ECONOMIA

O abismo da desigualdade

Novos dados tributários revelam por que o nível de desigualdade e de concentração de renda no Brasil é um dos maiores do mundo
Por André Pereira / Publicado em 21 de novembro de 2017
Debate ‘Tributação e Desigualdade no Século XXI – O caso brasileiro’, teve participação professora da Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs, Rosa Chieza; Marcelo Lettieri, do IJF, Sérgio Gobetti, do Ipea, com mediação de Antonio Cattani, da Ufrgs

Foto: Diogo Baigorra/ Divulgação

Debate ‘Tributação e Desigualdade no Século XXI – O caso brasileiro’, teve participação professora da Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs, Rosa Chieza; Marcelo Lettieri, do IJF, Sérgio Gobetti, do Ipea, com mediação de Antonio Cattani, da Ufrgs

Foto: Diogo Baigorra/ Divulgação

Que o modelo brasileiro de tributação de renda é injusto muitos sabem. E que é altamente regressivo e aprofunda a desigualdade social, poucos duvidam. Revelações da recente disponibilização de dados do Imposto de Renda em 2014/ 2015, porém, mostram que os muito ricos pagam pouco imposto tanto na proporção da renda, quanto na comparação com o resto do mundo e ainda no cotejo com a alta classe média do país.

Os novos estudos desvendam, do mesmo modo, que a desigualdade de renda é maior e mais estável do que se imaginava antes apenas com base nas pesquisas domiciliares que subestimam os ganhos mais altos.

A nação é uma das poucas no mundo que chegou ao ponto de instituir, em 1996, isenções de lucros e dividendos, copiando a pequena Estônia e alguns países do Leste Europeu. Isto pode ser ilustrado exemplarmente pelo caso empresário e delator da JBS, Joesley Batista que, segundo a Receita Federal, pagou apenas 0,3% de imposto sobre a renda anual declarada de R$ 105 milhões.

Assim, o nível de desigualdade e de concentração de renda no topo, no Brasil, é um dos maiores do mundo. “É algo abissal, maior até que a África do Sul com toda sua herança da desigualdade do apartheid”, afirmou o doutor em Economia do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Sérgio Gobetti, localizando as raízes da desigualdade preponderantemente na ação política das elites econômicas na América Latina.

Mas tal distorção – reconfirmada na sua apresentação durante o debate Tributação e Desigualdade no Século XXI – O caso brasileiro, realizado no Plenarinho da Assembleia Legislativa, no dia 20 de novembro – preocupa somente os desiguais? Assusta apenas a maioria dos brasileiros que perde renda e direitos no cenário de profunda crise política, econômica e social no Brasil, em que um pequeno grupo de milionários e bilionários segue aumentando sua gorda fatia do PIB nacional?

Evento lotou plenário da Assembleia, na noite de 20 de novembro

Foto: Diogo Baigorra/ Divulgação

Evento lotou plenário da Assembleia, na noite de 20 de novembro

Foto: Diogo Baigorra/ Divulgação

O que Gobetti examina, no sentido inverso, é que há um nascente entendimento que tanto a tributação do capital quanto o modelo progressivo desempenham um papel importante não só para a redução da desigualdade, mas também para a eficiência econômica e mesmo para a promoção da dita meritocracia.

“Afinal de contas, como garantir uma competição justa e premiar os mais capazes se alguns partem de uma situação muito mais privilegiada como o filho de um Batista”, questionou o economista, apontando revisões feitas por economistas liberais que são referências mundiais, como os agraciados com o Prêmio Nobel, James Mirrlees e Joseph Stiglitz.

“É certo que a renda e a riqueza estão pior distribuídas do que estavam há 30 anos e raramente entende-se corretamente a dimensão dramática desta mudança, principalmente para a formulação das políticas públicas em geral e da política tributária em particular”, assinalou o palestrante, aludindo a ponderações em tom de mea culpa de três décadas depois do britânico Mirrlees.

Gobetti, entretanto, sustentou que o modelo de tributação de renda do Brasil foi concebido sob influência de postulados teóricos dos anos 70 e 80 (às épocas neoliberais de Ronald Reagan nos EUA e Margarete Tatcher na Inglaterra), mas que, superados e ultrapassados, estão sendo revisados atualmente sob a condescendência desses ilustres defensores do referencial neoclássico ou modelo ortodoxo da chamada “tributação ótima”.

É que, como comprovam estudos divulgados em setembro último por Stiglitz, segundo Gobetti, crescem as evidências de que a própria desigualdade pode afetar a produtividade. Torna-se, assim, ainda mais convincente considerar o caso de um imposto progressivo sobre a renda do capital e, em particular, taxar o rendimento do que se identifica como ‘capital dos capitalistas’ a uma taxa elevada.

“Há, com tais revisões de teoremas passados, uma luz no final do túnel”, espera Gobetti.

Paraíso fiscal com cara de século 18

Mais da metade da carga tributária incide sobre o consumo, que pesa mais sobre os mais pobres, diz o economista e auditor fiscal Marcelo Lettieri (E)

Foto: Diogo Baigorra/ Divulgação

Mais da metade da carga tributária incide sobre o consumo, que pesa mais sobre os mais pobres, diz o economista e auditor fiscal Marcelo Lettieri (E)

Foto: Diogo Baigorra/ Divulgação

O outro debatedor, doutor em economia do Instituto Justiça Fiscal (IJF) Marcelo Lettieri afirmou que a desigualdade tributária brasileira “está escancarada” na cobrança do imposto de renda das pessoas físicas no país. Em suas palavras, a onda neoliberal desprezou a distribuição de renda para privilegiar a produtividade, provocando um retrocesso aos níveis de desigualdade do século 18. “Os ricos continuam fugindo da tributação no nosso país e, neste sentido, o Brasil é um paraíso fiscal”, disse ele, destacando que a tributação concentrada na renda do trabalho corresponde à paralisação referente à determinação constitucional de 1988 acerca da taxação das grandes fortunas. “Isto não avança nunca”, lamentou.

Auditor da Receita Federal, Lettieri celebra a divulgação de dados do imposto de renda obtida devido às fortes pressões da sociedade e dos pesquisadores em busca de subsídios confiáveis para diagnosticar a realidade tributária.

Graças à Lei de Acesso à Informação, revogaram-se impressões que deram lugar a informes concretos do aumento da injustiça dos impostos cobrados dos mais ricos e dos mais pobres com voracidade discriminatória. Conquistou-se, assim, o que ele chama de transparência dos dados públicos.

“Como mais de 50% da nossa carga tributária incide sobre o consumo, cobrado igual para os de cima e os de baixo, obviamente o tributo pesa muito mais sobre os mais pobres”, exemplifica. Sabe-se agora que cerca de 31% da renda dos brasileiros é constituída por valores isentos e não tributáveis. Ou seja, significa que uma fortuna de R$ 737 bilhões está imune à tributação.

Segundo ele, os brasileiros mais ricos, que declaram ganhar acima de 320 salários mínimos mensais, pagam imposto apenas sobre 9% dos rendimentos. Isto é, os outros 91% ficam isentos. Desse alto salário estimado em R$ 320 mil, em média, a fatia de R$ 210 mil não é alcançada pelas garras do leão, pois está protegida pela isenção tributária da distribuição de lucros e dividendos.

O retrato traçado pela Receita Federal mostra que a injustiça tributária repercute até no gênero, e de forma duplicada. “A mulher é mais tributada por receber salários menores e ainda compostos por rendimentos mais tributáveis”, salienta Lettieri.

A desigualdade estende-se também às regiões brasileiras. Por que o Amapá é um estado mais tributado que São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul? A resposta é singela: nos estados do Sul, com mais isenções e rendas não tributáveis, vive a gente mais rica do Brasil.

O debate, com mediação do professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Antonio David Cattani, ainda contou com a participação da diretora do IJF, Maria Regina Paica Duarte e da professora da Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs, Rosa Chieza. Apoiadora do evento, juntamente com o Conselho Regional de Economia (Corecon), a Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs e o Comitê em Defesa da Democracia, a Assembleia Legislativa foi representada pelo deputado Adão Villaverde.

O debate foi promovido pelo Instituto Justiça Fiscal (IJF), uma associação civil sem fins lucrativos com sede em Porto Alegre e atuação nacional, que tem por finalidade, conforme sua diretora Maria Regina, “o aperfeiçoamento do sistema fiscal com vistas a torná-lo mais justo e capaz de contribuir para a redução das desigualdades sociais e regionais”.

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