CULTURA

Tinta negra em páginas brancas

Existe uma literatura farta e diversificada produzida por autoras negras no Rio Grande do Sul, que não se deixam limitar por estereótipos impostos pelo público e pelo mercado editorial
Por Cristiano Bastos / Publicado em 16 de novembro de 2020

 

Tinta negra em páginas brancas

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

A literatura feita por mulheres negras no Rio Grande do Sul, apesar dos números contrários (segundo estudo da Universidade de Brasília, de 2018, 70% dos escritores brasileiros são homens e 90% deles são brancos), é uma poderosa ferramenta de luta e empoderamento. A verdade é que, desde sempre invisibilizadas pelo racismo e pelo machismo, as escritoras afro-femininas gaúchas vieram para ficar. E, de fato, elas são muitas. Seja produzindo ficção, ensaios, crônica ou, particularmente, poesia, essas autoras têm, cada vez mais, desbravado espaços no embranquecido sistema literário do estado

Não há como negar. São tempos de pluralidade e de quebra de paradigmas. Com a urgência lírica (e política) de suas letras, as escritoras negras rio-grandenses revelam a necessidade de ressignificar padrões estéticos seculares. Clubes de leituras, saraus, batalhas de slam, publicações independentes – ao mesmo tempo em que escancaram a imensa lacuna no mercado tradicional – servem como alternativas para que essas autoras deságuem sua produção literária.

Numa sociedade estruturalmente racista, onde ferramentas ideológicas são articuladas para cercear a subjetividade das mulheres, a literatura das autoras afro-femininas possibilita que elas escrevam em voz própria suas narrativas e trajetórias, afirma Winnie Bueno, doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Winnie – @winniebueno – também é coordenadora do projeto Winnieteca (em parceria com o Geledés – Instituto da Mulher Negra e o Twitter Brasil), conhecido como “Tinder dos Livros” –@winnieteca – , que leva a leitura de escritoras negras às periferias por meio da doação de livros.ão há como negar.

São tempos de pluralidade e de quebra de paradigmas. Com a urgência lírica (e política) de suas letras, as escritoras negras rio-grandenses revelam a necessidade de ressignificar padrões estéticos seculares. Clubes de leituras, saraus, batalhas de slam, publicações independentes – ao mesmo tempo em que escancaram a imensa lacuna no mercado tradicional – servem como alternativas para que essas autoras deságuem sua produção literária.

Realizado mensalmente pela Associação Negra de Cultura (ANdC), o Sopapo Poético – Ponto Negro da Poesia celebra, desde 2012, a literatura escrita e oralizada por negras e negros. Em 2016, o Sopapo lançou a antologia poética Pretessência (Libretos), que reúne 19 poetas participantes do sarau, dos quais, destes, dez são mulheres. Uma das coordenadoras do encontro, a poetisa Lilian Rocha, autora de obras como Negra Sou (Alternativa), diz que, a partir da publicação em Pretessência, muitas escritoras conseguiram sair do espaço da coletânea para lançarem seus próprios livros. Ela cita, por exemplo, os casos de Fátima Farias, do elogiado Mel e Dendê (Libretos), e de Isabete Fagundes Almeida, autora de Passeio Poético (Agbara Edições).

Muitas vezes, conta Lilian, essas mulheres não tinham coragem de chegar à roda e recitar seus poemas e acabavam, então, pedindo a outras pessoas que falassem por elas. Mas, com o passar do tempo e a autonomia proporcionada pelo Sopapo Poético, tais inibições foram, aos poucos, sendo vencidas. “O Sarau é um espaço de acolhimento que favorece que escritoras negras, intimidadas pelas diferentes facetas do racismo, sintam-se à vontade para se expressarem”, diz a poetisa.

Slam das Minas

Vanessa Tiatã integra o coletivo Slam das Minas/RS; ela critica a hipersexualização da mulher negra e outros estereótipos

Foto: Igor Sperotto

Vanessa Tiatã integra o coletivo Slam das Minas/RS; ela critica
a hipersexualização da mulher negra e outros estereótipos

Foto: Igor Sperotto

Surgido em Chicago (EUA), em 1984, o slam é uma competição de poesia falada que, coteja a slammer Vanessa Tiatã, se aproxima dos saraus de literatura periférica. O formato competitivo, ao ar livre, por sua vez, ajuda na atração do público, principalmente o mais jovem. Vanessa integra o coletivo Slam das Minas/RS, que, até as restrições impostas pela pandemia, travava batalhas de poesia mensalmente na Praça da Matriz, no Centro Histórico de Porto Alegre. As atividades das “minas”, porém, não foram totalmente paralisadas pelo vírus. Como alternativa às contingências impostas pelo isolamento, explica a cofundadora do Slam das Minas, Daniela Alves da Silva, o grupo optou pela publicação de um e-book (ainda sem data de lançamento), que compilará 17 poesias de slammers integrantes do coletivo.

Vanessa Tiatã, embora fale de assuntos como problemas sociais e também a respeito de si mesma, diz que as mulheres negras são o público-alvo de quase todas suas poesias: “A minha ‘poesia de trabalho’, pela qual todo mundo me conhece, quando o nome Tiatã é citado na roda de slam, é ‘Mariavilhosa’, na qual eu digo que Deus é uma mulher negra”. Em suas abordagens poéticas, Vanessa também costuma atacar questões como hipersexualização da mulher negra e, ainda, o fato de serem vistas com o estereótipo de a “cor do pecado”. Essas são vivências que a slammer afirma ter tido durante toda sua vida sendo uma mulher negra. Ela indaga: “De onde, afinal, surgiu esse ‘pecado’? E quem fez com que o nosso corpo fosse desumanizado e visto apenas como objeto sexual?”.

Prosa afro-feminina

Priscila Pasko, assim como outras escritoras de sua geração refuta tanto a obrigatoriedade das temáticas consideradas femininas quanto a cobrança por engajamento

Foto: Acervo pessoal/Divulgação

Priscila Pasko, assim como outras escritoras de sua geração refuta tanto a obrigatoriedade das temáticas consideradas femininas quanto a cobrança por engajamento

Foto: Acervo pessoal/Divulgação

Enorme é a quantidade de poetisas negras atuando – e publicando – no Rio Grande do Sul atualmente. São nomes como Eliane Marques, Dóris Soares, Pâmela Amaro, Fernanda Bastos, Jacira Fagundes, Maria Cristina dos Santos, entre tantas outras. Em número menor, porém, estão as prosadoras. Essas, por outro lado, são praticamente desconhecidas da crítica, do mercado, da mídia, da academia e, principalmente, dos leitores. Mas a que se deve isso? Uma das razões que explicam o baixo número de representantes negras na prosa – não só no estado – é que grande parte dessas mulheres são chefes de família, que, na maioria das vezes, cuidam e sustentam sozinhas a família. Ou seja, o tempo e as condições para se produzir o trabalho da dimensão de um romance, por exemplo, são escassos.

Ainda assim, escritoras como Veralinda Menezes, autora do prestigiado livro de literatura afro-juvenil Princesa Violeta (Editora Príncipes Negros); as romancistas Maria do Carmo dos Santos (mãe) e Dandara Yemisi dos Santos (filha), autoras da novela Século XIX – Uma História Recuperada (Editora da Tribo); e Taiasmin Ohmatch, que recentemente lançou a novela curta Visite o Decorado (Figura de Linguagem), representam, com louvor, a ficção contemporânea das mulheres negras no Rio Grande do Sul.

E, não se pode esquecer, a prolífica escritora e pedagoga pelotense Maria Helena Vargas da Silveira, autodeclarada “Helena do Sul”, autora de 11 obras que vão da poesia, crônica e ensaios à ficção. Helena faria 80 anos em 2020. Para marcar a data, o projeto de extensão Maria Helena Vargas da Silveira: escritora das gentes negras do sul – uma parceria do projeto Cria Negra, da Unipampa, com a Ufrgs –, lançou, em setembro, um portal dedicado ao estudo e divulgação de sua vida e obra (www.ufrgs.br/helenadosul).

Outra dessas ficcionistas é Juliane Vicente, que possui 13 contos publicados no gênero “ficção especulativa” (ficção científica, horror e fantasia) em diversas antologias. Sua publicação de estreia foi na antologia Jovem Afro, de 2017, publicada pela editora Quilombhoje. No entendimento de Juliane, uma das problemáticas mais incômodas de “existir em alguma minoria” é a limitação e categorização do lugar dos autores – sejam eles de poesia ou prosa. O “novembro de trabalho”, em função do Mês da Consciência Negra, ilustra a escritora, representa o quanto autores e autoras negras recebem convites neste período do ano que não se compara a outras épocas. E geralmente, diz, são convites para que tratem de pontos envolvendo cultura negra e/ou racismo. “Parece haver uma ‘colagem’ entre ser mulher e escrever literatura feminina. Ou, então, ser negro e ter de escrever sobre negritude, quando nem sempre é o caso”, critica.

O posicionamento de Juliane também é partilhado pela jornalista e escritora Priscila Pasko, autora de Como Se Mata Uma Ilha (Editora Zouk), obra que traz, em textos curtos, 37 narrativas líricas e filosóficas com protagonismo feminino. Priscila considera injusto, talvez confortável, quando a crítica – e até mesmo os leitores – julgam uma autora negra por não escrever engajadamente. “Quer dizer que, sendo mulher negra, meu lugar na literatura, minha estética, imaginação e subjetividades têm, necessariamente, de estar atrelados à denúncia ou ao racismo? Enquanto as escritoras brancas, por sua vez, podem escrever sobre assuntos universais. Aonde ficam questões como, por exemplo, o medo da morte, angústias e a vida, enfim”.

O tempo para escrever

Ana dos Santos, professora de Literatura brasileira no ensino médio e escritora

Foto: Igor Sperotto

Ana dos Santos, professora de Literatura brasileira e escritora

Foto: Igor Sperotto

Professora de Literatura brasileira no ensino médio e autora do premiado Poerotisa (Figura de Linguagem), Ana dos Santos cita a escritora afro-germânica Audre Lorde, a qual diz que as mulheres negras produzem mais poesia, expressão literária mais urgente, por conta de suas duplas e triplas jornadas. “A poesia pode ser escrita entre um intervalo e outro de nosso trabalho, mas um projeto mais longo e de fôlego, como um romance, demanda tempo mais longo”, analisa.

Tal questão, acrescenta Ana, já havia sido posta, no século passado, por Virginia Wolf, quando ela escreve o ensaio Um Teto todo Seu. No texto, a autora de Mrs. Dalloway coloca que, mesmo sendo branca e pertencente à elite, não dispunha, por conta do machismo que aprisiona mulheres a um ambiente doméstico, de tempo – ao contrário de muitos escritores homens – para ficar isolada escrevendo. “Infelizmente, tal contexto ainda é realidade para a maioria das mulheres. E, para uma escritora negra, então, isso amplifica-se ainda mais”, afirma.

No Brasil, completa a professora, ainda há a questão de que as mulheres negras publicam tardiamente. Essa foi a constatação obtida por Ana a partir de suas pesquisas como docente e, agora, como mestrando do Programa de Pós-Graduação da Letras da Ufrgs. A própria Conceição Evaristo, que escrevia desde os anos 1980, ela aponta, só foi reconhecida em 2007 – por causa da polêmica edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) em que se homenagearia escritoras brasileiras, sendo que nenhuma delas era negra. “A média com que as mulheres negras publicam, no Rio Grande do Sul, é após os 30 anos. É o caso da Lilian Rocha, que lança seu primeiro livro aos 47. Em relação às mulheres brancas, por outro lado, isso acontece bem mais cedo”, contextualiza.

Abertura para a utopia

Para a psicanalista e escritora Taiasmin Ohmatch, a literatura tem papel fundamental no que diz respeito à autoafirmação de homens e mulheres negras e também no sentido de relativizar o discurso da branquitude que se pretende dominante. Por conta de sua pesquisa de mestrado em Psicanálise, na área de cultura e relações raciais, Taiasmin diz que teve a oportunidade de participar de muitas discussões sobre racismo, muitas vezes, inclusive, com pessoas brancas. Para ela, a literatura ajuda no entendimento das questões pertinentes aos negros. “Lembro particularmente de uma pessoa que falou que a visão dela para entender certas reivindicações dos negros havia mudado após ter lido o romance histórico Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, um clássico moderno da literatura afro-feminista brasileira. Ou seja, foi por meio de uma obra de ficção que ela, pessoa branca, conseguiu compreender coisas que não conseguia enquanto estava escutando um discurso apenas no plano político ou puramente militante”, observa.

Taiasmin atenta para o fato, inegável, de que a literatura faz parte da construção do imaginário social. Porém, ressalva, enquanto personagens e situações reproduzirem um mundo apenas de indivíduos brancos – deixando de fora homens negros e, em especial, mulheres negras –, esse imaginário nunca dará conta de experiências múltiplas. “E a gente precisa que o imaginário social dê conta dessa multiplicidade, pois é isso que possibilita às pessoas que entendam a diversidade”. A literatura, sublinha a escritora, propicia uma abertura para a utopia; mas, ela discerne, não para a utopia como algo inalcançável e, sim, para a utopia que permite pensarmos o mundo que realmente queremos.

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