ECONOMIA

MPF e Cade investigam cartel na Trensurb

por Tom Belmonte / Publicado em 11 de junho de 2018

MPF e Cade investigam cartel na Trensurb

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Seis anos depois de comprar 15 novos trens da denominada Série 200 por R$ 244,64 milhões de reais (valores atualizados), a Trensurb vê os veículos enferrujarem em seu pátio. Problemas mecânicos que parecem insolúveis os impedem de rodar. De 2014, quando começaram a ser entregues e entrar nos trilhos, até agora, os 15 trens jamais trafegaram juntos. Atualmente, apenas cinco estão em operação, num exemplo do descaso com o dinheiro público e na prestação de serviço aos 200 mil usuários/dia do sistema. Quadro ainda mais grave porque os dez trens parados nas oficinas da estatal estão sendo “canibalizados”. Peças são retiradas permanentemente para suprir as que estragam nos trens que estão rodando. Sangria que explica porque a Trensurb e o Consórcio Frota POA, integrado pela Alstom e a CAF, vencedoras da licitação, estão na mira do Ministério Público Federal (MPF) e são investigadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). A suspeita é de que a compra dos veículos esteja associada a um cartel criado pelas empresas do setor em licitações federais em Porto Alegre, São Paulo e Brasília. Investigação até agora inconclusiva e ainda sem responsáveis apontados

O dia 7 de abril de 2015 jamais será esquecido pela aposentada Maria Helena Medeiros, 75 anos. Foi nesse dia que ela tomou um dos maiores sustos da sua vida. Dona Maria era passageira de um dos novos trens da Série 200 da Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre (Trensurb) e comprados por exatos R$ 243, 7 milhões ao final de 2012. O trem descarrilou entre as estações São Pedro e Farrapos, levando pânico aos passageiros e, por sorte, não ferindo ninguém. À época do acidente, a Trensurb justificou em comunicado que “foram identificados elementos que, simultâneos, contribuíram para aquela ocorrência, bem como temos clareza de que nenhum isoladamente provocaria o descarrilamento”.

O acidente pode ser mensurado hoje como a ponta de um iceberg ainda não totalmente revelado que coloca sob suspeita a Trensurb e o Consórcio Frota POA, composto pela francesa Alstom e a espanhola Construcciones y Auxiliar de Ferrocarriles (CAF). As multinacionais concorreram sozinhas e venceram a licitação, na modalidade de Regime Diferenciado de Contratação (RDC). A Alstom abocanhou 87,3% (pouco mais de R$ 212 milhões), com a fatia da CAF ficando em 12,7% (quase R$ 31 milhões). A partir do descarrilamento, a Alstom e a Trensurb celebraram ainda um segundo contrato. Este de manutenção preventiva dos veículos, pela bagatela de R$ 5,9 milhões. Entregues em calendário gradativo a partir de maio de 2014, os trens da Série 200 têm defeitos crônicos de infiltração de água nos rolamentos. Realidade que levou a estatal a retirar os veículos por mais de uma vez do trajeto de 48 quilômetros entre a Estação Mercado, em Porto Alegre, e a Estação Novo Hamburgo, já na cidade do Vale do Sinos. Na prática, jamais os 15 novos trens – que consistem em quatro carros cada e com capacidade para até 2 mil passageiros – trafegaram juntos desde que foram comprados. E tampouco os 200 mil usuários/dia do sistema puderam aproveitar na totalidade dos veículos e das propaladas benesses dos veículos, como o ar-condicionado e bancos ergonômicos. “É vergonhoso, um descalabro com o dinheiro público, uma conta paga por todos nós e sem uma resposta efetiva da empresa”, desabafa o presidente do Sindicato dos Metroviários (Sindimetrô), Luiz Henrique Chagas.

Curvas, quebras e tratos descumpridos

A nuvem negra que paira sobre os novos trens desde a sua aquisição fez com que a Trensurb exigisse do Frota POA um cronograma de reparos aos veículos. Trato feito e descumprido duas vezes pelo consórcio em 2016 e 2017 e que levou a estatal a aplicar multas de 1% e 2% do valor global do contrato, que tem ainda saldo de R$ 20,29 milhões não quitados pela Trensurb em função dos problemas. Apenas em gastos adicionais com energia elétrica pela não circulação dos novos trens o desembolso da estatal foi de R$ 4,6 milhões entre abril de 2016 a fevereiro de 2018. E está em avaliação a cobrança de outros custos, como a convocação de técnicos em jornada extraordinária para acompanhar os trabalhos das equipes do consórcio. “O problema dos novos trens é muito grave. E envolve um possível erro de projeto”, diz o diretor-executivo da Aeromóvel do Brasil, Marcus Coester. Há mais de duas décadas trabalhando com engenharia para trens e modais ferroviários, ele sintetiza onde a prancheta e os cálculos da Alstom-CAF descarrilaram na Trensurb. “O que acontece é que a linha do trem, o trilho, é projetado para um determinado comportamento em curvas e retas. E precisa de compatibilidade com os veículos. O que aparentemente tem é um erro de geometria, de engenharia mesmo”, afirma Coester.

Respostas genéricas são padrão da empresa e consórcio

Cada vez mais os usuários sofrem com o sucateamento dos trens, tanto com superlotação em determinados horários, quanto com problemas mecânicos durante as viagens

Foto: Igor Sperotto

Cada vez mais os usuários sofrem com o sucateamento dos trens, tanto com superlotação em determinados horários, quanto com problemas mecânicos durante as viagens

Foto: Igor Sperotto

Questionada pelo Extra Classe para explicar a inoperância dos novos trens, a Trensurb não ofereceu fonte para as respostas. Preferiu responder por sua assessoria de imprensa. Justifica que os trens da Série 200 passam por recall para corrigir problemas recorrentes de infiltração nas caixas de rolamentos de alguns veículos, que impossibilitam a circulação. E revela que até 10 de maio último apenas três estavam rodando. Os outros dois trens em manutenção preventiva e corretiva. As preventivas são realizadas quando o veículo atinge as marcas de 12,5 mil, 25 mil, 37,5 mil, 75 mil, 150 mil, 300 mil e 600 mil quilômetros rodados. Cada revisão conta com a inspeção, substituição, teste, limpeza e lubrificação de diversos itens. A estatal diz ainda que a entrega de todos os trens, conforme as especificações contratuais e em condições de operação, é de inteira responsabilidade do Frota POA, cabendo à empresa apenas exigir o cumprimento das obrigações do contrato, aplicar multas e cobrar os prejuízos inerentes ao não funcionamento regular dos trens.

A inexistência de fontes oficiais e o escudo da assessoria parece ser também a prática do consórcio, que preferiu se manifestar ao Extra Classe usando de Nota. Garante “estar engajado em restabelecer o funcionamento dos trens que se encontram em recall”. Entretanto, o terceiro cronograma apresentado para os reparos, ao início de março deste ano, e que prevê a entrega do último veículo em 28 de dezembro, foi rechaçado pela Trensurb. “Desde a aprovação do plano de trabalho, que prevê mobilização in loco de equipes dedicadas e apoio remoto de técnicos e engenheiros baseados em São Paulo e na Europa, já foram liberados seis trens requalificados, todos à disposição da Trensurb e da população”, resume o comunicado. Esse sexto trem, na verdade, é previsto para 21 de maio, num claro desconhecimento da empresa quanto ao seu próprio cronograma.

Trens parados cedem peças para que outros rodem

Encostados nos barracões e oficinas da Trensurb, no bairro Humaitá, os trens da Série 200 se deterioram e enferrujam ao sol, vento e chuva. Mas algo de pior acontece com eles. Os veículos estão sendo canibalizados. “Canibalização é a retirada de peças desses trens parados para colocar nos que rodam. E sem reposição dessas peças depois, porque os trens estragados continuam lá ao relento. O maior problema é nos painéis dos trens. Tacam fora a peça estragada e vão lá e pegam do trem que tá parado. E agora começaram a aparecer problemas nas rodas, que começaram a usinar. Tem buraquinhos nas rodas do trem, é material de má qualidade”, denuncia Luiz Henrique Chagas. Na nota ao Extra Classe, a Trensurb reconhece a canibalização, mas justifica a prática como estratégia de manutenção. “Tanto nos trabalhos de recall quanto nas atividades de manutenção, eventualmente, em casos de necessidade, peças instaladas em trens que não estejam em condições de circular podem ser utilizadas em outros veículos para deixá-los em condições de operação. Nesses casos, a peça que foi retirada do trem não operacional é reposta assim que possível”, diz a Trensurb, garantindo não ser do seu interesse que os veículos não operacionais sirvam “como meros repositórios de peças”. Justifica, ainda, não ter “um levantamento específico dos componentes que passam por esse tipo de processo com mais frequência”.

A canibalização se tornou uma prática comum. Trata-se da retirada de peças dos trens parados para manutenção dos que são colocados em uso

Foto: Igor Sperotto

A canibalização se tornou uma prática comum. Trata-se da retirada de peças dos trens parados para manutenção dos que são colocados em uso

Foto: Igor Sperotto

Dilapidação de patrimônio público que chama a atenção do Procon-RS, que analisa se a questão pode ser enquadrada pela ótica da defesa ao consumidor a partir da efetiva não entrega do “produto trem”. “Temos que ver qual a fundamentação disso, onde lesa o consumidor. O certo é que há uma deficiência na oferta do serviço”, diz a diretora-executiva do Procon-RS, Maria Elizabeth Pereira. Desde 3 de fevereiro ela está envolvida noutra fogueira envolvendo a Trensurb. O aumento de R$ 1,70 para R$ 3,30 na tarifa unitária após dez anos congelada, um aumento de 94%, mesmo que a inflação no período tenha sido de 79%. Alta considerada abusiva pelo Procon-RS, também pela falta de publicidade ao público. “Anunciaram em 31 de janeiro e passaram a cobrar a partir de 3 de fevereiro”, ilustra Maria Elizabeth.  Talagaço tarifário que já recebeu parecer negativo do Ministério Público Federal (MPF) e que pode cair a qualquer momento no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), onde ação popular movida pelo Sindimetrô e o PSol aguarda o julgamento do mérito.

Licitação e cartel na mira do MP e do Cade

Procurador do MPF em Novo Hamburgo, Celso Tres acompanha com lupa a lambança dos novos trens. Seu foco é a licitação que levou à contratação do Frota POA. Está debruçado no material do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que em março de 2014 apontou a existência de um cartel entre empresas do setor em licitações federais em São Paulo e Brasília e também na Trensurb. “Examino a origem dessa situação, a licitação que levou à contratação do consórcio, independente deles consertarem ou não os trens”, resume ele, que também tem em mãos uma cópia do inquérito da Polícia Federal sobre o caso. E antecipa o que virá pela frente em breve. “Já tem elementos para processar o consórcio e a direção da estatal à época. Vamos aguardar agora se os reparos sairão, o que eu tenho as minhas dúvidas. Mas estamos preparando uma ação civil pública questionando esses reparos que nunca terminam e também uma ação de improbidade”, garante. Uma das possibilidades, adianta o procurador, é tentar a punição do consórcio. “Que não sejam contratadas para outros certames no país. Na verdade, essa punição administrativa poderia ser aplicada pela Trensurb, mas que não o faz”, frisa Tres. Outro ponto de interrogação na licitação é o fato da Kawasaki, fornecedora dos veículos da Série 100 – os trens antigos e até agora inquebráveis – não ter participado da licitação para os da Série 200. “Há indicativos de que se os trens da Série 100 tivessem sido reformados, esse valor da reforma não chegaria a 30% do que foi gasto com os novos”, exemplifica o procurador.

O usuário viaja espremido dentro dos vagões enquanto empresas faturam com a cartelização do setor

Foto: Igor Sperotto

O usuário viaja espremido dentro dos vagões enquanto empresas faturam com a cartelização do setor

Foto: Igor Sperotto

Ação entre amigos vira caso de polícia

A suspeita de que há algo de podre no setor metroferroviário do país ganhou corpo e publicidade em março de 2014, quando o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) abriu processo administrativo pela suspeita de que empresas do segmento tenham montado um cartel entre 1998 e 2013. Entre elas, a Alstom e CAF. Os indícios apontam esquema fraudulento no metrô em São Paulo, durante as gestões do PSDB, na Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), de Belo Horizonte, e na Trensurb. A soma dos contratos? Módicos R$ 9 bilhões. A suspeita é de alijamento da concorrência na compra dos veículos em Porto Alegre e Belo Horizonte, ambas somente com propostas da Alstom e da CAF. Na Trensurb, a Alstom ficou com 87,3% da fatia e a CAF com 12,7%. Em Minas, a balança foi apenas invertida.

Questionada sobre a quantas anda a investigação no Rio Grande do Sul, a Procuradoria da República em Porto Alegre respondeu de forma protocolar por sua assessoria. “O que podemos informar no momento é que tem um inquérito policial em tramitação, com diligências sendo realizadas”. Mas as dinamites envolvendo a Trensurb e seus ex-gestores ou padrinhos têm estopins bem acesos. A pedido da PF, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, prorrogou no último dia 8, por mais 60 dias, o inquérito da Operação Lava Jato que investiga o chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha (PMDB), o deputado federal Marco Maia (PT), o ex-ministro Paulo Bernardo (PT) e os ex-presidentes da Trensurb, Marco Arildo Cunha e Humberto Kasper. A investigação se fundamenta em suposta propina da Odebrecht para o contrato de R$ 323.977.829,28 de extensão da linha do metrô entre São Leopoldo e Novo Hamburgo. Padilha teria recebido 1% do valor do contrato. Maia, 0,55%. Bolada paga, segundo a denúncia, na presença de Kasper e Cunha. Já Paulo Bernardo teria recebido, na época em que era ministro, 1% do valor do contrato para incluir a obra no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

 Na Trensurb, a Alstom ficou com 87,3% da fatia e a CAF com 12,7%

Foto: Igor Sperotto

Na Trensurb, a Alstom ficou com 87,3% da fatia e a CAF com 12,7%

Foto: Igor Sperotto

Fatiada por partidos políticos

Criada há 38 anos, a Trensurb transformou-se nas últimas décadas em alvo de cobiça e cabide de emprego para partidos e aliados dos governos que se revezam no poder no país. Num recorte apenas dos últimos 15 anos, três siglas estiveram no controle da empresa. Em 2003, o hoje deputado federal Marco Maia (PT) foi escolhido pelo então presidente Luis Inácio Lula da Silva para assumir a estatal, na qual ficou até 2004. Maia fez seu sucessor, o advogado Marco Arildo Cunha, que comandou a companhia por sete anos  (2004 a 2011) e também entregou o bastão a outro indicado pelo PT, o metroviário Humberto Kasper, que permaneceu à frente da Trensurb de junho de 2011 a outubro de 2016. E tendo Cunha como fiel escudeiro na diretoria-financeira. Kasper acabou substituído pelo engenheiro elétrico Francisco José Soares Hörbe, indicação do PTB.  Com passagem anterior pela diretoria da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), Hörbe durou apenas quatro meses no cargo. Em fevereiro de 2017 assumiu o engenheiro e ex-servidor de carreira da empresa David Borille, indicado pelo PSDB. Nos bastidores, contudo, são fortes os rumores de que Borille pode deixar ainda neste semestre a presidência, numa troca supostamente já acordada entre as legendas que estão na base de apoio a Michel Temer. Vale frisar que nesse período de 15 anos outros partidos como o PP e o MDB também integraram o alto escalão da Trensurb, ocupando as diretorias de Administração e Finanças e a de Operações, além da chefia de Gabinete.

KASPER – reportagem do Extra Classe buscou contato com o ex-diretor-presidente da Trensurb, Humberto Kasper, responsável pela compra dos trens da Série 200. A intenção era colher o seu posicionamento quanto ao processo de compra e os defeitos apresentados pelo veículos desde o início da entrada em operação. Foram deixados recados no telefone celular e no whatsapp de Kasper. Porém, não houve retorno.

 

 

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