CULTURA

Bebeto Alves, a milonga e a encruzilhada

A trajetória do artista, da década de 1970 aos dias de hoje, a vida e a obra a partir da milonga, elemento que atravessa sua carreira em vários sentidos
Por Juarez Fonseca / Publicado em 14 de julho de 2022

Bebeto Alves, a milonga e a encruzilhada

Foto: Mauricio Montano

Foto: Mauricio Montano

Em um dia de 1972, chega à minha mesa de trabalho na editoria de Variedades de Zero Hora um moreno cabeludo com um caderno cheio de desenhos meio psicodélicos. Viera me mostrar para eu saber de sua existência e, eventualmente, pedir a ele alguma ilustração – eu vinha abrindo espaço para cartunistas e ilustradores nos cadernos que editava. Assim conheci Bebeto Alves, 18 anos, chegado de Uruguaiana dois anos antes e já enturmado com jovens de Porto Alegre que, como ele, gostavam de desenhar, escrever, tocar violão e ouvir rock.

Bebeto integrara em Uruguaiana uma banda chamada Os Zumbis. Na Capital, o lado determinante da música explodiria em 1974 com a revelação do trio Utopia nas históricas Rodas de Som, promovidas por Carlinhos Hartlieb no Teatro de Arena. Um violão, uma viola, um violino, Bebeto e os irmãos Ronaldo e Ricardo Frota, o Utopia fez muitos shows lotados, virou cult muito antes de se usar essa palavra, mas teve existência breve e ficou como uma lenda, com raríssimas gravações ao vivo de sua psicodelia gaúcha ainda hoje garimpadas.

Logo, os shows individuais evidenciam a inescapável gênese fronteiriça de Bebeto, com as primeiras milongas ouvidas em uma voz que nada tinha da tradição regionalista, mesmo sendo fortemente gaúcha. Foi esse lado que me levou a convidar Bebeto a estar no LP Paralelo 30, que produzi em 1978 para a nova gravadora Isaec, com incentivo de Geraldo Flach. Ele mais Carlinhos Hartlieb, Nelson Coelho de Castro, Raul Ellwanger, Nando d’Ávila e Claudio Vera Cruz. Misturando português e espanhol, a milonga ¿Que se Pasa?, de Bebeto, abre o lado A do disco.

Bebeto Alves, a milonga e a encruzilhada

Foto: Fernando Witt

Bebeto à época do álbum Pegadas, de 1987

Foto: Fernando Witt

É um tempo de efervescência e novidades no cenário musical do Rio Grande. Com o sucesso de Kleiton & Kledir, os produtores das grandes gravadoras dizem “Opa!, vamos ver o que está acontecendo lá”. Lançado em 1981 pela CBS (depois Sony), o primeiro álbum de Bebeto começa com uma… milonga, Santana do Uruguay, também referência ao seu berço vital. Tem canções até hoje pedidas nos shows, como De Um Bando e Fogueirais, incluídas mais tarde em coletâneas. Na capa do LP, seu rosto divide o espaço com uma manada de cavalos no horizonte do Pampa.

Mas antes de voltarmos a Uruguaiana, cabe dar um salto no tempo e lembrar que, em 2020, ele anunciou que estava lançando seu derradeiro disco, Ohblackbagual – Pela Última Vez. Uma safra de milongas pungentes, com alto teor de melancolia. O arranjo porrada da faixa-título cerca a voz de Bebeto cantando coisas como “sou de lugar nenhum” e “vou me despedindo”. Declarou então que já não tinha sentido fazer discos num tempo em que ninguém os compra, e que sua música não se adaptava aos formatos digitais. Concluí assim meu comentário sobre o disco: “Espero que ele não cumpra a promessa”.

E não cumpriu! Abriu 2022 com o álbum Contraluz, feito todo sozinho no estúdio pessoal, a produção musical da pandemia trazendo à tona o lado pop de sua genética, com letras mais, digamos, filosóficas que em outros momentos. Mais: no momento, trabalha em um álbum com seu conterrâneo Mauro Moraes, para sair no final do ano. Já gravou três CDs interpretando a obra de Mauro; agora estão compondo juntos, letra e música, canções que misturam as duas histórias, de como suas vidas foram marcadas pela vivência na Fronteira. “Sem cartas marcadas”, sublinha.

Reforçando, o Bebeto Alves dos anos 2000 é um artista ainda mais reflexivo do que sempre foi. Talvez tenha colaborado para isso sua luta contra a hepatite, doença descoberta em 1998, quando se apresentou em um festival na França, que o levaria a um transplante de fígado em abril de 2013.  E, em seguida, à militância em favor da doação de órgãos, juntamente com dois músicos parceiros de transplantes, Jimi Joe e King Jim, com quem formou o grupo Los 3 Plantados – fizeram (ainda fazem) shows beneficentes e, em 2018, lançaram o disco Alimente a Vida.

Sempre foi um homem e um artista inquieto, de combate. Forçando barras, fazendo sucesso, não fazendo sucesso, se desentendendo com gravadoras, abrindo seus próprios selos, produzindo discos de outros, atuando em teatro e cinema, insistindo, brigando pelo reconhecimento, criticando a imprensa, sendo elogiado, casando, descasando, casando de novo, indo embora de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, voltando, assumindo lideranças de classe, topando desafios, mas, entre tantos outros gerúndios, principalmente cantando e gravando sem parar.

 

Bebeto Alves

Foto: Acervo Bebeto Alves/Reprodução

Bebeto, à direita, como integrante da banda Os Zumbis, ainda em Uruguaiana

Foto: Acervo Bebeto Alves/Reprodução

 

Família

Cabe aqui um intervalo para falar dos núcleos familiares de Bebeto depois de Uruguaiana, todos o motivando o tempo todo. Com sua primeira mulher, a astróloga Cláudia Lisboa, que vive no Rio, tem as filhas Luna, 45 anos, veterinária, que mora na Coreia do Sul, e Mel, 40, atriz, que vive em São Paulo. Elas lhe deram três netas e um neto. Com a segunda, a publicitária e produtora de eventos Cristina Bins Ely, que vive em Porto Alegre, tem a filha Kim, 33, psicóloga, que mora no Rio. Com a publicitária e fotógrafa Simone Schlindwein desde 2013, divide uma casa em São Leopoldo com João Pedro, 15, e Desirée, 17, filhos dela.

Uruguaiana é cosmopolita

Bebeto Alves

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As performances evidenciam uma inescapável gênese fronteiriça em uma voz que nada tem da tradição regionalista

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Em 2003, Bebeto voltou a Uruguaiana, convidado para ser o secretário municipal de Cultura e Turismo. De certa forma, já tinha experiência anterior nesse tipo de liderança, pois, de 1988 a 1990, fora presidente da Cooperativa dos Músicos de Porto Alegre, e de 2000 a 2002, diretor do Instituto Estadual de Música. Só que desta vez era diferente. “É como estar recuperando meu próprio tempo”, me disse, na época, em matéria para a revista Aplauso. “Encontro na rua companheiros que foram meninos comigo, continua lá a casa onde morei, meu pai no cemitério…”.

“Mas não é uma sensação saudosista a que tenho, porque estou projetando momentos novos pra minha vida”, continuou. “É tudo sempre uma surpresa, jamais esperaria viver algo assim. Vejo como uma oportunidade rara, uma dádiva. Nós, uruguaianenses, somos assim mesmo, gostamos do embate o tempo todo. Me identifico com as pessoas, são todas muito sanguíneas.” Coisas da fronteira. Se o pampa é plácido e bucólico, quase monótono, seus habitantes se acostumaram aos entreveros, a estar alertas. Sem esquecer as rádios e a música do lado de lá do rio.

Uruguaiana é cosmopolita, altamente miscigenada. Primeira vila fundada pelos Farrapos, em 1843, depois uma das primeiras cidades planejadas do Brasil pela localização estratégica. Mesmo situada no meio de uma vasta extensão rural, tem forte sentimento urbano. Sem falar na sensação de que o mundo é logo ali, pois a cidade é equidistante de Porto Alegre, Buenos Aires, Montevidéu e Assunção. E aí está o caldo de cultura de Bebeto, bebido em rádios brasileiras e castelhanas, com duas atenções básicas: milonga e rock, rock e milonga.

Com essa base, pode-se dizer genética, aliada ao que aprendeu lendo, ouvindo, cantando e andando pelo mundo (Pegadas, talvez sua música mais conhecida, foi composta em Nova York, por exemplo), ele forjou uma das obras mais pessoais e vigorosas não apenas da história da música do Rio Grande do Sul, mas também da música brasileira. E a milonga, esse ritmo/gênero tão umbilicalmente ligado a esta área geográfico-cultural do planeta, tem em Bebeto Alves um dos maiores cultores/renovadores. No fundo, isto é o que ele é: um milongueiro, com todas as implicações.

A milonga como encruzilhada

Bebeto Alves

Foto: Gabriele Lemanski

A milonga atravessa vertical e horizontalmente a obra do artista

Foto: Gabriele Lemanski

A milonga atravessa vertical e horizontalmente sua obra – às vezes travestida, mas vai-se ver e lá está. Quem assistiu ao filme A Encruzilhada (de Walter Hill, 1986), sobre o blues entenderá esse “determinismo” a que me refiro. Ele criou até um alterego, “Blackbagualnegovéio”, para esse milongueiro. História: “Quando gravei os discos do Mauro Moraes, ele dizia brincando que eu cantava ‘como um nego véio’. É uma expressão do meio rural, designa o homem que detém sabedoria em alguma coisa. Resolvi brincar também com isso e fiz uma música com esse título”.

Segue: “A música, na verdade, é uma chacota ao ‘nego véio’, o cara que se acha o máximo. Depois de assistir ao show, a atriz Lígia Rigo me mandou um e-mail dizendo que gostara muito ‘daquele lance black bagual’. E adorei a imagem, porque tem tudo a ver comigo. Sempre fui um ‘black bagual’. Bagual é um cavalo indomável, intratável, e black, de certa forma, se refere aos pops todos do mundo. Juntei as duas expressões, que para mim têm o mesmo sentido”. O CD Blackbagualnegovéio saiu em 2004. Quatro anos antes, ele cunhara a expressão “Milonga Nova” para definir a sua.

Considerando os adolescentes Zumbis, de Uruguaiana, são mais de 50 anos de carreira. A discografia soma 34 títulos. Os chamados “álbuns de carreira”, com músicas inéditas e gravados em estúdio, são 16. Quatro CDs reúnem gravações antigas nunca lançadas. Três são coletâneas. Outros três são dele cantando Mauro Moraes. Dois são gravações ao vivo. Dois são da parceria Juntos (com Antônio Villeroy, Gelson Oliveira e Nelson Coelho de Castro). Mais dois com outros artistas. Um do grupo 3 Plantados e um projeto especial (Gaúcho Dance Music).

Você pode ouvir um por um no site de Bebeto Alves. Deles, participaram dezenas de grandes músicos de todo o país. Na impossibilidade de citar todos, elejo para representá-los o guitarrista e band leader Marcelo Corsetti, junto com Bebeto em todos os momentos dos anos 2000. Outro grande parceiro é o engenheiro de som Marcos Abreu, que tem feito a recuperação de matrizes. Quem gravou Bebeto? Belchior, Ana Carolina, Kleiton & Kledir, Ednardo, Tânia Alves…

E, Virgem Santa!, não consegui falar do Bebeto fotógrafo, com mais de 40 exposições de 2009 para cá. Este pode ser conhecido em seu site específico de fotos. A discografia do artista está disponível em seu site e plataformas de streaming.

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