A fábula infantil ‘A lanceirinha’ tem agenda intensa de lançamento
Foto: Marco Nedeff e reprodução/Ilustração de Alisson Affonso
A história oral do povo preto durante uma revolução, contada por um avô negro para sua netinha de cabelos crespos e soltos, vai além do resgate do orgulho de uma raça a partir de um episódio histórico de heroísmo e traição, envolvendo a participação dos lanceiros negros na Guerra dos Farrapos – de 20 de setembro de 1835 a 1 de março de 1845 –. O fato deste avô ser um professor idoso, de forma indireta trabalha também o afeto e a relação cotidiana de crianças com idosos e a valorização de uma profissão tão atacada nos dias de hoje, o magistério. A partir destes motes iniciais, a escritora e professora Ângela Xavier desenvolve em densas e leves 20 páginas de seu novo livro em forma de fábula, A Lanceirinha (Libretos Editora). A obra conta ilustrações originalmente feitas em aquarela pelo artista gráfico Alisson Affonso.
A autora conta como que a ideia inicial para o livro surgiu em sala de aula. “Sou educadora, e ao trabalhar com a EJA, fui instigada a estudar sobre o tema. Uma jovem negra me questionou sobre o assunto, que ouvira de seus avós. O ano era 2004 e pouco se falava sobre o tema. Desde então, comecei a pesquisar a temática, fiz especialização, escrevi um artigo e decidi incluir o assunto em minhas práticas pedagógicas. No ano de 2018 escrevi uma esquete sobre os Lanceiros Negos, que foi contemplada em um Festival de Teatro Estudantil do Rio Grande do Sul. No ano seguinte, nascia minha primeira obra literária: O Lanceirinho Negro, seguida de O Lanceirinho Negro: Herança de Porongos e Jerá Poty”.
O Extra Classe conversou com a autora e quis saber como uma obra que surgiu em sala de aula pode ser trabalhada na escola no sentido de reforçar valores inclusivos.
“Olha no momento em que ela (a personagem) dá representatividade a uma criança, a um adolescente que é negro a obra já está incluindo né? No intuito que os outras outras crianças também vão entender que existe mais, muito mais além do que os livros didáticos nos apresentam. Heróis, lutas, histórias. Históricos brancos existiram, mas também existiram os protagonistas negros. Então eu estou trabalhando a questão da representatividade que é de suma importância pra desenvolver o caráter inclusivo em sala de aula.
Em suas obras, a escritora tem valorizado bastante a oralidade dos mais velhos e também a ancestralidade. E, segundo ela própria, esse aspecto reflete um pouco da Ângela Xavier. Na infância ela sempre teve o hábito de escutar muito as pessoas mais velhas.
“Eu eu ficava mais de uma a duas horas escutando os meus avós. Tanto a minha avó que é mulher que me passou muito da cultura afro, quanto o meu avô também. Então eu procuro valorizar muito também a profissão docente. Eu sou professora né? E sempre instigo os alunos a pensarem no profissional do como um mediador, como alguém que vai colaborar na tua construção como um cidadão de pensamento crítico. Então sempre eu dou palestras pelo Rio Grande do Sul, eu já tenho uma obra, O lanceirinho negro que foi contemplado em edital e foi distribuída gratuitamente em mais de cinquenta escolas, escolas da região metropolitana. E agora a lanceirinha vem reforçar a importância do professor. O avô é professor, historiador e o livro também valoriza a oralidade a partir deste hábito que ela, uma menina de cinco anos tem, que é escutar o avô, de ter dúvidas”, expõe.
Sobre os Lanceiros Negros
Em 14 de novembro de 1844, no Rio Grande do Sul, aconteceu o Massacre de Porongos. Quase 10 anos antes começara a Guerra dos Farrapos, em 1835. Estancieiros gaúchos pediam independência econômica e redução de impostos ao governo imperial. Os negros escravizados ingressaram no exército dos Farrapos em 1836, através da criação do 1º Corpo de Cavalaria de Lanceiros Negros, lutando a pé e a cavalo. Foi feita a eles uma promessa de liberdade, e essa era a única motivação do grupo.
No entanto, já em épocas de tratativas de paz com o Império, alguns líderes farroupilhas entregaram aos imperiais o batalhão dos lanceiros desarmados em uma emboscada. Quase todos os combatentes negros foram massacrados. A monarquia escravagista não desejava a libertação daqueles homens e esta foi a solução encontrada. Morreram mais de cem homens negros, e os que sobreviveram voltaram à escravidão.
Em 2024, mais de 180 anos depois, no dia 8 de janeiro, foi publicada, no Diário Oficial da União, a Lei 14.795, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que insere o nome dos Lanceiros Negros no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. Esta foi uma vitória coletiva do movimento negro, que continua lutando pelo protagonismo de seu povo na construção de nosso país. “É uma reparação ainda que tardia. Fico satisfeita em saber que A Lanceirinha poderá ajudar no resgate do protagonismo negro junto as nossas crianças”, coloca Ângela.
Agenda de lançamento de A lanceirinha
A autora participa da Semana Literária “Vozes Literárias: Um Diálogo entre os Gêneros”, promovida pelas Bibliotecas do Sesc Gravataí. No dia 08 de abril (segunda-feira), às 19h, a autora apresenta o livro e no dia 10 (quarta-feira), às 18h, participa de um bate-papo com os autores Bernardo Brum e Izabel Moreira, na Rua Anápio Gomes, 1241 – Centro – Gravataí.
E no dia 13 de abril (sábado), em Porto Alegre, Ângela realiza duas atividades de contação de história: das 10h às 12h, com o Projeto Cultural Nossa Identidade no Instituto Sociocultural Afro-sul Odomodê (Av Ipiranga, 3850) e, a partir das 16h, na Livraria Cirkula (Av Osvaldo Aranha, 522). A programação é aberta ao público e com entrada franca.
Autora e ilustrador
Ângela Maria Xavier Freitas nasceu em Porto Alegre, em 1972, e é professora desde 1997. Começou com EJA (educação de jovens e adultos), depois, educação infantil e séries iniciais, na rede municipal de ensino de Gravataí, no Rio Grande do Sul. Escreve para o público infantil desde 2018, é formada em Letras (Ulbra/IERGS), com especialização em História e Cultura Afro-brasileira (Instituto Dom Alberto). Dentre seus livros já publicados, O Lanceirinho Negro foi contemplado em edital, sendo distribuído em mais de 50 escolas da Região Metropolitana de Porto Alegre. Também atua como diretora de teatro, ganhando em 2018 o troféu Desconstrução da História Oficial com a esquete Lanceiros Negros no Festival Estudantil de Teatro no RS. Seus filhos, William e Vallentina, foram os seus primeiros leitores.
Alisson Affonso é cartunista e ilustrador. Nasceu em 1979, em Rio Grande, no interior do Rio Grande do Sul. É bacharel em Artes Visuais pela Furg. Começou desenhando plaquinha para a tia do picolé, e hoje, já ilustrou dezenas de livros. É premiado pelo Brasil (São Paulo, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro), expôs no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, e até na França, em Saint-Jus-le-Martel. Em 2023, foi patrono da 49ª Feira do Livro da Furg.