, uma multidão de órfãos do programa se deparou com centenas de imitadores do então jovem Roberto Carlos. Músicas românticas com rimas fáceis e melodias simples começaram a pipocar nas rádios por todo o país. E, com elas, surgiu um termo pejorativo: brega”.

Na embalagem do brega entrava também o visual espalhafatoso e os cacoetes vocais que pontuavam as canções. Cabrera aponta que a diferença que deveria ser entendida como diversidade era vista como defeito: “Antes do brega e da Jovem Guarda havia a Bossa Nova, refinada, advinda do jazz americano e do samba. Os bossanovistas viam a Jovem Guarda com desdém. Por sua vez, o pessoal da Jovem Guarda via o brega com pouco caso”. A segmentação no cenário musical sempre foi de interesse das gravadoras. Cabrera explica: “Elas dependiam das vendas do brega para bancar os ‘medalhões’ que não davam lucro. As obras de Amado Batista e Odair José, por exemplo, eram de produção barata e davam muito lucro, enquanto outros que vendiam pouco requisitavam orquestras e músicos caros nas produções”.

Moralistas e oportunistas da vez têm um novo alvo e obviamente não é coincidência que sua mira esteja apontada para uma música que toca desde a periferia. Carlos Palombini é professor de Musicologia na UFMG e pesquisa o funk, especialmente o proibidão, que considera uma música contra-hegemônica. O fato de um gênero musical ser proibido somente comprova sua relevância como objeto de estudo. Querendo ou não, o funk é uma das músicas do nosso tempo. Palombini é bastante crítico em relação à grande parte da elite cultural de esquerda que não consegue romper com seu próprio reacionarismo: “Porque não são nem tão progressistas como gostariam de fazer parecer nem estão preocupados com a cultura popular, a não​ ser na medida em que esta se lhes apresente como passível de elevação a ser efetuada evidentemente pelos ditos cujos e assessores. Eles se assemelham às representações dos generais de nossas revoluções: a cultura popular é o cavalo no qual vêm montados. Trata-se de uma plataforma não popular, mas populista, que opera em sinergia com a moral reacionária e estéticas datadas em vista da autopromoção”.

A cultura popular como palanque para o populismo
“Quando a gente fala de ocupação de espaço e pensa na diversidade que é típica do Brasil, a gente está falando de poder. Isso incomoda. Por mais que muitas vezes os discursos teóricos, ideológicos, sejam lindos e maravilhosos, essas pessoas que também lutam a favor da diversidade e a garantia dela, no fundo, também têm medo de perder poder. E aí os machismos, classismos e todos os tipos de preconceitos vêm à tona, porque todos somos criados numa sociedade racista, machista, classista. Dentro de qualquer espaço, seja ele de esquerda ou de direita”, define a rapper Negra Jaque.

A cultura popular como palanque para o populismo

Foto: Igor Sperotto

Rapper Negra Jaque

Foto: Igor Sperotto

Sua carreira começou em um cenário com poucas mulheres, em 2012, e sua mensagem é destinada às meninas, “principalmente sobre a questão da identidade”. Seja no Morro da Cruz, nas outras comunidades ou no Centro, a arte e o ativismo de Negra Jaque são os mesmos, mas a forma do discurso muda conforme o público. Ela nos lembra qual o fundamento do preconceito. “Costumo dizer: direita ou esquerda, a gente continua sendo preto. E sendo mulher, complica ainda mais.” Diferente do homem branco teorizando sobre critérios estéticos e preconceito, ela os vive na pele, pois escolheu a música como instrumento de criação e reação. Além da carreira musical, a rapper promove eventos como a Feira de Hip Hop de Porto Alegre, que acontece mensalmente na Esquina Democrática, e o também mensal Sarau Carolina Maria de Jesus, que resgata a história e a obra da escritora símbolo da resistência negra.

Como vencer os complexos de vira-lata sem subir no palanque do populismo? As palavras de Negra Jaque trazem ainda mais nuances para a questão. “A cultura popular, o funk e outros tipos de cultura estão aí na periferia falando de juventude. A MPB não está falando disso, é um ponto importante. Mas que modelo é esse que se está cantando, que Brasil é esse, que estética é essa, que produto de exportação estamos oferecendo? Tem a questão muito forte da objetificação da mulher. São várias questões em jogo. Por isso é preciso debater e fazer uma reflexão complexa sobre isso, não basta apenas fazer a defesa da cultura de massa enquanto cultura popular. Querendo ou não, o funk é a música do Brasil. Ele atinge todas as camadas”, argumenta.

Negra Jaque from Extra Classe on Vimeo.

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