CULTURA

Livro sobre nanismo e preconceito começa a romper barreiras

O livro E fomos ser gauche na vida, da jornalista Lelei Teixeira, que fala de nanismo, preconceito, diferença, inclusão, repercute no resto do país e vai para a segunda edição
Por César Fraga / Publicado em 14 de janeiro de 2021

Foto: divulgação

Publicação da jornalista Lelei Teixieira mal chegou às livrarias e ganha uma segunda edição

Foto: divulgação

O livro E fomos ser gauche na vida (Pubblicato Editora, 166 págs.), da jornalista gaúcha Lelei Teixeira, chegou ao mercado livreiro no final de dezembro de 2020. Menos de um mês depois da primeira edição com 500 exemplares, direcionada inicialmente apenas às livrarias Bamboletras, Baleia, Isasul e Taverna em Porto Alegre, Livraria Miragem e loja Essência da Serra, em São Francisco de Paula e Livraria Laguna, em São Lourenço do Sul, praticamente esgotou-se. Mas a segunda edição já está a caminho.

Segunda edição

A editora já providenciou a segunda  impressão, não só devido à aceitação e da procura dos leitores, mas também pela demanda pelo livro a partir de instituições que trabalham com inclusão e acessibilidade em diversas regiões do Brasil. O livro também pode ser adquirido no site da editora Pubblicato.

“Estou muito feliz, porque o livro está chegando a leitores de vários setores, que vão de formadores de opinião a psicanalistas; além de pessoas que me relatam que não tinham a mínima ideia de como é a vida de uma pessoa com nanismo. Além disso, as pessoas que tem nanismo passam a ter uma referência, que eu própria não tinha quando comecei o livro. Sem contar, a demanda pelo livro de entidades que lidam com inclusão e nanismo. Isso me deixa muito satisfeita”, se emociona Lelei Teixeira, emocionada

Segundo a autora, a publicação nasceu da falta e do desejo de falar sobre nanismo, acessibilidade, inclusão e discriminação, projeto antigo da autora e da irmã Marlene Teixeira, que morreu em abril de 2015. “Queríamos refletir sobre essa condição e o preconceito que a diferença provoca a partir de experiências pessoais e profissionais diversificadas como as nossas, unindo, também, as pesquisas e os estudos que a Marlene desenvolvia sobre linguagem, discurso, trabalho, psicanálise e literatura, que muito nos amparavam. Fizemos inúmeras tentativas de começar a partir de anotações, lista de filmes e livros com personagens com nanismo, guardamos reportagens de jornais e revistas, mas o trabalho vertiginoso meu e dela não dava trégua”, conta Lelei.

O blog

Com a morte de Marlene, Lelei ficou sozinha com este desejo. Um ano depois começou a escrever no blog Isso não é comum do Sul21, o que fez até agosto de 2020. Nesses quase quatro anos, reuniu fragmentos da trajetória dela e da irmã e o livro foi tomando forma. A publicação vem também da vontade de compartilhar com pessoas conhecidas e desconhecidas o que elas viveram intensamente desde o princípio, reafirmando que a luta contra o preconceito é justa e cada vez mais necessária.

No final do que Lelei chama “de uma tentativa de livro, feito a duas mãos, mas pensado para quatro”, estão alguns textos do blog Isso não é comum, hoje no endereço https://giraconteudo.com.br/blog/, e textos de alunos e contemporâneos da Marlene na Unisinos/Universidade do Vale do Rio dos Sinos, onde dava aulas no Mestrado e no Doutorado. “Muito do que escrevi no livro, pensamos e articulamos juntas. Tínhamos o hábito de interferir naturalmente uma no texto da outra. Até nos artigos acadêmicos da professora eu dava palpites. Marlene me dizia: Coloca o teu olho de jornalista no que estou escrevendo”.

Foto: Divulgação/Reprodução

Foto: Divulgação/Reprodução

A capa

A capa do livro traz um detalhe do topo da cabeça de uma pessoa com nanismo refletida em um espelho de banheiro. “A foto é da artista visual e professora Mariane Rotter, que também tem nanismo, é um sucesso”, explica Lelei. Mariane, desde 2002 desenvolve o projeto Meu ponto de vista em que fotografa o seu cotidiano a um metro e trinta do chão, apresentando um olhar não usual, realizando autorretratos incomuns, sob o seu ponto de vista. A contracapa contém um texto da Jornalista Tânia Carvalho. “Lelei é de uma intensidade rara”, diz.

Desenhos

Na parte interna das capas os desenhos são do Amaro Abreu. Formado em Artes Visuais, ele trabalha com arte urbana desde 2006. Já pintou e participou de eventos em diversos países da América do Sul e Europa, inclusive no histórico muro de Berlim. Em 2015, passou um período no México, conhecendo a região e fazendo contato com diversos artistas locais. Em 2018, esteve em uma residência no Oriente, passando pelo Egito, Líbano e Índia. Realizou oficinas, participou de palestras e levou sua arte para campos de refugiados palestinos e sírios. Promoveu a exposição individual ”Vida Paralela”, que passou pela Galeria Mario Quintana, em Porto Alegre, pelo Instituto Goethe de Salvador/Bahia e pela Jeffrey Store, no Rio de Janeiro. Publicou o livro “Habitat” (Editora Libretos, 2016) com desenhos e escritos sobre sua trajetória artística. Seu trabalho é bastante peculiar, criando paisagens em um planeta desconhecido, onde plantas e seres evoluíram em plena harmonia com a natureza.

ENTREVISTA

“Um livro que nasce da falta e do desejo”, explica Lelei Teixeira

Lelei Teixeira, jornalista

Foto: Divulgação

Lelei Teixeira, jornalista

Foto: Divulgação

Extra Classe – Como você sintetizaria E fomos ser gauche na vida e as motivações para realizá-lo?
Lelei Teixeira – É um livro que nasceu da falta e do desejo de falar sobre nanismo, acessibilidade, inclusão e discriminação. Fala de vidas que a sociedade insiste em colocar à margem, quase na invisibilidade. E isso é secular. Um projeto antigo meu e da Marlene, minha irmã que morreu em abril de 2015. Queríamos fazer uma reflexão sobre o que é ter nanismo, e viver em uma sociedade que alimenta muitos preconceitos, a partir da nossa experiência cotidiana, experiências pessoais e profissionais diversificadas, eu jornalista e Marlene professora. Para isso, fomos reunindo memórias, fizemos anotações, lista de filmes e livros com personagens anões e guardamos reportagens de jornais e revistas sobre o assunto.

EC – A construção foi lenta e gradual. Por que demorou para concluir?
Lelei –
Por conta do trabalho vertiginoso meu e da Marlene que não dava trégua e íamos adiando o projeto. Especialmente porque achávamos importante embasar as emoções com as pesquisas e os estudos que a Marlene desenvolvia sobre linguagem, discurso, trabalho, psicanálise e literatura, que muito nos amparavam. Com a morte de Marlene, fiquei sozinha com este desejo. Um ano depois, 2016, eu comecei a escrever no blog Isso não é comum do Sul21. E nesses quase quatro anos, me fortaleci, reuni fragmentos das nossas trajetórias, conversas, enfim, o livro foi tomando forma. A vontade de compartilhar com a família, com os amigos e pessoas conhecidas e desconhecidas o que vivemos intensamente desde o princípio, reafirmando que a luta contra o preconceito é justa e cada vez mais necessária, foi definitiva. E o livro está aí.

EC – Existe um eixo bem definido que norteia tua escrita?
Lelei –
É uma escrita sobre preconceito e resistência, a partir da nossa experiência, que ganhou fôlego na medida em que fui conhecendo pessoas com outras diferenças, conversando com elas e encontrando muitos pontos de afinidade e apoio. Nessa trajetória, fui abrindo os horizontes em relação aos efeitos da discriminação que outras pessoas, com outros problemas, enfrentavam. E verbalizar todos estes sentimentos, dores e delícias de uma vida gauche, à margem, que consegui fazer através do blog, foi libertador. Quando comecei a ser convidada para participar de encontros, seminários e palestras sobre os enfrentamentos cotidianos de uma pessoa que não se enquadra ao padrão de normalidade a que todos estamos habituados, tive certeza que precisava continuar. E o livro foi ganhando ainda mais corpo. Ali estão memórias preciosas da vida, saudades, dores e delícias de ser quem sou e, principalmente, uma lição: é fundamental ver o outro.

EC – Qual teu próximo projeto?
Lelei –
O ano de 2020 acabou sem perspectivas. Vivemos um tempo no Brasil em que é muito difícil fazer projetos. Um governo que nega tudo e não oferece à população a mínima segurança, é desolador. Tenho consciência de que não é nenhuma novidade para quem ouviu alguns dos absurdos que este senhor disse ao longo de sua trajetória como parlamentar e agora como presidente. Para mim que sempre acompanhei os movimentos políticos criticamente não é. Nunca foi. Quando uma pandemia desenfreada não significa nada para as autoridades do Planalto Central, não passa de uma “gripezinha” ou “coisa de maricas”, o que escancara o preconceito, que planos podemos fazer? Mas quero trabalhar bem o meu livro. Quero que as pessoas leiam. Quero que contribua para o entendimento da diversidade que nos constitui e que é a nossa riqueza. Se conseguir isso, já será uma vitória.

Trecho de E fomos ser gauche da vida, de Lelei Teixeira:

Em agosto de 2020, participei do TEDxUnisinos falando sobre Um novo tempo. Foi muito interessante e terminei minha fala dizendo: “Não somos nem vítimas, nem heróis. Somos diferentes e estamos na vida como qualquer pessoa, com limites, imperfeições, sonhos e aptidões. E a soma disso tudo é o que nos faz gente e nos torna inquietos e utópicos. Não queremos apenas atrapalhar o trânsito “feito um pacote tímido”, como diz a canção de Chico Buarque. Queremos parar o trânsito para que nos olhem como seres humanos com direito à vida plena.

A seguir, trecho de um texto que Lelei publicou em seu blog na última semana de dezembro, em que faz um relato sobre o livro.

O desejo de falar sobre o impacto da diferença e do quanto o convívio é duro muitas vezes já fazia parte das muitas conversas que Marlene, minha irmã, e eu tínhamos quase cotidianamente. Encarar uma vida a ser vivida com nanismo, portanto cheia de limites, em uma época em que não se falava em inclusão e acessibilidade, foi desafiador desde a infância. Ainda é! E para mim foi muito emocionante lançar o blog no dia 5 de abril de 2016, quando completava um ano da morte da Marlene. Como está sendo emocionante agora, no final de 2020, um ano que desafiou todas as nossas certezas, lançar um livro que fala da nossa trajetória. (…).

No livro, compartilho histórias das nossas vidas desde crianças a partir da perspectiva de acessibilidade e inclusão, e falo das dificuldades cotidianas enfrentadas pelas pessoas com nanismo.  Meu desejo é desacomodar conceitos clássicos, colados na nossa pele, apontando para uma sociedade diversa. Não uma sociedade hipócrita, feita de homens e mulheres hipoteticamente iguais. Quero potencializar um debate que já estava nas nossas vidas há muito tempo.

Repito aqui o que já falei e escrevi inúmeras vezes – Para além da eliminação de barreiras físicas, acessibilidade é cidadania, direito, independência, capacidade de olhar o outro e de acolhê-lo, independente da condição física, social, intelectual ou psíquica.  É um caminho cheio de altos e baixos, contradições, olhares estranhos, rejeição, admiração e tantas outras questões inexoravelmente humanas. Mas estou na estrada. Sempre estive. E não vou desistir.

Marlene e Lelei em Paris, por conta do estágio final do doutorado de Marlene

Foto: Acervo pessoal/Divulgação

Marlene e Lelei em Paris, por conta do estágio final do doutorado de Marlene

Foto: Acervo pessoal/Divulgação

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